A Ucrânia e a Política de Guerra Permanente
“Guerra permanente requer censura permanente”, afirma o jornalista Chris Hedges
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Artigo de Chris Hedges no Substack. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Ninguém, incluindo os mais agressivos apoiadores da Ucrânia, esperava que a guerra da nação com a Rússia terminasse logo. A luta foi reduzida a duelos de artilharia através de centenas de quilômetros de frentes de batalha e rastejantes avanços e recuos. Como o Afeganistão, a Ucrânia vai sangrar por muito tempo.
Isto foi planejado assim.Em 24 de agosto de 2022, o governo Biden anunciou mais um massivo pacote de ajuda militar para a Ucrânia no valor de cerca de US$ 3 bilhões. Serão necessários meses, e em alguns casos anos, para que estes equipamentos militares cheguem à Ucrânia. Um outro sinal de que Washington presume que o conflito será uma longa guerra de atrito, é que eles darão um nome à missão de assistência militar dos EUA na Ucrânia e a tornarão em um comando separado, supervisionado por um general de uma ou duas estrelas. Desde agosto de 2021, Biden aprovou mais de US$ 8 bilhões em transferências de armamentos retirados dos estoques existentes – conhecidos como 'drawdowns' (literalmente, saques) – para serem embarcados para a Ucrânia, o que não requer aprovação do Congresso.
Incluindo a ajuda humanitária, a reposição de estoques esgotados de armas dos EUA e expandindo a presença de tropas estadunidenses na Europa, o Congresso aprovou mais de US$ 53,6 bilhões (US$ 13,6 bilhões em março e outros US$ 40,1 bilhões em maio) desde a invasão russa em 24 de fevereiro de 2022. A guerra tem precedência sobre as mais sérias ameaças existenciais que estamos enfrentando. O orçamento proposto para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC – Centers for Disease Control and Prevention) para o ano de 2023 é de US$ 10,675 bilhões, enquanto que o orçamento proposto para a Agência de Proteção Ambiental (EPA – Environmental Protection Agency) é de US$ 11,881 bilhões. A nossa assistência aprovada para a Ucrânia é de mais do dobro destes valores.
Os militaristas que travaram a guerra permanente que custou trilhões de dólares nas últimas duas décadas, investiram pesadamente no controle da narrativa pública. O inimigo – seja Saddam Hussein ou Vladimir Putin – sempre é a epítome do mal, o novo Hitler. Aqueles a quem nós apoiamos sempre são defensores heróicos da liberdade e da democracia. Qualquer um que questione a justiça da causa é acusado de ser um agente de uma potência estrangeira e um traidor.
As mídias de massa disseminam covardemente estes absurdos binário nos ciclos de 24 horas de notícias. As celebridades e especialistas de notícias, universalmente recrutados da comunidade de inteligência e das forças militares, raramente se desviam do roteiro aprovado. Dia e noite, os tambores da guerra jamais param de soar. A meta deles: manter o fluxo de bilhões de dólares para as mãos da indústria da guerra e evitar que o público faça perguntas inconvenientes.
Em face a esta barragem, nenhuma dissidência é permitida. A CBS News cedeu às pressões e removeu do ar o seu documentário que acusava que apenas 30% dos armamentos embarcados para a Ucrânia estavam chegando às frentes de batalha, sendo o restante desviados para o mercado negro – uma revelação que foi reportada separadamente pela jornalista estadunidense Lindsey Snell. A CNN reconheceu que não há supervisão das armas depois que estas chegam na Ucrânia – há muito considerada como o país mais corrupto da Europa. Segundo um levantamento de opiniões de executivos responsáveis pelo combate à fraude feito pela empresa Ernst & Young em 2018, a Ucrânia foi classificada como a nona nação mais corrupta dentre as 53 pesquisadas.
Há poucas razões ostensivas para censurar os críticos da guerra na Ucrânia. Os EUA não estão em guerra com a Rússia. Não há tropas estadunidenses combatendo na Ucrânia. A crítica da guerra na Ucrânia não põe em risco a nossa segurança nacional. Não há laços culturais e históricos de longo prazo com a Ucrânia, como há com o Reino Unido. Porém, se a guerra permanente – que tem um apoio público potencialmente tênue – é o objetivo primário, a censura faz sentido.
A guerra é o negócio básico do império estadunidense e é o alicerce da economia dos EUA. Os dois partidos políticos dominantes perpetuam servilmente a guerra permanente – assim como o fazem com programas de austeridade, acordos comerciais, o virtual boicote de impostos para as corporações e para os ricos, a vigilância por atacado feita pelo governo, a militarização da polícia e a manutenção do maior sistema prisional do mundo. Eles se curvam diante dos ditados dos militaristas, os quais criaram um Estado dentro do Estado. Este militarismo, como escreve Seymour Melman no seu livro 'The Permanent War Economy: American Capitalism in Decline', “é fundamentalmente contraditório à formação de uma nova economia política baseada na democracia, ao invés da hierarquia; no mercado de trabalho e no resto da sociedade.”
