A sociedade autofágica

"O novo livro de Anselm Jappe, A sociedade autofágica – capitalismo, desmesura e autodestruição, não apresenta um futuro otimista para a sociedade humana. Mas esta predição não pode ser vista como um problema", escreve o professor aposentado e sênior do Departamento de Economia da FEA/USP



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Por Eleutério Prado

(artigo orginalmente publicado no site A Terra é Redonda)

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O novo livro de Anselm Jappe, A sociedade autofágica – capitalismo, desmesura e autodestruição (Antígona, 2019), não apresenta um futuro otimista para a sociedade humana. Mas esta predição não pode ser vista como um problema, pois, como bem se sabe, o pessimismo da razão pode e deve ser combinado com o otimismo da vontade. Ocorre que a eventual falta ou insuficiência desse último traço de caráter pode comprometer essa interessante obra, que não peca pela ausência de ousadia na compreensão do atual momento histórico. Ora, é preciso perguntar o porquê.

O relato acabrunhador que aí se apresenta parte de uma alegoria, o mito grego de Erisícton, que supostamente fora rei de Tessália numa época distante. Observando o mundo como parte integrante de seu domínio ilimitado, ele abate uma árvore sagrada para usá-la na construção de seu palácio. O seu ego narcisista não possui limites. Não é capaz assim de cultivar o razoável, o bom senso em sua relação com o mundo.

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Deméter, a deusa das colheitas, diante desse grave delito, despertou nele, como castigo, uma fome insaciável. Para satisfazê-la, esse monarca passou a comer tudo o que encontrava em sua volta. Depois de destruir a natureza e, portanto, o seu próprio reino, como sua fome era ilimitada, sem outra alternativa, passou a comer a si próprio.

Jappe adota esse mito como uma metáfora pertinente para o que está atualmente acontecendo no evolver suicida da sociedade humana, não apenas aqui e acola, mas em sua totalidade. Esta se encontra agora num processo adiantado de consumo do próprio humano e do ambiente legado pela natureza, de tal modo que começou já a se destruir enquanto civilização alcançada e possível. “O mito antecipa assim” – diz ele –, “de forma extraordinária, a lógica do valor, da mercadoria e do dinheiro” tal como caracterizada por Marx em O capital. Especialmente quando se tem em conta que agora o capital se tornou um “sujeito” genocida.

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Na obra de Marx, como se sabe, o capital é apresentado como uma relação social insaciável que se alimenta de mais-valor e, assim, de mais-trabalho de modo tendencialmente infinito. Ao fazê-lo, com a finalidade apenas aparente de produzir valores de uso que satisfazem as necessidades humanas, a relação de capital, ao revés, consome inexoravelmente, enquanto persiste existindo, a natureza humana e também a não humana.

Tal como no mito apresentado, a partir de certo ponto, a dinâmica do capital entra em um caminho de destruição que conduz, pouco a pouco, a um estado em que ocorre a sua autodestruição. Ora, se essa lógica foi capaz no passado de superar a “idiotia rural” da sociedade medieval, o modo de produção baseado no capital está agora obliterando o futuro da sociedade que ele próprio criou – e que não parece capaz de abandonar o seu incessante processo contínuo de modernização. A idiotia do passado foi, assim, substituída por uma “esperteza imbecil”.

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Anselm Jappe é um dos teóricos da corrente de pensamento crítico contemporâneo que se autodenomina de “crítica do valor”, a qual tem como fundadores principais dois pensadores bem conhecidos no Brasil: Moishe Postone e Robert Kurz. Essa linhagem de reflexão que provém de Marx é, entretanto, adversária do que ela própria denomina de “marxismo tradicional”. Em sua visão, este último tronco, assim como os seus vários ramos, nunca quis enfatizar a irracionalidade intrínseca do processo de acumulação de capital. Preferiu, ao contrário, concentrar-se na questão da distribuição dos frutos do progresso que dele resulta.

Assim, em síntese, se a socialdemocracia lutou apenas para melhorar a repartição dos resultados diretos e indiretos da produção capitalista, o marxismo revolucionário, ainda com um propósito meramente distributivo, quis superar a propriedade privada dos meios de produção e, assim, a concorrência dos capitais – mas não a mercadoria, o dinheiro e o capital enquanto tais. Para tanto, suprimiu a concorrência, colocando em seu lugar uma economia de planejamento centralizado, conduzida sob a égide do Estado.

