A trincheira da democracia política

Gabriel Boric enfrenta a primeira grande crise política e de gestão do Estado, pela esquerda, na América do Sul

(Foto: Reprodução/Twitter Gabriel Boric)


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(Publicado no site A Terra é Redonda)

O anjo da história do quadro de Paul Klee, citado por Walter Benjamin, olha o passado e vê destruição e guerras, mas no futuro ele vê o esfuziante progresso e a esperança. O endereço do Presidente Gabriel Boric em Santiago é quase uma metáfora da sua situação política no Chile: orfandade, liberdade e esperança. Gabriel Boric reside na rua Huérfanos, situada entre as ruas Libertad e Esperanza.

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Órfão abandonado pela metade dos eleitores que lhe levaram ao Palácio de La Moneda com 56% dos votos; Liberdade, por ser um candidato de libertação das amarrações fascistas do poder de Augusto Pinochet, para abrir a “Esperanza” num novo Chile, no qual os desejos de cada e de todos se realizem muito além das possibilidades visíveis colocadas pelo mundo real. É a a utopia democrática de um Chile novo, dos desejos de todos e muito além do que lhes permitiria a história de um país saído do fascismo, quando não ocorrera – ainda – todo o acerto das suas contas com o passado.

O Presidente Gabriel Boric enfrenta hoje a primeira grande crise política e de gestão do Estado, pela esquerda, na América do Sul. Depois da crise sistêmica dos partidos de esquerda que ocorreu em escala global, Gabriel Boric solitariamente foi a bola da vez aqui na América do Sul, onde as derrotas já ocorridas em diferentes processos eleitorais no mundo inteiro, foram despejadas contra a juventude chilena insurgente.

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Em todo o mundo, a esquerda tradicional, ou entregou os anéis para não perder os dedos, ou entregou o poder com humilhação. Os partidos sociais democratas e comunistas “reformados” foram alvejados – de um lado – pela emergência universal da extrema direita no cenário internacional (sem estarem preparados para enfrentar as novas formas da luta de pelo poder) e – de outro – porque, surpreendidos pelas novas formas de dominação política e de reprodução do capital nas plataformas monetizadas, foram obrigados a conciliar e perder sua autenticidade política.

Em escala mundial, os “mercados do dinheiro” e os novos meios tecnológicos que aniquilaram o tipo de vida comum do mundo do trabalho do século passado, reinam soberanos na política e adaptam, em maior grau, partidos, líderes e movimentos às suas necessidades estratégicas. A trincheira da democracia política, da defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, todavia, ainda nos possibilitam recuperar as energias utópicas armazenadas nas revoluções do século passado. E assim se resiste, com certo sucesso, na América do Sul, predominantemente no Brasil, Colômbia e Uruguai, sob o signo das Constituições sociais, que vêm depois de Weimar, bem como da proclamação da era das liberdades configuradas no anúncio revolucionário de que todos “nascem iguais em direitos”.

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As devoções do Iluminismo e as promessas das Revoluções claudicam e no seu lugar surgem as demandas de um mar de fragmentos libertários, que apenas revelam que há uma enorme vontade de revolucionar a política moderna, mas sem projeto de sociedade e sem projeto de nação. A mera revolta, sem projeto capaz de ser majoritário e sem capacidade de criar novas elites dirigentes comprometidas com a emancipação vai para o fracasso, ou vai para o vazio: o que dá no mesmo. A vitória do campo popular e libertário no Chile foi uma grande conquista inicial e o Presidente Gabriel Boric é um grande líder político, mas neste momento sem campo de sustentação eleitoral e sem capacidade de governar com hegemonia, pois carente de um projeto social e político de unificação de uma maioria nacional para enfrentar o fascismo. Gabriel Boric ainda pode se recuperar se compreender que precisa se reinventar.

Na verdade as estruturas políticas fragmentárias do campo emancipatório e democrático não serão alternativas de poder democrático se não contarem, para formular seu projeto de uma nova esquerda, com ideias voltadas para o governo e não somente para anarquia dura e alegre do protesto, se não absorverem algo de fundamental das lutas democráticas, das lutas revolucionárias, das lutas corporativas, das concertações e dos avanços, que vem da história da esquerda do século XX. Isto, pelo simples fato que o seu vazio organizativo e a sua incapacidade de unificar um campo majoritário além das mobilizações de rua, lhes atesta – perante sua própria base – como incapazes para exercer o poder na democracia.

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Depois da eleição de 2021 – proclamado o resultado – foi realizada a posse de Gabriel Boric em março de 2022. Supunha-se que ele formasse ali um governo de coalizão democrática para tirar daquela vitória brilhante a aplicação de um programa de coesão social e nacional – de afirmação dos direitos humanos e da soberania popular – para enfrentar o assalto do pinochetismo ao poder, desta feita pelas urnas.

Não foi o que ocorreu: o “anjo da história” nele encarnado só teve um olhar para o passado miserável que queria demolir, mas não teve capacidade de abrir suas vistas para um futuro capaz de ser agregador da nação. A nova Constituinte está formada, a partir das últimas eleições para aquele colégio decisório, por uma maioria conservadora e uma forte base parlamentar da extrema direita que vai delinear o futuro próximo do país.

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A nova Constituição de 388 artigos – uma colcha de retalhos das lutas sociais e identitárias vindas da Assembleia convocada por pressão dos movimentos sociais na presidência de Sebastian Piñera – foi rejeitada em setembro de 2022, desaprovada por quase 70% dos eleitores chilenos. Os fragmentos que elegeram uma maioria para redigir o novo texto constitucional não se reencontraram na ação política parlamentar e a “velha esquerda” não teve capacidade e organização, não só para intervir no governo de Gabriel Boric de maneira ordenada e colaborativa, como não teve força suficiente para influir na redação de uma Constituição democrática, apta para abrigar os fragmentos sociais e identitários num projeto de nação.

O que se pergunta é se ainda existe a possibilidade de compor uma ampla aliança social e política, de classes e fragmentos, para bloquear o fascismo e alargar a democracia política. Só uma pessoa pode comandar este processo, que exige muita ousadia, sinceridade e independência de espírito: é o jovem Presidente Gabriel Boric que poderá demonstrar, assim, que a democracia tem futuro no Chile e na América do Sul, se for convencido ou convencer-se que fragmentos dispersos, não só não formam uma totalidade, como não atravessam alegre e seriamente as ruas da esperança.

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