A Universidade gradeada

A pandemia e as cercas embandeiradas ou desembandeiradas que separam, emolduram e esquartejam o campus do Butantã

(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)


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Publicado no site A Terra é Redonda

A pandemia nos pôs fora da USP. Digo isso com certa reserva metodológica, porque a informação não é exata. Para ser mais preciso, eu deveria enfiar um advérbio aí no meio. A frase ficaria assim: em termos presenciais, a pandemia nos pôs fora da USP. Sim, o estilo é batatudo, mas o sentido melhora. A nós, professores, alunos e funcionários da USP, a pandemia nos pôs fora – mas presencialmente, apenas presencialmente.

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A USP não ficou esvaziada do nosso trabalho de professores, da dedicação diuturna de seus servidores e da frequência estudantil – ficou vazia da presença física de todos eles. A tecnologia, que vem propiciando ao capitalismo a intensa atividade das telepresenças, gerou a nova inflexão idiomática de todo mundo ficar invocando o advérbio presencialmente ou o adjetivo presencial o tempo todo. O adjetivo presencial é antigo (vem do latim, præsentialis), mas agora virou praga. Do ponto de vista do estilo, o adjetivo e seu advérbio são brutamontes. Encavalam a prosódia, empedram a musicalidade da fala. Não obstante, imperam. Soam como senhas cibernéticas, marcadores sob encomenda para a era digital. Cumprem, sem concorrência de quase nenhum outro vocábulo, a função de distinguir aquilo que fazemos de corpo presente (atos “presenciais”) daquilo que fazemos de longe, sem o corpo presente ou de corpo ausente (atos “virtuais”).

A quantidade de coisas que fazemos hoje sem o corpo é absurdamente alta. Pagamos contas, arrematamos compras, damos testemunho, subscrevemos abaixo-assinados e fazemos amor (não estranhe: a relação sexual, impossível na opinião de alguns e algumas, é trama que se enlaça no imaginário, não na carne rija, sem requerer músculos e nervuras por perto; nas coisas da libido, o corpo manda lembranças pelos significantes que o recobrem, não precisa estar lá na hora do ato). As pessoas comparecem a cultos religiosos sem ter que ir até lá presencialmente, celebram as cerimônias fúnebres de sétimo dia e há mesmo docentes que votam para os órgãos colegiados sem nenhuma “presencialidade” (haja feiura no vernáculo).

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Vai daí que nós – professores da USP – começamos a dar aulas desse tipo, aulas não presenciais. A gente não vai até o campus do Butantã, mas as aulas acontecem assim mesmo. Os alunos também não vão, só quem vai são os avatares deles, isso quando não lhes falta o outro palavrão em voga: a conectividade.

Na pandemia, a USP segue a mil por hora, desde que virtualmente. E aí é um frenesi teleprodutivista que não tem limites. Além de dar aulas, a gente faz pesquisa, dá nota, corrige trabalho, monta reuniões e preenche formulários até não poder mais. Os burocratas digitais fibrilam em êxtase. E de longe. A gente solicita férias na virtualidade, emite pareceres e controla a presença (não presencial) dos corpos discentes. A gente faz até sessões de congregação e de conselho universitário não presencialmente. O corpo está barrado na USP, mais agora do que antes. A tecnologia não é bem uma catraca, mas é o nirvana da técnica que fez do corpo um ente prescindível nas relações de produção.

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Passeio

Hardwares à parte, eu tentei, outro dia, levar meu corpo para passear na USP (ou terá sido o corpo que levou minha cabeça para flanar um pouco?). Eu tentei e, mais do que isso, eu consegui. Devo dizer que consegui. Vitorioso, adentrei a gloriosa cidade universitária pelo velho Portão 1.

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O céu resplandecia em azul claro, aspergindo bom humor sobre os terráqueos. Lá estava eu (eu, não, o meu corpo) vestindo shorts laranja, camiseta branca e um par de tênis azuis. Lá estava eu (eu não, a minha consciência) imbuído do apetite sensorial de caminhar saudavelmente sob o sol filtrado pelas copas das tipuanas perfiladas nas alamedas. USP, cidade fantasma, embora universitária. Lá estava eu, sem testemunhas – sem testemunhas, melhor dizendo, que não fossem as capivaras (ou serão pacas?) com suas patas, às margens da raia. Entre mim e os herbívoros (ou serão roedores?), apenas os alambrados enferrujados. Lá estava a USP, com suas cercas para confinar os animais.