“A ideia que a economia de guerra traz prosperidade se tornou mais do que uma ilusão estadunidense”, escreve Melman. “Quando ela é convertida, como tem sido, em uma ideologia que justifica a militarização da sociedade e a degradação moral, como no Vietnam, então a reavaliação crítica daquela ilusão é uma questão de urgência. Ela é uma responsabilidade básica de pessoas que pensam e são compromissadas com valores humanos e respondem à perspectiva de deterioração da economia e da sociedade dos EUA, devidas às devastações da economia de guerra, podem se tornar irreversíveis.”
Se a guerra permanente for impedida, escreve Melman, o controle ideológico da indústria da guerra deve ser estilhaçado. O financiamento da indústria da guerra para políticos, centros de pesquisa e de estudos, assim como a sua dominação dos monopólios de mídias, devem acabar. Deve se fazer ver ao público, escreve Melman, como o governo federal “se sustenta como o conselho diretor do maior império corporativo industrial do mundo; como a economia de guerra é organizada e operada em paralelo com o poder político centralizado – frequentemente contradizendo as leis do Congresso e a própria constituição; como o diretório da economia de guerra converte o sentimento pró-paz da população em maiorias pró-militaristas no Congresso; como a ideologia e os temores de perdas de emprego são manipuladas para congregar apoio para a economia de guerra no Congresso e no público em geral; como o diretório da economia de guerra usa o seu poder para evitar o planejamento de uma conversão ordeira para uma economia de paz.”
“O militarismo desenfreado e não controlado”, como assinala o historiador Arnold Toynbee, “tem sido, de longe, a causa mais comum do colapso das civilizações.”
O colapso é acelerado pela rígida padronização e uniformidade do discurso público. A manipulação da opinião pública – aquilo que Walter Lipman chama de “a manufatura do consenso” - é imperativa, enquanto os militaristas evisceram os programas sociais; deixam a infraestrutura em demolição da nação decair; recusam o aumento do salário mínimo; sustentam um sistema de cuidados de saúde inepto, mercenário e para gerar lucro que resultou em 25% das mortes por Covid no mundo – apesar de nós sermos menos de 5% da população do mundo – enganam o público; executam a desindustrialização; nada fazem para refrear o comportamento predatório dos bancos e corporações, ou investir em programas substanciais para combater a crise climática.
Já impedidos de entrar nas mídias corporativas, os críticos são implacavelmente atacados, desacreditados e silenciados por falarem a verdade que ameaça a quietude do público, enquanto o Tesouro dos EUA é pilhado pela indústria de guerra e a nação é estripada.
Você pode assistir a minha discussão (vídeos em inglês) com Matt Taibbi sobre a podridão que infecta o jornalismo aqui e aqui.
Deificada pelas mídias de massa, a indústria da guerra – incluindo a indústria do entretenimento – jamais é responsabilizada pelos fiascos militares, pelos excessos de gastos, pelos sistemas de armamentos falsificados e pelos desperdícios perdulários. Não importa quantos desastres ela orquestra – do Vietname ao Afeganistão –, ela é inundada com fundos federais cada vez maiores, cerca de metade de todos os gastos discricionários do governo. A monopolização do capital pelos militares elevou a dívida pública dos EUA a mais de US$ 30 trilhões, US$ 6 trilhões a mais do que o PIB de US$ 24 trilhões dos EUA. O serviço desta dívida custa US$ 300 bilhões por ano. Nós gastamos mais com as forças militares – US$ 813 bilhões para o ano fiscal de 2023 – do que os próximos nove países combinados, incluindo a China e a Rússia.
Uma organização como a 'NewsGuard' – que tem classificado aquilo que ela diz serem websites confiáveis e inconfiáveis, baseados nos seus relatórios sobre a Ucrânia – é uma das muitas ferramentas de doutrinação da indústria da guerra. Isto inclui websites que levantam afirmações que são consideradas “falsas” sobre a Ucrânia, incluindo aquelas que afirmam ter havido um golpe de estado apoiado pelos EUA em 2014 e que há forças neonazistas fazendo parte das forças militares e da estrutura de poder da Ucrânia, estão sendo rotuladas como inconfiáveis. Os websites Consortium News, Daily Kos, MintPress e Grayzone receberam um rótulo vermelho de advertência. (o NewsGuard, depois de ser pesadamente criticado por ter dado uma classificação verde de aprovação à Fox News em julho, revisou a sua classificação para a Fox News e a MSNBC, atribuindo-lhes rótulos vermelhos.
