A Turquia pivota para o centro do Grande Jogo Novo
Quando se trata de semear discórdia - e lucrar com ela - a Turquia de Erdogan é sem dúvida a grande estrela
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Quando se trata de semear discórdia - e lucrar com ela - a Turquia de Erdogan é sem dúvida a grande estrela.
Com o delicioso nome de Lei da Contraposição aos Adversários da América Por Meio de Sanções (CAATSA, em inglês), o governo Trump, como era de se esperar, aplicou sanções a Ancara punindo-a pela ousadia de comprar sistemas S-400 russos de defesa de mísseis superfície-ar. As sanções tiveram como alvo a agência de compras de material de defesa da Turquia, a SSB.
A resposta do Ministro das Relações Exteriores turco, Mevlut Cavusoglu’s, foi rápida: Ancara não irá recuar - e está de fato refletindo sobre como reagir.
Os poodles europeus, obviamente, tinham que dar seguimento à questão. Então, depois dos proverbialmente intermináveis debates em Bruxelas, eles acabaram por concordar com sanções "limitadas" - acrescentando uma outra lista para ser tratada na cúpula de março de 2021. No entanto, essas sanções, na verdade focam-se em indivíduos até agora não identificados envolvidos em perfurações off-shore em Chipre e na Grécia. Eles não tem nada a ver com os S-400s.
O que a União Europeia de fato produziu foi um regime muito ambicioso e em escala global de sanções relativas a direitos humanos calcada no modelo da Lei Magnitsky, dos Estados Unidos, que implica proibições de viagens e congelamentos de bens de pessoas unilateralmente consideradas responsáveis por genocídio, tortura, mortes extrajudiciais e crimes contra a humanidade.
A Turquia, neste caso, é apenas uma cobaia. A União Europeia sempre hesita muito quando se trata de sancionar um membro da OTAN. O que os eurocratas de Bruxelas na verdade querem é mais um instrumento poderoso para assediar a China e a Rússia.
Nossos jihadis - aliás - nossos "rebeldes moderados"
O que é fascinante é que Ancara, sob Erdogan, parece exibir uma atitude de tipo "dane-se".
Tomemos a situação no caldeirão de Idlib, no noroeste da Síria. Os chefões da Jabhat al-Nusra – também conhecida como a al-Qaeda da Síria – estão agora envolvidos em negociações "secretas" com gangues armadas apoiadas pelos turcos, como a Ahrar al-Sharqiya, bem na cara das autoridades turcas. O objetivo: aumentar o número de jihadis concentrados em determinadas áreas-chave. O xis da questão: uma grande número deles virá da Jabhat al-Nusra.
Ancara, portanto, para todos os fins práticos, continua a dar total apoio aos jihadis barra-pesada do noroeste da Síria - disfarçados por trás da "inocente" marca Tahrir al-Sham. Ancara não tem o mínimo interesse em fazer com que essas pessoas desapareçam. Moscou, é claro, está totalmente informada sobre essas mutretas, mas os perspicazes estrategistas do Kremlin e do Ministério da Defesa preferem deixar rolar por enquanto, partindo do pressuposto de que o processo de Astana entre Rússia, Irã e Turquia possa, em certa medida, dar frutos.
Erdogan, ao mesmo tempo, finge de forma magistral estar totalmente engajado em pivotar em direção a Moscou. Ele afirma efusivamente que "seu colega russo Vladimir Putin" apóia a ideia - inicialmente apresentada pelo Azerbaijão - de uma plataforma de segurança regional unindo Rússia, Turquia, Irã, Azerbaijão, Geórgia e Armênia. Erdogan chegou a dizer que se Yerevan for parte desse mecanismo, "uma nova página pode se abrir" nas até agora intratáveis relações entre a Turquia e a Armênia.
Vai ajudar, é claro, que mesmo sob a preeminência de Putin, Erdogan terá um lugar de muita importância à mesa dessa suposta organização de segurança.
O Grande Quadro é ainda mais fascinante, por colocar vários aspectos da estratégia de Putin para equilibrar a Eurásia, na qual os principais atores são Rússia, China, Irã, Turquia e Paquistão.
Na véspera do primeiro aniversário do assassinato do General Soleimani, Teerã está longe de se ver acuada e "isolada". Para todos os fins práticos, o Irã vem, lenta e firmemente, forçando os Estados Unidos a saírem do Iraque. Os vínculos diplomáticos que ligam o Irã à Síria e ao Líbano permanecem sólidos.
E com um menor número de tropas no Afeganistão, o fato é que o Irã, pela primeira vez desde a era do "eixo do mal", estará menos cercado pelo Pentágono. Tanto a Rússia quanto a China - os principais nós da integração eurasiana - dão sua total aprovação.