Lembro que, no supramencionado Portão 1, um homem fardado me perguntou à queima-roupa: “Vai aonde?”. Lá estava a USP e suas portarias monitoradas. “Vai aonde?”, reiterou o representante da guarda privada na universidade pública. Antes de esboçar palavra, mostrei o meu crachá, minha carteirinha de professor, o que não sensibilizou o segurança por trás da máscara preta. Num lampejo de inspiração, aduzi meio gaguejante que iria ao banco. Argumentei que esticaria até o caixa eletrônico ao lado da ECA para sacar uns caraminguás. Foi como se eu ordenasse “Abre-te, Sésamo”. O vigia desfez o empertigamento corporal, desarmou aquela rigidez coreográfica sobejamente presencial e, num gesto que fez seu braço esquerdo descrever um arco generoso, como se movesse para o lado uma cortina pesada, consentiu a minha passagem.

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Nada como o argumento financeiro nesta universidade, eu pensei, enquanto saí andando sem acalentar a intenção de ir digitar coisa alguma em tela eletrônica nenhuma de nenhuma agência bancária. Digamos que, remotamente, eu mentira. Digamos no mínimo que eu mudara de idéia: não iria cumprir o itinerário anunciado no guichê. Isso me incomodava, mas só um pouco. Deixei pra lá. Deixei pra trás.

Na claridade do meio-dia, palmilhando as folhas secas, sorvi a sensação de ser um corpo único na vastidão do campus. Ou quase único, pois, como já avisei, as pacas (ou serão capivaras?)me espreitavam sem interesse. Segui minha caminhada quase feliz, embora não conseguisse deixar de pensar sobre as cercas, sobre guaritas e ainda sobre os roedores (ou seriam herbívoros?) da universidade. Minhas pernas andavam e minha cabeça divagava em busca de compreender a clivagem entre o corpo da universidade e o corpo humano funcional. Seguíamos eu e a minha subjetividade pedestre, sob a sombra clara das tipuanas, sem corpos semelhantes por perto, muito embora os urubus por ali saltitassem entre pacas.

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(Com todo o respeito a Tom Jobim e aos pilotos de planadores, urubus são pressagiosos quando voam, repugnantes quando pousam e escabrosos quando, em grupo, saracoteiam desengonçados uns para cima dos outros. Urubus encontram compatibilidade com pacas, não com a alegria.)

Eu olhava para a USP abstraindo as aves carniceiras. Só via gradis, tapumes, balaustradas e barreiras, algumas das quais envidraçadas. Fui pelo caminho em meio a ruminações mentais (pacas ruminam?): para que servem os arames farpados, as lâminas vítreas e as trincheiras simbólicas na missão mais alta da Universidade de São Paulo?

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Não achei respostas. Não as encontro ainda agora. Mesmo assim, disso tratarão as linhas que se seguem. Que ninguém espere muito delas. Suspeito que as casamatas se impuseram. sorrateiras e brutas, entre o imperativo de escrever e o que da escrita restou ao final.

Na ECA

Começo falando da minha escola, a ECA. Foi lá que a pulsão cerceadora nos pegou com mais crueza. Há alguns anos, uma grade atravessou ao meio a escola em que cursei uma das minhas duas graduações, onde gramei na minha pós-graduação e onde agora dou aulas (não presenciais, como creio já ter alertado). Quem já passou pela ECA vai visualizar o que falo agora. Quem nunca passou, recomendo uma visita. Na portaria do campus, diga que vai ao banco que o segurança deixa você passar. Aí, experimente ver e tatear o cercado da ECA. É inesquecível.

