A saúde é um bem público mundial

"As vacinas já são hoje consideradas o novo ouro líquido, sucedendo ao ouro líquido do século XX, o petróleo", escreve o sociólogo Boaventura Sousa Santos

(Foto: Prefeitura de Sorocaba/Divulgação)


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Por Boaventura de Sousa Santos

É hoje consensual que a atual pandemia vai ficar conosco muito tempo. Vamos entrar num período de pandemia intermitente cujas características precisas ainda estão por definir. O jogo entre o nosso sistema imunitário e as mutações do vírus não tem regras muito claras. Teremos de viver com a insegurança, por mais dramáticos que sejam os avanços das ciências biomédicas contemporâneas. Sabemos poucas coisas com alguma certeza.

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Sabemos que a recorrência de pandemias está relacionada com o modelo de desenvolvimento e de consumo dominantes, com as mudanças climáticas que lhes estão associadas, com a contaminação dos mares e dos rios e com o desmatamento das florestas. Sabemos que a fase aguda desta pandemia (possibilidade de contaminação grave) só terminará quando entre 60% e 70% da população mundial estiver imunizada. Sabemos que esta tarefa está a ser dificultada pelo agravamento das desigualdades sociais dentro de cada país e entre países, combinado com o fato de a grande indústria farmacêutica (Big Pharma) não querer abdicar dos direitos das patentes sobre as vacinas. As vacinas já são hoje consideradas o novo ouro líquido, sucedendo ao ouro líquido do século XX, o petróleo.

Sabemos que as políticas de Estado, a coesão política em torno da pandemia e o comportamento dos cidadãos são decisivos. O maior ou menor êxito depende da combinação entre vigilância epidemiológica, redução do contágio por via de confinamentos, eficácia da retaguarda hospitalar, melhor conhecimento público sobre a pandemia e atenção às vulnerabilidades especiais. Os erros, as negligências e até os propósitos necrófilos por parte de alguns dirigentes políticos têm resultado em formas de políticas de morte por via sanitária que designamos por darwinismo social: a eliminação de grupos sociais descartáveis por serem velhos, por serem pobres ou discriminados por razões étnico-raciais ou religiosas.

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Sabemos, finalmente, que o mundo europeu (e norte-americano) mostrou nesta pandemia a mesma arrogância com que tratou o mundo não europeu durante os últimos cinco séculos. Como imaginar que o melhor conhecimento técnico-científico provém do mundo ocidental, não quis aprender com o modo como outros países do Sul Global têm lidado com epidemias e, especificamente, com este vírus. Muito antes que os europeus se dessem conta da importância da máscara já os chineses a consideravam de uso obrigatório. Por outro lado, devido a uma mistura tóxica de preconceito e de pressão por parte dos lobistas ao serviço das grandes empresas farmacêuticas ocidentais, a União Europeia (UE), os EUA e o Canadá recorreram exclusivamente às vacinas produzidas por estas empresas, com consequências que por agora são imprevisíveis.

Para além de tudo isto, sabemos que está instalada uma guerra geoestratégica vacinal muito mal disfarçada por apelos vazios ao bem-estar e à saúde da população mundial. Segundo a revista Nature de 30 de Março passado, o mundo precisa de onze biliões de doses de vacina (na base de duas doses por pessoa) para atingir a imunidade de grupo a nível global. Até fins de fevereiro, estavam confirmadas encomendas de 8,6 bilhões de doses, das quais seis bilhões eram destinadas aos países ricos do Norte Global. Isto significa que os países empobrecidos, que constituem 80% da população mundial, terão acesso a menos de um terço das vacinas disponíveis.