É claro que o rial iraniano desabou frente ao dólar dos Estados Unidos, e a receita do petróleo caiu de 100 bilhões a cerca de 7 bilhões de dólares. Mas as exportações não-petrolíferas estão a bem mais que 30 bilhões anuais.
Tudo isso vai mudar para melhor. O Irã está construindo um oleoduto ultra-estratégico, partindo do leste do Golfo Pérsico até o porto de Jask, no Golfo de Omã - contornando o Estreito de Hormuz e pronto para exportar até um milhão de barris de petróleo por dia. A China será o principal comprador.
O Presidente Rouhani afirmou que o oleoduto estará concluído no verão de 2021, acrescentando que o Irã planeja vender mais de 2,3 milhões de barris diários no próximo ano - com ou sem o alívio das sanções por Biden-Harris.
Prestem atenção no Anel Dourado
O Irã liga-se à Turquia ao oeste e à Ásia Central ao leste. Um elemento da máxima importância nesse tabuleiro de xadrez é a entrada de trens de carga ligando diretamente a Turquia à China através da Ásia Central, contornando a Rússia.
No início deste mês, o primeiro trem partiu de Istambul para uma viagem de 8.693 km e 12 dias de duração, cruzando por sob o Bósforo pelo novíssimo túnel de Marmary, inaugurado há um ano, e então seguindo ao longo do Corredor Leste-Oeste pela ferrovia Baku-Tbilisi-Kars (BTK), atravessando a Geórgia, o Azerbaijão e o Cazaquistão.
Na Turquia esse caminho é conhecido como a Ferrovia da Seda. Foi a BTK que reduziu o transporte de carga da Turquia até a China de um mês para apenas 12 dias. Toda a rota que leva do Leste Asiático à Europa Oriental pode hoje ser feita em 18 dias. A BTK é o principal nó do chamado Corredor do Meio, que vai de Pequim a Londres, e da Estrada de Ferro da Seda, que vai do Cazaquistão à Turquia.
Tudo o que foi descrito acima encaixa-se perfeitamente na agenda da União Europeia, principalmente na da Alemanha: implementando um corredor comercial estratégico ligando a UE à China, contornando a Rússia.
Isso acabaria por levar a uma das principais alianças a serem consolidadas no decorrer dos Frenéticos Anos Vinte: a aliança entre Berlim e Pequim.
A fim de acelerar essa possível aliança, diz-se em Bruxelas que os eurocratas se beneficiariam do nacionalismo turco, do pan-turquismo e da recente entente cordiale entre Erdogan e Xi, quando se trata dos uigurs. Mas há um problema: muitas das tribos turcófonas preferem uma aliança com a Rússia.
Além do mais, é impossível escapar da Rússia quando se trata de outros corredores. Tome-se por exemplo, um fluxo de mercadorias japonesas a caminho de Vladivostok e, daí, seguindo pela Transiberiana até Moscou e União Europeia.
A estratégia da União Europeia de contornar a Rússia não foi exatamente um sucesso na Armênia-Azerbaijão: o que ocorreu foi um relativo recuo da Turquia e uma vitória russa de fato, e o reforço por Moscou de sua posição militar no Cáucaso.
Entra em cena uma jogada ainda mais interessante: a parceria estratégica Azerbaijão-Paquistão, agora muito acelerada nas áreas de comércio, defesa, energia, ciência-tecnologia e agricultura. Islamabad, incidentalmente, apoiou Baku no Nagorno-Karabakh.
Tanto o Azerbaijão quanto o Paquistão mantêm ótimas relações com a Turquia: uma questão de grande complexidade envolvendo o entrelaçamento da herança cultural turco-persa.
E é possível que os dois países se aproximem ainda mais com o Corredor de Transporte Norte-Sul (INTSC) que, cada vez mais, conecta não apenas Islamabad a Baku mas também ambas as capitais a Moscou.
Assim, a dimensão adicional do novo mecanismo de segurança proposto por Baku, unido Rússia, Turquia, Irã, Azerbaijão, Geórgia e Armênia: Todos os Quatro Maiores, aqui, querem laços mais próximos com o Paquistão.
O analista Andrew Korybko deu a isso o nome muito apropriado de "Anel Dourado" - uma nova dimensão da integração eurasiana que inclui Rússia, China, Irã, Paquistão, Turquia, Azerbaijão e os "istãos" da Ásia Central. O que, portanto, vai muito além de uma possível Entente Tríplice: Berlim-Ancara-Pequim.
No pé em que as coisas estão, o que é certo é que a importantíssima relação Berlim-Moscou fatalmente irá permanecer fria como gelo. O analista norueguês Glenn Diesen resumiu tudo: "A parceria Alemanha-Rússia para a Grande Europa foi substituída pela parceria China-Rússia para a Grande Eurásia".
O que também é certo é que Erdogan, mestre na arte de pivotar, encontrará maneiras de lucrar simultaneamente com a Alemanha e a Rússia.
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