Aos que nunca viram (ou viram, mas nunca se tocaram), vai aqui uma descrição sumária. Atrás do prédio principal da minha escola, abre-se um descampado largo, bem largo. Só o que existe ali de construção é um bloco pesado, compacto e lúgubre no canto esquerdo, onde costumavam funcionar uma lanchonete, o centro acadêmico e a atlética. Excetuada a torpe edificação (cacófato incluso), o vasto espaço aberto se estende com folgas rurais. Se eu soubesse quanto mede um campo de futebol, diria que ali cabem uns três ou quatro, ou mesmo seis ou sete. O problema é que não sei o tamanho de um campo de futebol. Sei apenas que, na área aberta, coube um estacionamento, acho que desativado, além de um quintal de cansar quem se dispõe a cruzá-lo a pé. Temos árvores ali, uma grama pífia, e umas mesas de cimento com bancos idem. No mais, há o vazio. Os estudantes apelidaram o ocioso pedaço de “prainha”, embora o terreno em questão não dê vista para o mar.

Um triste dia, como eu contava, todo esse domínio sem dono, por onde entravam e saíam pessoas de todos os lados e para todos os lados, foi posto em confinamento por um gradil paquidérmico. O que eram plagas de libérrima circulação se fechou. Desde então, a única entrada é a portaria do prédio principal. A única saída também.

A cerca, indevassável para os corpos humanos (não para os urubus), de aço, com um design que lembra uma planilha matricial, tem uns três metros de altura. Através dela, a gente vê o outro lado, mas não passa. Sua aparência só não é mais opressora porque as barras foram pintadas de verde, num mimetismo ecológico. Não há pacas nem capivaras no entorno.

Pelo que me recordo, a muralha metálica brotou da noite para o dia, ou de uma semana para outra. Consta que a reitoria mandou blindar o território. Não há declarações oficiais a respeito, mas a tese convence. O propósito do dispositivo parece ter sido isolar não a ECA, mas a própria reitoria. O anteparo com ar de tabela de Excel liga os fundos do prédio do “quartel-general” da USP às extremidades da sede da ECA. São dezenas e dezenas de metros de cerca, toneladas de metal, demarcando um latifúndio improdutivo acadêmico, em forma de lote quadrangular, que tornam improvável qualquer hipótese de que um protesto estudantil no quintal da ECA possa amolar a reitoria. A grade da ECA é um truque político.

O que não há de ser surpreendente. Estamos numa cidade universitária que se murou para impedir o povo de entrar. Estamos numa cidadela universitária, que rejeitou abrigar uma estação de metrô e, mais ainda, que tem o prédio da reitoria fortificado, com cercas reforçada, para repelir manifestantes. A USP se protege da metrópole e a reitoria se protege do resto da USP.

Não se encontrou, jamais, outro método que não o gradeamento para prevenir as ocupações minguadas, de três ou quatro dezenas de estudantes, que interrompiam por meses a rotina burocrática do corpo dirigente da universidade.No mapa do campus, os gradis são queloides sinalizando as áreas não vascularizadas pelo diálogo.

Barreiras e barragens

A mentalidade propensa às barragens entrincheiradas é antiga no velho charco do Butantã, e já nos rendeu pérolas urbanísticas inclassificáveis. Recentemente, uma quilométrica muralha vítrea se implantou num longo trecho da divisa entre a Raia Olímpica e as pistas da Marginal Pinheiros. Outro trecho, na ponta mais próxima da Ponte do Jaguaré, continuou murado por um tapume de concreto recoberto de fuligem, na cor de pneu, mas uma extensão considerável, até a Ponte Cidade Universitária, ganhou cara nova – e suspeita.

No começo, acreditei que a barreira envidraçada tivesse uma função de marketing: conferir à USP uma aparência mais – vai aí outra palavra da moda – “transparente”. Se fosse só isso, o vidro não se resumiria a uma tolice inofensiva. Acontece que não era só isso. Foi pior do que isso.

Não foi pela virtude da transparência, mas pelas infelicidades do projeto arquitetônico que a obra ganhou notoriedade. A coisa não funcionou, por dois motivos distintos. O primeiro é que os painéis cristalinos, projetados para franquear aos passantes vistas generosas da paisagem universitária, foram instalados sobre uma base de concreto alta demais, de tal sorte que só franquearam uma visão parcial e frustrante do que fica do lado de lá da vitrine. Em função da altura da base, quem trafega na Marginal e desvia os olhos à direita não consegue ver a Raia Olímpica propriamente dita. Só o que vê são os telhados da Cidade Universitária, as copas das árvores, a ponta priápica do relógio de concreto e, de resto, o céu. É verdade os passageiros de ônibus, cujas janelas são mais elevadas, podem usufruir da veloz contemplação em ângulos menos desfavoráveis, mas esses aí são uma parcela ínfima dos que transitam na marginal. Resultado: também para o olhar sobre quatro rodas, a USP só é acessível a uma minoria.

