A terra é redonda e o capitalismo é o seu problema

"Para não se arrastarem voos de galinha que geram sempre energias de resistência não-superadora e posteriores desapontamentos por seus fracassos, é preciso começar a unificar as lutas do povo e o que se chama de esquerda por uma só inteligibilidade: a crítica do capitalismo", escreve o professor da Faculdade de Direito da USP Alysson Leandro Mascaro

'Não se trata de uma crise, isso é um golpe. Crise é o capitalismo!'
'Não se trata de uma crise, isso é um golpe. Crise é o capitalismo!' (Foto: E B Fladung III)


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Por Alysson Leandro Mascaro

(Artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)

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Saber para agir alcança no marxismo sua mais alta expressão como ciência e revolução. Tal articulação é o quadrante dinâmico das possibilidades, impasses e contradições da sociabilidade capitalista. Em alguns momentos, desde o século XIX até agora, a falha se demonstrou incontrolável aos mecanismos de constituição ideológica do capital. De modo aberto ou deliberado, ocorreram revoluções, revoltas, protestos, lutas. A superação do capitalismo, no entanto, só se faz dando um sentido a tal efervescência da falha da reprodução social: a superação das formas do capital.

Tais formas – mercadoria, valor, Estado e direito – não são castelos a serem mantidos mediante trocas de guarda, nem monumentos a serem mais bem modulados, mas destruídos em favor de uma nova sociabilidade. O socialismo, sendo de cada qual segundo sua capacidade e a cada qual segundo sua necessidade, nada guarda de relação com dísticos de centro-esquerda como distribuição de renda, republicanismo ou melhores políticas públicas. Trata-se do radicalmente outro e novo na sociabilidade, para o qual, via de regra, ideologicamente as subjetividades não se encontram preparadas.

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Está no problema da ideologia o plexo central da dor impotente das classes, grupos, movimentos e indivíduos na contemporaneidade. Sofre-se, e isto em graus e dosagens absurdos de horror existencial. A falha e a crise estão estampadas inequivocamente no rosto da maioria da humanidade. No entanto, a constituição ideológica vai bem.

O capitalismo reproduz, em suas teias, a plenitude da inteligibilidade e o desejo geral das sociedades presentes. Contra isso, não são suficientes – e são mesmo inócuos – os reclames por consciência. A ideologia não opera no plano das vontades conscientes ou autônomas. Sua inscrição está no inconsciente, haurida que é do mais arraigado das práticas da materialidade e da constituição – não de eventuais distorções ou alienações – das subjetividades. A luta, então, deve se dar neste terreno.

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A ideologia é material. As relações sociais concretas são todas estabelecidas mediante formas sociais historicamente específicas. A vida, as interações, as possibilidades e as interdições são pensadas e calculadas a partir de tais materialidades cujas formas são determinantes. O dinheiro é o cálculo universal não por uma deformação dos indivíduos – avaros, interesseiros, egoístas –, mas porque, efetivamente, a disponibilidade relacional social é toda ela determinada pelo dinheiro. O que se chama de avareza ou mesquinharia é apenas uma quantificação exacerbada do mesmo das formas gerais constitutivas da sociabilidade capitalista que a todos atravessam.

Por ser material, a ideologia não comporta uma contraideologia sustentada apenas por vontade. Não há contraface do ideológico. Ele é a-histórico para todas as subjetividades por si constituídas. O capital, materialmente, totaliza o possível, dando a coerção e a dimensão dos vínculos. O desejo e a repressão são intrínsecos à forma específica de reprodutibilidade social capitalista. Por isso, via de regra, quando se busca irromper politicamente contra o quadro dado, as posições da esquerda recaem sobre as mesmas formas sociais constituintes: mais direitos, reconhecimento, acesso ao Estado, novas políticas públicas. A forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica operam o vasto campo do conservadorismo e do reformismo capitalista.

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O capitalismo pós-fordista, cuja crise se arrasta como um dínamo particular e virtualmente excelente em seus termos de acumulação e de regulação, fez tábua rasa de todas as contraideologias que se levantaram até então nas sociedades mundiais. O leninismo e o sovietismo soçobraram com o peso da declaração de horror à passagem a outro modo de produção. A energia crítica foi direcionada à microrresistência, impedindo o cultivo da revolução como modelo desejado de câmbio social. Entre afastamento de possibilidades outras e modulações do desejo e do ímpeto transformador, as últimas décadas viram a ideologia reinar sem qualquer contraste que lhe viesse a fazer, materialmente, ameaça.

O ideológico se espraia por uma materialidade relacional imediata forjando, também, uma inteligibilidade sobre si. Neste sentido, os aparelhos ideológicos são sua chave decisiva. A materialidade que dá constituição positiva de intelecção aos sujeitos é feita mediante aparelhagens. Ouvindo-se, vendo-se, lendo-se, tocando-se, constitui-se subjetivamente. Por isso, família, religião, escola, universidade, artes, livros, jornais, revistas, rádio, televisão, internet são os instrumentos ideológicos constituintes.

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Suas formas, seus proprietários, seus comandos, interditos, sugestões, desejos e repressões são o motor da forja das subjetividades. O capitalismo é vitorioso sem contraste porque controla ampla e decisivamente a quantidade dos aparelhos ideológicos. A exploração e suas falhas não encontram sujeitos que assim as reconheçam, ou, se as reconheçam, nunca as põem na conta do próprio capitalismo, e sim da política, dos políticos, da corrupção, da imoralidade, das esquerdas etc. A crítica está submetida às formas. A ideologia não permite prosperar uma contraideologia porque os aparelhos ideológicos constituem a inteligibilidade possível à própria crítica.

Os governos de esquerda pelo mundo, nestas primeiras décadas do século XXI, operaram sempre mediante o desejo interno aos quadrantes das formas da sociabilidade capitalista. Não romperam com os aparelhos ideológicos que são os inimigos das lutas revolucionárias. Não o fizeram porque não são governos de movimentos revolucionários.

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De fato, no seio das formas sociais capitalistas, não pode haver governos revolucionários. Mas, se se quiser sustentar uma posterior passagem à transformação social revolucionária, governos populares, trabalhistas ou progressistas devem ultrapassar suas próprias limitações e contradições constituindo inteligibilidade crítica às massas. Os aparelhos ideológicos, assim, são elementos cruciais da ação progressista em busca da continuidade de lutas superadoras das formas capitalistas.

A crise e a falha se reiteram por todo o capitalismo. A guerra mundial de 1914 e a crise econômica de 1929 poderiam ter ensejado o socialismo no mundo todo; ensejaram o nazismo. A crise do fordismo poderia ter levado à superação da forma mercadoria; gerou o domínio de uma classe rentista mundial contra o próprio mundo. As crises e as falhas se repetem hoje.

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Nas poucas vezes em que elas são tamanhas a ponto de fazerem irromper movimentos populares fortes ou mesmo governos à esquerda, elas devem servir de ensejo a uma energização de lutas nacionais e internacionais, operando materialmente aparelhos ideológicos constituintes de subjetividades e desejos. Para não se arrastarem voos de galinha que geram sempre energias de resistência não-superadora e posteriores desapontamentos por seus fracassos, é preciso começar a unificar as lutas do povo e o que se chama de esquerda por uma só inteligibilidade: a crítica do capitalismo. A terra é redonda e o capitalismo é o seu problema.

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