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A “crítica do valor” não se define em geral como marxista, mas sim como uma teoria crítica radical do capitalismo e, por extensão, de um modelo de marxismo que considera equivocado. A sua compreensão de mundo está assentada na compreensão do sistema do capital que se encontra nas obras maduras de Marx, mas sem adotar, porém, a sua apresentação da história. Rejeita tanto o materialismo histórico como a dialética da luta de classes enquanto motor da transformação da sociedade.

Para tanto, a crítica do valor distingue um Marx exotérico de um Marx esotérico. O primeiro seria um “filho dissidente do Iluminismo (…) que pretendeu apontar o caminho para chegar a uma organização mais justa da sociedade, a qual deveria ser alcançada por meio da luta de classes”. O segundo, esotérico, seria aquele que “criticou as categorias básicas da sociedade capitalista: valor e trabalho abstrato, mercadoria e dinheiro”. Assim, se o primeiro teria se prendido à sociedade do progresso e do trabalho, o segundo apontou para a superação da sociabilidade que engendra o fetichismo da mercadoria, do dinheiro e do capital.

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A linhagem da “crítica do valor” rememora a apresentação do valor presente no primeiro capítulo do livro primeiro de O capital. Marx começa pela exposição da mercadoria como forma elementar da riqueza no modo de produção capitalista. Eis que ela aparece, tal como já haviam dito os economistas clássicos, como valor de uso e valor de troca. Como as utilidades dos bens são incomensuráveis entre si, a relação de troca entre duas mercadorias quaisquer só pode ser explicada como uma forma de manifestação dos valores que estão aí implícitos.

Ora, o valor econômico em geral, para Marx, é constituído por uma substância social, a qual consiste no trabalho abstrato e socialmente necessário para produzir a mercadoria. Em consequência, a relação social fundamental do mundo das mercadorias não aparece como tal, mas como uma relação de coisas que tem valor. Se tem aí não uma relação social direta, mas indireta. Por isso mesmo, essa relação social não aparece como tal na troca, pois o que aí desponta é somente a troca de coisas que possuem valor, ou seja, de mercadorias.

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O pensamento crítico original, para revelar esse enigma da troca de mercadoria, diz então que ela se apresenta como uma “relação social de coisas”. Ora, é justamente esse encobrimento da relação social que está na base do que se denomina como “fetiche da mercadoria”. É por isso, pois, que a mercadoria se configura como coisa misteriosa para o senso comum; já que porta em seu caráter de coisa uma sociabilidade que permanece inconsciente enquanto tal para os atores sociais. Eles, portanto, não sabem o que de fato fazem.

Jappe tem uma compreensão correta do fetichismo da mercadoria, ou melhor, do caráter fetichista de todas as manifestações dos produtos do trabalho no capitalismo, que sempre se apresentam na forma de mercadoria. Eis que o capital costuma se apresentar sob a forma de mercadoria ou de dinheiro. Este, no entanto, não é nada mais do que a mercadoria universal.

Aqui convém notar que Jappe possui uma compreensão algo totalizante do mundo centrado no sistema econômico. Eis que a consciência e a vontade do suporte humano da relação de capital parece estar bem colonizado pelo próprio modo de existir objetivo da relação de capital. Ou seja, a lógica social do capital e a lógica mental do proprietário capitalista, segundo ele, convergem e tendem a convergir: “O fetichismo não é uma falsa consciência ou uma simples mistificação, é, isto sim, uma forma de existência social total que se situa a montante de qualquer separação entre reprodução material e psique, posto que ela determina as próprias formas do pensamento e do agir”.

Talvez, poderia ele argumentar – se indagado a respeito dessa “totalização’ – que ela se encontra na obra do próprio Marx. Esse autor não disse que o capital, que se mantém como tal e mesmo sempre aumenta, transitando de uma forma mercantil para outra, deve ser visto no modo de produção capitalista como um sujeito automático?

