A Vingança do Império: incendiar o Sul da Eurásia

"Os vigaristas hegemônicos agora urdem a narrativa de que o Atlântico Norte se transferiu para o Sul da China", escreve o colunista Pepe Escobar

Presidentes dos EUA, Joe Biden, e da China, Xi Jinping, mais o mapa da Europa
Presidentes dos EUA, Joe Biden, e da China, Xi Jinping, mais o mapa da Europa (Foto: Reprodução | Reuters)


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A dissonância cognitiva coletiva exibida pelo bando de hienas de rostos refinados que comandam a política externa dos Estados Unidos jamais deveria ser subestimada. 

Mesmo assim, esses dementes neoconservadores straussianos conseguiram um sucesso tático. A Europa é uma nave de tolos rumando para Cila e Caríbdis  – com traidores como o Le Petit Roi francês e o Chanceler Salsichão de Fígado alemão colaborando com a derrocada, enquanto as arquibancadas desmoronam em um turbilhão de moralismo histérico.

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São os que comandam o Hegêmona que estão destruindo a Europa. Não a Rússia.

Mas há também o Grande Quadro do Novo Grande Jogo 2.0.

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Dois analistas russos, por caminhos diferentes, chegaram a um mapa de percurso estarrecedor, bastante complementar e muito realista.

O General Andrei Gurulyov, hoje na reserva, é membro da Duma. Segundo ele, a guerra da OTAN contra a Rússia em solo ucraniano só terminará por volta de 2030 – quando a Ucrânia, basicamente, terá deixado de existir.  

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Sua estimativa é de 2027-2030 – algo que ninguém, até agora, ousou prever. E "deixar de existir", para Gurulyov, quer dizer literalmente desaparecer do mapa. Implicada aí vai a conclusão lógica da Operação Militar Especial – incessantemente reiterada pelo Kremlin e pelo Conselho de Segurança: desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, status de neutralidade, não-filiação à OTAN e a "indivisibilidade da segurança", igualmente, para a Europa e o espaço pós-soviético.

Assim, até que esses fatos estejam concretamente presentes no terreno, Gurulyov afirma, basicamente, que o Kremlin e o Estado-Maior não farão concessões. Não haverá "conflito congelado" imposto pelo Beltway, nem falsos cessar-fogos que todos sabem que não serão respeitados, da mesma forma como os Acordos de Minsk jamais o foram. 

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No entanto, Moscou, temos um problema. Por mais que o Kremlin continue insistindo que esta não é uma guerra contra os irmãos e primos eslavos ucranianos – o que se traduz na recusa a um Choque e Terror ao estilo americano, pulverizando tudo o que se encontra pela frente – o veredito de Gurulyov implica o imperativo da destruição do cancerosamente corrupto estado ucraniano na sua forma atual.

Um amplo relatório de situação militar sobre o estado atual da crucial encruzilhada em que nos encontramos, afirma corretamente que se a Rússia esteve no Afeganistão por dez anos, e na Chechênia, somando-se todos os períodos, por outros dez anos, a atual Operação Militar Especial – também descrita por gente muito importante de Moscou como uma "quase guerra" – e além de tudo, batendo-se contra o poderio total da OTAN, poderia, certamente, durar mais sete anos. 

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O relatório de situação militar também está correto ao afirmar que, para a Rússia, o aspecto cinético da "quase guerra" sequer é o mais relevante.  

Naquilo que, para todos os fins práticos, é uma guerra de vida ou morte contra o neoliberalismo ocidental, o que realmente importa é o Grande Despertar Russo – já em pleno curso: "O objetivo da Rússia é emergir, em 2027-2030, não apenas como um mero 'vencedor' alçando-se sobre as ruínas de um país já praticamente esquecido, mas como um estado que se reconectou com seu arco histórico, se reencontrou e restabeleceu seus princípios e sua coragem  na defesa de sua visão de mundo". 

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Sim, essa é uma guerra civilizacional, como Alexander Dugin afirmou com tanta mestria. E é também um renascimento civilizacional. Mas para os dementes neoconservadores straussianos trata-se de mais uma tramoia para jogar a Rússia no caos, instalar um fantoche e roubar seus recursos naturais. 

