A vaia como expressão democrática
Se é mesmo verdade que só a vaia consagra, como teria dito Nelson Rodrigues, pode-se afirmar que aquele político que foi vaiado em uníssono pelo público nas manifestações na Paulista, no último dia dois de outubro, saiu de lá devidamente consagrado ao... nada
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Não se sabe bem ao certo qual seria a origem da palavra “vaia”, muito menos da vaia em si. Dizem alguns, que teria surgido na Grécia Antiga. Os dicionários afirmam, no entanto, tratar-se de uma palavra de origem italiana, oriunda de “baia” ou “vaya”, do castelhano. Independentemente de sua origem, a vaia constitui-se como uma manifestação por meio da qual determinado público demonstra desaprovação e desagrado quanto a um espetáculo, alguém, um discurso, uma ação. Vaia que é vaia tem que ser ruidosa e coletiva, com assovios, gritos, palmas, apitos e tudo o mais que possa infernizar os neurônios de quem é vaiado.
É uma pena que ensaístas como Michel de Montaigne e Francis Bacon, se não me falha a memória, não tenham dedicado nenhum dos seus ensaios à vaia, uma vez que ela sempre existiu. Na contemporaneidade, no entanto, há sempre alguém escrevendo sobre a arte de vaiar, acerca de quem vaia, assim como que tipo de situação e/ou gente merece ser vaiada. Aos que vaiam, muita “gente de bem” torce o nariz e se pudesse, outorgar-lhes-iam o já famoso troféu “Que Deselegante!”. Quanto àqueles que mantém seu dinheiro em paraísos fiscais, enquanto a população “come” osso, pelanca, carcaças de frango e vísceras de peixe; essa mesma “gente de bem” nada vê, ouve ou fala.
E se há no Brasil um povo que realmente sabe vaiar, esse povo é o cearense. A vaia cearense, além de ser constituída por todos aqueles elementos que são obrigatórios numa boa vaia, se complementa ainda com um “Ieeeeeeeeiiiiiiiii”, grito que somente os cearenses sabem dar. A origem de reconhecida expertise remonta aos anos quarenta, especificamente em 30 de janeiro de 1942, quando o povo cearense já cansado de tanta seca, reuniu-se na Praça do Ferreira, coração da cidade, à espera da chuva que o céu de nuvens carregadas ameaçava despejar por sobre a cidade. No entanto, para tristeza geral, as nuvens sumiram e o sol brilhou maravilhosamente. Indignados, os “alegres circunstantes”, como classificou à época um repórter do jornal O Povo, vaiaram o sol a plenos pulmões. Hoje, “o dia em que o cearense vaiou o sol” é considerado patrimônio imaterial do povo cearense.
Pelo que sabemos, não apenas Helius foi vaiado, mas outros deuses também já o foram. Em 1967, por exemplo, na final do III Festival da Música Popular, o cantor Sérgio Ricardo foi insistentemente vaiado, enquanto tentava cantar Beto bom de bola. Não conseguindo dar seu recado, mesmo ironizando o nome da canção, chamando-a de “Beto bom de vaia”, o cantor se irritou tanto a ponto de quebrar seu violão e atirar o que restou em direção ao público. Já em 1968, no Festival Internacional da Canção, Chico Buarque e Tom Jobim foram vaiados pelo público que lotava o Maracanãzinho. As vaias não foram pra eles, na verdade, mas para o júri que, desclassificando “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, escolheu como vencedora a canção “Sabiá”, de Chico e Tom, interpretada por Cynara e Cybelle.
Caetano Veloso foi outro que não conseguiu escapar dos apupos do público. Assim, também em 1968, ao cantar “É proibido proibir”, no TUCA – Teatro da PUC-SP, uma vaia desabou sobre o artista, que reagiu com um discurso no qual questionava o comportamento conservador do público presente que, aparentemente, não estava entendendo nada. No ano de 1969, no Festival Internacional da Canção, era chegada a vez de Jards Macalé que, enquanto cantava “Gotham City” a vaia corria solta, sem dó nem piedade. A tal da vaia, para nossa sorte, consagrou Macalé, que dormiu desconhecido e acordou famoso. Genial que é, Macalé transformou a homérica vaia que recebeu em parte integrante das suas apresentações. Assim, toda vez que toca “Gotham City” em seus shows, o artista pede para ser vaiado ao final, pois diz sentir saudades da famosa vaia de 1969. Pedido ao qual o público responde sempre com o maior entusiasmo.
Não nos consta, no entanto, que algum dos vaiados mencionados tenha classificado o público que os vaiou como fascista vermelho, amarelo ou verde. Também não se tem registro de que tenham usado palavras depreciativas e vulgares, com intenção de desconstruir uma atitude comprovadamente democrática. Mas como as democracias estão sendo extirpadas a golpes de palavras, atos e omissões, nada mais nos causa espanto. E se é mesmo verdade que só a vaia consagra, como teria dito Nelson Rodrigues, pode-se afirmar que aquele político que foi vaiado em uníssono pelo público nas manifestações na Paulista, no último dia dois de outubro, saiu de lá devidamente consagrado ao... nada. Viva a democracia! Viva a vaia!
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