Nessa perspectiva, o seu suporte “humano” não poderia também ser encarado como um sujeito, uma criação histórica da época moderna que emergiu junto com a relação de capital? Ou melhor, ele não se configuraria como uma “forma-sujeito”, como um a priori histórico que se encontra na cabeça “humana”, um modo de pensar consentâneo com o próprio modo de ser do sujeito automático? Jappe julga que sim: para ele, na época moderna, o ser humano genérico recebeu a “forma-sujeito” e se tornou, assim, uma mera projeção do capital: “Na sociedade em que domina o fetichismo da mercadoria não pode haver um verdadeiro sujeito humano: é o valor, nas suas metamorfoses (mercadoria e dinheiro), que constitui o verdadeiro sujeito. Os “sujeitos” humanos vão ao seu reboque, são os seus executantes e “funcionários” – “sujeitos” do sujeito automático”.

Na verdade, o que assim se apresenta é um desvio em relação à dialética marxiana. Note-se que, em O capital, Marx não diz nunca do capital que ele é forma. Distintamente, ele diz que a mercadoria e o dinheiro são formas do capital, assumindo assim, evidentemente, que o valor que se valoriza é o “sujeito” posto do capitalismo. O valor é, portanto, o conteúdo dessas formas.

Note-se que, na Lógica de Hegel, o par reflexivo “forma/conteúdo” pertence à lógica da essência (momento em que o sujeito está ainda pressuposto) e que o par “sujeito/objeto” pertence à lógica do conceito (momento em que o sujeito está posto). Logo, se essa mesma lógica se encontra também na apresentação de O capital, a categoria “forma” pressupõe aí a categoria “sujeito”. Assim, no interior desse discurso, a noção “forma-sujeito” que visa compreender o suporte da relação de capital não pode deixar de figurar como arrevesada.

É preciso lembrar aqui a diferença entre determinação e posição que consta da dialética que vem de Hegel e que está presente em Marx. Para este último autor, no capitalismo, o homem não é sujeito posto, mas apenas sujeito pressuposto; isto é, alguém que pode, eventualmente, vir a ser sujeito efetivamente no curso da história. Nesse sentido, como bem mostrou Ruy Fausto, o que está posto na esfera econômica da sociedade são certos predicados históricos do ser genérico “homem”, isto é, grosso modo, os predicados capitalista e trabalhador.

É por isso que Marx considera um e outro como personificações, respectivamente, do capital e da força de trabalho. As pessoas estão aí, sim, mas não como pessoas simplesmente e não também como sujeitos verdadeiros, mas apenas como suportes. É por isso que ele diz: “os personagens econômicos encarnados pelas pessoas nada mais são que as personificações das relações econômicas”.

Em consequência, o sujeito automático referido por Marx não é também um verdadeiro sujeito já que apenas passa nas formas mercadoria e dinheiro, cujos suportes são criados pelo trabalho concreto com a ajuda da natureza. Como essa criação se destina ao mercado, o processo social reduz esses trabalhos concretos a trabalho abstrato, os trabalhos privados a trabalho social, os trabalhos complexos a trabalho simples. Daí a tese de que o trabalho produtor de mercadorias é alienado, é mero despender de energia humana a serviço da produção capitalista. Ou melhor, trata-se um gasto de músculos e cérebros que constitui a base a partir da qual o processo social reduz o trabalho concreto ao trabalho abstrato.

Ademais, uma condição necessária para que o humano genérico se torne um dia sujeito – então, um verdadeiro sujeito – é que tenha sido superado historicamente o fetichismo inerente às formas de existência da sociabilidade mercantil e capitalista. Por outro visor, ele próprio tem de se superar no curso da luta por uma vida boa vindoura, suplantando a alienação e o estranhamento que essa sociabilidade inevitavelmente cria.

Não se pode saber, antes que essa transformação social venha a ocorrer, todas as determinações que esse sujeito humano possa vir a ter. Pode-se antecipar, no entanto, que se trata de um processo de emancipação em que o humano suprime a estrutura social centrada na relação de capital que, enquanto existe, permanece inconsciente para aqueles que aí atuam.

Nada disso implica que o ser sujeitado à lógica do capital, isto é, à racionalidade irracional do sempre mais, sempre mais, sempre mais valor, não possa e não deva ser severamente criticado. Ora, é isto o que Jappe faz no penúltimo capítulo do livro denominado “A crise da forma-sujeito”. Note-se pelo próprio título do capítulo que ele considera esse “sujeitado” como uma “forma-sujeito”. Desse modo, ele critica corretamente o agente revolucionário do marxismo tradicional, pois, em última análise, ele não busca superar a lógica de realimentação positiva inerente ao capital. Ao contrário, quer mantê-la, desejando apenas criar um sistema econômico, nominalmente comandado pela classe trabalhadora, que garanta uma repartição bem mais igualitária do que aquela que é produzida pelo capitalismo baseado em mercados concorrenciais.