O segundo motivo pelo qual a coisa não funcionou é mais grave: as lâminas de vidro, tão imponentes, decoradas com figuras pretas de urubus em pleno vôo (sempre os urubus), deram de quebrar sem parar, uma atrás da outra. O incidente constrangeu, pois o empreendimento caro, que teria sido faraônico se não tivesse desgarrado para o fanfarrônico, não podia resultar num desastre arquitetônico. Mas resultou.

Nos dias da inauguração, anunciou-se que o financiamento teria vindo de cofres privados. Estranhamente, porém, os doadores nunca se deixaram identificar inteiramente. Quando admitiam a participação no rateio milionário, eram lacônicos (como atestou uma reportagem de Gabriel Araújo no Jornal do Campus em 29 de outubro de 2019 [i]). Por desconversas ou discrições extremadas, os que pagaram a conta nunca se apresentaram com muita, por assim dizer, transparência. Segundo se informou, eles teriam sido arregimentados pelo prestígio empresarial do então prefeito do município de São Paulo. Pouco importa. O anticlímax triturante dos cristais em pandarecos inibiu neles, em particular, o exibicionismo tão comum nos doadores em geral.

Um mistério intrigava a imprensa. A que se deveria o súbito estilhaçamento? De imediato, insinuou-se que a causa seria o vandalismo, mas a teoria de que atiradores misteriosos estariam brincando de tiro ao alvo com os vitrais não parou de pé. Trincou, ela também. A tentativa de acusar o fator externo pelos males da universidade se partiu, desmentida por peritagens. A cristaleira acadêmica se partia por falhas estruturais da construção, como apontaram análises técnicas. A obra não dispunha de amortecimentos que neutralizassem as trepidações causadas pelas rodas de altas tonelagens da Marginal [ii].

No fim, com a transparência em ruínas cortantes, ficou para a memória da USP mais um ato falho (projeto falho) de uma burocracia que só se sente inteira quando se blinda, seja com aço, seja com retórica, seja com seus silêncios plúmbeos. Mais uma vez ficou patente que as cercas inexpugnáveis – de vidro, de concreto, de metal ou de oratória – integram e por vezes determinam o contexto cultural da Universidade de São Paulo.

Nós, que amamos a universidade, somos mal recebidos quando criticamos a gestão que gradeia. Nós, que amamos a USP, sentimos, além do corpo barrado, o espírito retalhado.

Grades

Volto agora às grades da ECA. Elas incomodaram e ainda incomodam a escola, mas foram assimiladas em silêncio. Especulou-se que, além de resguardar a reitoria, elas teriam a utilidade subsidiária de inibir a realização das festas semanais dos estudantes, que vinham provocando incidentes bastante graves. Essas especulações nunca foram admitidas por nenhuma autoridade da ECA, mesmo porque as festas prosseguiram a despeito das toneladas de aço. Pior: com o prosseguimento das festas, os riscos se tornaram ainda mais preocupantes. O que sucederia se, de repente, milhares de jovens, dentro do perímetro confinado, precisassem desocupar a área rapidamente?Pânico? Pisoteamento? Mortes?

E a comunidade da ECA, salvo uma estridência aqui, outra ali, permaneceu em calada. A escola se viu partida em duas metades – uma ECA do Sul e uma ECA do Norte – e naturalizou a cisão. Em nossos deslocamentos cotidianos entre os blocos da faculdade, quando vamos do Departamento de Jornalismo e Editoração à lanchonete, ou do Audiovisual ao Xerox, já não podemos cortar caminho pelo gramado, como era o óbvio. Em lugar do trajeto costumeiro, aprendemos, por adestramento behaviorista, a nos desviar e tomar o rumo da portaria, sem um fio que seja de resmungo. A gente aquiesceu. Ninguém organizou um campeonato de salto às grades. Ninguém montou uma exposição de fotografias usando as grades como suporte. Nada.