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Esta injustiça vacinal é particularmente perversa porque, dada a comunicação global que caracteriza o nosso tempo, ninguém estará verdadeiramente protegido enquanto o mundo todo não estiver protegido. Acresce que, quanto mais tempo se demorar a atingir a imunidade de grupo global, maior é a probabilidade de as mutações do vírus se tornarem mais perigosas para a saúde e mais resistentes às vacinas disponíveis. Um estudo recente, que reuniu 77 cientistas de vários países do mundo, concluiu que dentro de um ano ou menos as mutações do vírus tornarão ineficaz a primeira geração de vacinas. Isto será tanto mais provável quanto mais tempo levar a vacinar a população do mundo. Ora, segundo os cálculos da People’s Vaccine Alliance, ao ritmo atual, apenas 10% da população dos países mais pobres estará vacinada até o fim do próximo ano. Mais atrasos irão traduzir-se em uma maior proliferação de notícias falsas, a infodemia, como lhe chama a OMS, que tem sido particularmente destrutiva na África.

É hoje consensual que uma das medidas mais eficazes será a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre as patentes da vacina para a Covid por parte das grandes empresas farmacêuticas. Esta suspensão tornaria a produção de vacinas mais global, mais rápida e mais barata. E assim mais rapidamente se atingiria a imunidade de grupo global. Para além da justiça sanitária que esta suspensão permitiria, há outras boas razões para a defender. 

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Por um lado, os direitos de patente foram criados para estimular a concorrência em tempos normais. Os tempos de pandemia são tempos excepcionais que, em vez de concorrência e rivalidade, exigem convergência e solidariedade. Por outro lado, as empresas farmacêuticas já embolsaram bilhões de euros de dinheiro público a título de financiamento para fomentar a pesquisa e o desenvolvimento mais rápido das vacinas. Acresce que há precedentes de suspensão das patentes, não só no caso dos retrovirais para controle do HIV/sida, como no caso da penicilina durante a Segunda Guerra Mundial. Se estivéssemos numa guerra convencional, certamente a produção a distribuição de armas não estaria entregue ao controlo das empresas privadas que as produzem. O Estado certamente interviria. Não estamos numa guerra convencional, mas os danos que ela causa na vida e no bem-estar das populações podem vir a ser similares (quase três milhões de mortos até hoje).

Não admira, pois, que exista hoje uma vasta coligação global de organizações não-governamentais, Estados e agências da ONU em favor do reconhecimento da saúde como um bem público e não como um negócio, e a consequente suspensão temporária dos direitos de patentes. Muito além das vacinas, este movimento global incide na luta pelo acesso de todos à saúde, pela transparência e controle público dos recursos públicos envolvidos na produção de medicamentos e de vacinas. Por sua vez, cerca de 100 países, liderados pela Índia e pela África do Sul, já solicitaram à Organização Mundial do Comércio a suspensão dos direitos de patente referentes às vacinas. Entre estes países não se encontram os países do Norte Global. Por esta razão, a iniciativa da Organização Mundial de Saúde para garantir o acesso global à vacina (COVAX) está destinada a fracassar.

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Não esqueçamos que, segundo dados do Corporate Europe Observatory, a Big Pharma gasta por ano entre 15 e 17 milhões de euros para pressionar as decisões da União Europeia, e que o conjunto da indústria farmacêutica tem 175 lobistas em Bruxelas a trabalhar com o mesmo propósito. A escandalosa falta de transparência dos contratos sobre as vacinas é o resultado desta pressão. Se Portugal quisesse conferir distinção e verdadeira solidariedade cosmopolita à presidência atual do Conselho da União Europeia teria aqui um bom tema para protagonismo. Tanto mais que outro português, o secretário-geral da ONU, acaba de fazer um apelo no sentido de se considerar a saúde como um bem público mundial.

Tudo leva a crer que, neste domínio como noutros, a UE continuará a abdicar de qualquer responsabilidade mundial. Com a pretensão de se manter colada às políticas globais dos EUA, pode neste caso vir a ser ultrapassada pelos próprios EUA. A administração Biden está a considerar suspender a patente sobre uma tecnologia relevante para as vacinas desenvolvida em 2016 pelo Instituto Nacional da Alergia e Doenças Infecciosas.

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