A categoria “forma-sujeito” – que Jappe submete à crítica – é mesmo problemática, já que implica no bloqueio de qualquer transformação que possa vir por meio de um processo de autorrealização que se inicie no interior do sistema capitalista. Eis que é preciso iniciar a formação já agora de um sujeito democrático e ecológico que passa respeitar verdadeiramente o ser humano e a natureza. A ideia de forma-sujeito tende a levar o pensamento crítico – crê este resenhista –a um beco sem saída.

No último capítulo do livro, Jappe escreve: “é inútil perder tempo com os mil e um detalhes de uma democracia direta como garantia de antimanipulação (…) se tudo aquilo que se decidir da forma mais democrática for sempre a execução de imperativos sistêmicos inconscientemente pressupostos”. Aquele que lê a conclusão do livro fica com a impressão de que o autor não vê qualquer perspectiva concreta de superação do capitalismo, mesmo se, ao finalizá-lo, tenha declarado, referindo-se às categorias capitalistas, que “é possível viver sem elas”.

A resenha já está adiantada, mas ainda não se mencionou a principal contribuição do livro de Anselm Jappe para uma melhor apreensão da sociedade contemporânea. Ela se encontra nos três primeiros capítulos: “O fetichismo que reina nesse mundo”, “Narcisismo e capitalismo”, “O pensamento contemporâneo perante o fetichismo”.

Esse bloco consiste em um esforço par trazer a reflexão psicanalítica para o campo da crítica da economia política, com a finalidade de obter uma melhor compreensão do capitalismo, em especial, daquele que evolveu depois do fim da II Guerra Mundial. “Ao que parece” – diz ele – “até aqui ninguém tentou investigar a relação entre o narcisismo e a lógica do valor”. Se no capitalismo liberal “a energia libidinal era canalizada para o trabalho, com repressão da sexualidade”, o que gerava neuroses obsessivas, no capitalismo neoliberal ela é dirigida para um consumismo insaciável que, ao normalizar o narcisismo, aprisiona as pessoas num vazio sem fim.

Como ele aponta, parece haver um elo entre a perversão narcisista e a exacerbação da concorrência não só no sistema econômico, mas também no mundo da vida social e cultural. A lógica da competição, que tem sempre em vista fazer o dinheiro gerar mais dinheiro, exige pessoas frias, calculistas, egoístas que tomam o seu arredor, isto é, as coisas e as pessoas, meramente como objeto de manipulação e de exploração com vistas à satisfação dos próprios “egos” que, na verdade, não estão no comando.

Jappe quer mostrar que esse modo de ser pode ser derivado do “narcisismo secundário”, ou seja, do sentimento ególatra para o qual não há psicologicamente um mundo exterior independente e que tem vida própria. Pois, o narcisista vê o entorno como uma mera de projeção de si mesmo. Mesmo se ele se serve desmedidamente das pessoas e das coisas, “o seu mundo interior é muito pobre: ele não investe nada nas suas relações com as pessoas e as coisas e, por conseguinte, nada recebe delas que verdadeiramente o felicita”.

Bem, é preciso mencionar que o livro de Jappe aqui comentado consiste, nesse ponto, em uma retomada da temática da obra de Christopher Lasch, principalmente a desenvolvida em A cultura do narcisismo (Imago, 1983) e O mínimo eu (Brasiliense, 1986). Esse autor, já na década dos anos 1970, foi capaz de trazer a reflexão psicanalítica para uma melhor compreensão da sociedade contemporânea, em especial, dos Estados Unidos, sem conectá-la, entretanto, à lógica do capital.

Para finalizar, é preciso dizer que o percurso de Anselm Jappe nesse longo volume atravessa muitos campos do conhecimento: filosofia, economia política, psicanálise, sociologia e política. E que, por isso, não se oferece facilmente para uma síntese compreensiva. Mas também – veja-se – este não é e não pode ser o objetivo da resenha. Ela apenas pretende deixar um convite para que A sociedade autofágica seja lido, discutido e, eventualmente, criticado, já que encerra uma temática decisiva para todos aqueles que não querem se conformar com o destino que nele se projeta – ainda que de um modo fortemente crítico.

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