A tarde de 7 de março de 2017, uma terça-feira, nunca me saiu da memória. Os estudantes, amontoados às margens do gradil da ECA, protestavam contra a reunião do Conselho Universitário. Os portões das grades da reitoria ficaram entupidos de manifestantes. À pretexto de garantir a entrada dos integrantes do Conselho, a administração convocou a polícia, e esta, por sua vez, fez aquilo que sabe fazer: distribuiu bombas e cacetadas.

Alunos da ECA foram surrados. Presentes àquela praça de guerra, alguns professores se perguntavam: que educadores expõem seus alunos ao espancamento por tropas treinadas não para dialogar, mas para bater em quem desobedece? Mesmo que os alunos não tivessem razão, mesmo que intimidassem professores mais velhos, não importa. Chamar as tropas é solução? Que educadores eram aqueles que assumiam o risco de ver os estudantes levando pancadas na cabeça? Que tipo de mentalidade é essa que, dentro de uma universidade, solicita a brucutus que completem o trabalho que as grades, sozinhas, não deram conta de entregar?

Naquela tarde, a sessão agendada do Conselho Universitário acabou acontecendo, com horas de atraso. As atas registram que, durante os trabalhos do Conselho, houve professores que protestaram contra a violência. Embora não concordassem com o assédio inamistoso adotado por alguns manifestantes contra docentes que queriam entrar na reunião, esses professores não aceitavam o emprego da força bruta pela autoridade.

Foi um dia traumático, e eu o repassava na memória caminhando ao lado da Raia Olímpica. Até quando seguiremos fingindo que o gradeamento é um vegetal que cresce na relva?Somos pesquisadores e vivemos de pensar. Desistir de questionar sobre os chiqueirões à nossa volta, às nossas costas, à nossa revelia e diante do nosso nariz é desistir de interpelar o que há de real no nosso entorno e no nosso umbigo. Não dá para não falar disso.

Os espaços também educam – ou deseducam. Os espaços formam – ou deformam – maneiras de olhar. Os espaços ordenam – ou desordenam – maneiras de conviver. O que aprendem de liberdade os garotos e as garotas cujos passos são dirigidos por grades de aço? O que esperamos de comunicadores e artistas em formação, sob nossos cuidados, que não tenham tido experiências reais de liberdade?

Quais as condicionantes sígnicas (ou semióticas) que se precipitam sobre a realidade sensível quando se interpõem sobre nossos itinerários irrefletidos esse amontoado de comandos surdos? Um linguista do século passado dizia que os elementos da realidade também são signos, como se fossem palavras. Se ele tinha razão, e tinha, qual o sentido de tanto aço que, sem ter sido reclamado por uma congregação, reparte uma faculdade em duas metades? O que essa monstruosidade enuncia para os nossos olhos e para os nossos corpos? O que ensina? O que desensina? Qual o peso disso na cultura? Por que fingir que esse signo, em suas altas tonelagens industriais é invisível? Por que fazemos de conta que ele não está lá?

Não que devamos empregar a violência contra as grades que nos barram que nos cindem, que nos perpassam e nos dividem. Seria patético. Devemos, sim, mover a linguagem contra elas. A linguagem pode mais que as armas. Devemos falar dos sentidos estrangulados. Devemos acusar a interdição pela força. Numa universidade, que não é um canil, que não é uma penitenciária, grades não pensam e não deixam pensar. Só a palavra dialogada, mais forte que o aço, poderá demovê-las.

Nessa matéria, atenção, o que vale para a ECA vale para toda a USP.Enquanto não tratarmos disso, a governança pelo gradeamento terá nos vencido pelo cansaço. Por que emudecer? Talvez devamos perguntar sobre isso para capivaras, pacas e urubus. Eu não sei dizer das simbioses entre eles, mas eles, que não falam, mas não são mudos, sabem das asperezas entre nós.

Enquanto isso, o sol ainda rega as árvores da USP, enquanto as trepadeiras escalam os alambrados entregues à ferrugem e à oxidação do pensamento.

Notas

[i]http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2019/10/orfao-de-concreto-e-vidro/

[ii] Ver reportagens na Folha e no G1.

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