As classificações são arbitrárias. O 'Daily Caller', que publicou falsas fotos nuas da deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez, recebeu uma classificação verde, junto com um veículo de mídias operado e de propriedade da Heritage Foundation. A NewsGuard atribui um rótulo vermelho ao Wikileaks por “falhar” em publicar retratações, apesar de admitir que todas as informações publicadas até então pelo Wikileaks eram acuradas. O The New York Times e o The Washington Post – que compartilharam um Prêmio Pulitzer em 2018 por reportar que Donald Trump entrou em conluio com Vladimir Putin para ajudar agitar a eleição de 2016, uma teoria da conspiração que a investigação de Mueller implodiu – ambos receberam pontuações perfeitas. Estas classificações não se constituem em verificações do jornalismo. Elas tratam de impor a conformidade.
Fundada em 2018, a NewsGuard é “parceira” do Departamento de Estado e do Pentágono, bem como corporações como a Microsoft. O seu conselho consultivo inclui o antigo Diretor da CIA e da NSA, General Michael Hayden; o primeiro diretor da Homeland Security dos EUA, Tom Ridge e Anders Rasmussen, ex-secretário geral da OTAN.
Os leitores que acessam regularmente os websites monitorados, provavelmente pouco se importam se eles são marcados com um rótulo vermelho. A questão é classificar estes websites, de maneira que qualquer um que tenha uma extensão do NewsGuard instalada nos seus aparelhos será advertido para evitar o acesso a eles. NewsGuard está sendo instalado em bibliotecas e escolas, e nos computadores de tropas em serviço militar ativo. Uma advertência aparece nos websites, a qual diz: “Proceda com caução: Este website geralmente falha em manter padrões básicos de precisão e responsabilização”.
Classificações negativas afugentaram os anunciantes, que é a intenção deles. Isso também é um passo muito pequeno para estes websites serem incluídos nas listas negras e para censurá-los – como ocorreu quando o YouTube deletou seis anos do meu show 'On Contact' que era publicado pela RT America e RT International. Nenhum destes shows era sobre a Rússia. E nenhum deles violou as diretrizes para conteúdos do YouTube. Porém, muitos deles efetivamente examinaram os males do militarismo estadunidense.
Numa refutação exaustiva ao NewsGuard que vale a pena ler, Joe Lauria, editor-chefe do Consortium News, termina com esta observação:
As acusações do NewsGuard contra o Consortium News (CN) que, potencialmente, poderiam limitar o seu público-leitor e a sua sustentação financeira devem ser vistas no contexto da mania de guerra do Ocidente sobre a Ucrânia – sobre a qual as vozes dissidentes estão sendo suprimidas. Três escritores do CN foram expulsos do Twitter.
O cancelamento da conta do Consortium News no Paypal é uma evidente tentativa de cortar o financiamento do que quase certamente é a visão da empresa (PayPal) que CN violou as suas restrições sobre “prover informações falsas ou enganosas”. Não se pode saber isto com 100% de certeza, porque o PayPal se esconde por detrás das suas razões; mas o CN negocia com informações e nada mais.
CN não apoia lado algum na guerra da Ucrânia, mas procura examinar as causas do conflito no bojo do seu contexto histórico recente – tudo isto que está sendo descaracterizado nas mídias ocidentais de 'mainstream' (tradicionais).
Estas causas são as seguintes: a expansão da OTAN para o leste, apesar da sua promessa de não o fazer; o golpe de estado e os oito anos de guerra no Donbass contra os resistentes ao golpe; a falta de implementação dos Acordos de Minsk para terminar aquele conflito; e a completa rejeição das propostas do tratado por Moscou para criar uma nova arquitetura de segurança na Europa, levando em conta as preocupações de segurança da Rússia.
Os historiadores que assinalam as onerosas condições tipo-Versailles impostas à Alemanha após a Primeira Guerra Mundial como sendo a causa do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial não estão desculpando a Alemanha Nazista, nem estão sendo manchados como seus defensores.
O esforço frenético para encurralar os espectadores e leitores para abraçarem a narrativa da mídia do 'establishment' – apenas 16% dos estadunidenses tem muita confiança, ou bastante confiança nos jornais e somente 11% têm algum grau de confiança nas notícias da televisão – é um sinal de desespero.
Como a perseguição de Julian Assange ilustra, o estrangulamento da liberdade de imprensa é bipartidário (republicanos e democratas nos EUA). Isto fragmenta a credibilidade da classe dominante. Isso empodera os demagogos. Isso cria um deserto de informações no qual as verdades e as mentiras não são distinguíveis. Isso nos faz marchar rumo à tirania. Esta censura serve apenas aos interesses dos militaristas – os quais, como Karl Liebknecht lembrou aos seus compatriotas alemães na Primeira Guerra Mundial – são os inimigos internos.
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