Perigo iminente

A análise de autoria de  Andrei Bezrukov complementa perfeitamente a de Gurulyov (aqui, em russo). Bezrukov foi coronel da SVR (o serviço russo de inteligência estrangeira) e é hoje Professor da Cátedra de Análise Aplicada a Problemas Internacionais na  MGIMO, e presidente do think-tank Conselho de Política Externa e de Defesa. 

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Bezrukov sabe que o Império não aceitará passivamente a maciça humilhação da OTAN que está prestes a ocorrer na Ucrânia. E mesmo antes do possível prazo de 2027-2030 proposto por Gurulyov, afirma ele, o Império fatalmente irá atear fogo no Sul da Eurásia – da Turquia à China.

O Presidente Xi Jinping, em sua memorável visita ao Kremlin no mês passado, disse ao Presidente Putin que o mundo vem passando por mudanças "jamais vistas em cem anos". 

Bezrukov, muito corretamente, nos lembra do estado de coisas de então : "Nos anos entre 1914 e 1945, o mundo se encontrava no mesmo estado intermediário em que se encontra agora. Esses trinta anos mudaram o mundo completamente: de impérios e cavalos ao surgimento de duas potências nucleares, da ONU, dos voos transatlânticos. Estamos ingressando em um período semelhante, que desta vez irá durar cerca de vinte anos". 

A Europa, como seria de se prever, irá "murchar até desaparecer", uma vez que "deixou de ser o centro absoluto do universo". Em meio a essa redistribuição de poder,  Bezrukov retorna a um dos pontos cruciais de uma análise seminal desenvolvida em um passado recente por Andre Gunder Frank: "há 200-250 anos, 70 por cento das manufaturas localizavam-se na China e na Índia. Estamos voltando a esse ponto, o que corresponderá também ao tamanho da população". 

Não é de admirar, portanto, que a região que mais rapidamente se desenvolve – que Bezrukov caracteriza como a "o Sul da Eurásia" – pode vir a se transformar em uma "zona de risco", sendo potencialmente convertida em um imenso barril  de pólvora pelo Hegêmona.

Ele mostra que o Sul da Eurásia é pontilhado por conflitos de fronteira – como Caxemira, Armênia-Azerbaijão, Tajiquistão-Quirguistão. O Hegêmona, fatalmente, irá investir na eclosão de conflitos militares em torno de fronteiras disputadas, e também nas tendências separatistas (por exemplo, no Baloquistão). Operações negras da CIA aos montes. 

Mesmo assim, a Rússia conseguirá se sair bem, segundo Bezrukov: "A Rússia tem vantagens enormes porque somos o maior produtor de alimentos e o maior fornecedor de energia. E sem energia barata, não haverá progresso nem digitalização. Além disso, somos o elo entre o Oriente e o Ocidente, sem o qual o continente não conseguirá sobreviver, porque o continente tem que fazer comércio. E se o Sul arder, as principais rotas não serão através dos oceanos, ao Sul, mas ao Norte, principalmente por via terrestre". 

O maior desafio para a Rússia será manter a estabilidade interna: "Os estados se dividirão em dois grupos nesse ponto de virada histórico: os que conseguirão manter a estabilidade interna e avançar de forma sensata e sem derramamento de sangue para o próximo ciclo tecnológico – e aqueles que não conseguirão fazê-lo, que resvalarão da rota e que irão gerar uma sangrenta confrontação interna como a que tivemos há cem anos. Estes últimos se atrasarão em dez ou vinte anos, irão mais tarde lamber suas feridas e tentar se equiparar aos demais. Nossa tarefa, portanto, é manter a estabilidade interna". 

E é aí que o Grande Renascimento mencionado por Gurulyov, ou a Rússia se reconectando com seu verdadeiro ethos civilizacional, como diria Dugin, irá desempenhar seu papel unificador.

Ainda há um longo caminho pela frente – e uma guerra contra a OTAN a ser ganha. Enquanto isso, em outras manchetes,  vigaristas hegemônicos urdem a narrativa de que o Atlântico Norte se transferiu para o Sul da China. Boa noite e boa sorte. 

Tradução de Patricia Zimbres

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