A saúde da urna eletrônica

"O voto de cabresto, a urna grávida e o mapa da apuração deformavam a democracia. Mas a urna eletrônica goza de boa saúde", escreve Paulo Capel Narvai

Funcionária da Justiça Eleitoral com urnas eletrônicas
Funcionária da Justiça Eleitoral com urnas eletrônicas (Foto: REUTERS/Rodolfo Buhrer)


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Por Paulo Capel Narvai 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Dedos indicadores sobretudo, mas também anelares e médios, direitos e esquerdos, de mais de 156 milhões de eleitoras e eleitores, digitarão teclas cujos números elegerão homens e mulheres, das esquerdas e das direitas, para ocuparem cargos nos poderes legislativo e executivo da República Federativa do Brasil. Sim, há certamente eleitores que, por preferência ou necessidade, usarão seus dedos mínimo ou polegar para exercerem esse direito, tão singelo quanto poderoso. Um direito, aliás, que justamente por singelo e poderoso, é negado a muitos povos e muito temido por ditadores e ditaduras.

Vai acontecer no domingo 2 de outubro de 2022, data que, de algum modo, moverá a roda da história brasileira. Faço essa menção aos dedos das mãos, pois nessas eleições estará em disputa, uma vez mais, o rumo que a cidadania quer para o país.

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Com o indicador na vertical e o polegar na horizontal, formando a letra “L”, está Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato que aparece mais bem-posicionado nas pesquisas eleitorais para a presidência da República.

Com o indicador na horizontal, formando com o polegar um ângulo reto, está Jair Bolsonaro, o atual ocupante do Palácio do Planalto, que aparece em segundo lugar nas pesquisas. Seu símbolo, cuja forma remete à arma de fogo, também utilizado em 2018, indica o seu desapreço pelo regime de governo e as instituições que o Estado Democrático de Direito criou ou fortaleceu, sob a égide da Constituição de 1988.

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Embora o mandato de Jair Bolsonaro tenha se originado de urnas eletrônicas e das disposições eleitorais asseguradas pela Carta de 1988, ele hostiliza ambas desde bem antes das eleições que o colocaram no posto de primeiro mandatário. Não se sabe bem o que ele pretende para a República e suas instituições, e para o futuro do país, pois seu pensamento sobre isso é rudimentar. Com grande frequência, faz fundir questões de Estado, com temas de governo e assuntos familiares, interesses de amigos e objetivos obscuros. À transparência, um princípio da administração pública, fixado pela Constituição de 1988, Jair Bolsonaro prefere a opacidade do segredo por 100 anos, decretado para assuntos irrelevantes ao Estado brasileiro, como a prisão de um ex-jogador de futebol, ou processos disciplinares do Exército, conforme revelou o jornal O Estado de S.Paulo, dentre pelo menos outros 65 casos.

Mas se suas ideias são obscuras e o pensamento primário, simplório e confuso, seus atos e declarações como chefe de Estado, desde 1º de janeiro de 2019, não deixam qualquer dúvida quanto ao modo como ele supõe deve ser a finalidade do seu governo e o exercício do poder presidencial. Esse modus operandi e suas consequências na vida nacional foram registrados por Ricardo Musse e Paulo Martins no livro Primeiros anos de (des)governo, lançado no final de 2021 e que, muito oportunamente, não se atém aos primeiros anos.

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Em resenha sobre o livro, publicada por Max Gimenes no Jornal da USP, a finalidade do governo é definida por Laymert Garcia dos Santos (na pág. 220), como “uma política deliberada de destruição das instituições, de decomposição da nação e de desconstituição da sociedade brasileira”. No centro desse projeto político está “o ataque sistemático ao pacto da Constituição de 1988, que apontava para o horizonte de construção de uma nação moderna que superasse os males de um passado colonial, escravista, patriarcal, patrimonialista, autoritário etc., com Estado de direito, democracia política, soberania econômica e bem-estar social”.

No próximo domingo, eleitores, em todo o país, decidirão, com seus dedos polegar e indicador, ou com os demais, em urnas eletrônicas, que destino querem dar a Jair Bolsonaro: se o reconduzem para seguir no comando da República ou se o defenestram. Diferentemente de 2018, cujas eleições foram marcadas por deformações políticas, manipulações pela mídia corporativa e em redes sociais digitais, arbitrariedades judiciais, e insegurança pública que lhe comprometeram a legitimidade, em 2022 o cenário é diferente, não obstante agressões e violências que, sistematicamente, têm como vítimas militantes que se opõem, de algum modo, ao bolsonarismo, fenômeno político-ideológico que vai além da figura que lhe dá identidade.

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Não é a primeira vez que, de modo tão cabal, essa questão do rumo que a cidadania quer dar ao país emerge com tanta relevância histórica.

Meu primeiro voto aconteceu em 1974. Não havia, à época, eleições para governadores, que eram escolhidos pela ditadura e “eleitos” indiretamente nas Assembleias Legislativas. Eu vivia em Curitiba, onde estudava e trabalhava. Naquele ano, eu poderia votar em candidatos a deputado estadual e federal e ao Senado. Mas oscilava entre o que ouvia de quem considerava que “só a luta armada derruba a ditadura” e, portanto, desdenhava do voto em eleições “controladas pela ditadura” (sem liberdade partidária, havia apenas dois partidos, ARENA e MDB, cujos nomes, aliás, sequer podiam conter o termo ‘partido’), e o que me diziam aquelas e aqueles que, valorizando o voto e as eleições, lutavam “pelas mais amplas” “liberdades democráticas”. Decidi comparecer às urnas e votar. Ajudei a eleger, pelo MDB, Leite Chaves, senador e Euclides Scalco, seu suplente.

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Assim como eu naquele ano, milhões de eleitores em todo o Brasil impuseram à ditadura uma fragorosa derrota eleitoral. Apesar de a ARENA ter tido mais votos para a Câmara dos Deputados, sua derrota foi acachapante para o Senado: 2 em cada 3 eleitores votaram no MDB. Nos 22 estados que compunham nossa federação naquele ano, a ARENA elegeu apenas seis senadores. E o MDB ampliou muito sua presença na Câmara, fazendo a ditadura perder parte importante do controle que ainda detinha sobre o Congresso Nacional.

Refiro-me às eleições de 1974 porque aquelas foram, como também o são as do próximo domingo, dessas eleições que recolocam as coisas nos eixos, de onde nunca deveriam ter saído, não fosse a história o que é.

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Desde 1996, e especialmente a partir das eleições municipais de 2000, quando todos os eleitores passaram a votar utilizando urnas eletrônicas, esse tipo de equipamento tem possibilitado modernizar e agilizar o processo de votação e os procedimentos de apuração dos resultados. Nas duas últimas décadas, seu uso foi sendo ampliado e a tecnologia desenvolvida, pari passu ao próprio desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, aprimorando-se controles variados e aumentando a segurança de eleitores e candidatos. Para o Tribunal Superior Eleitoral, o “voto eletrônico foi uma grande revolução no processo eleitoral brasileiro”.

Decerto que ainda no século passado havia sido superado – e nisso teve importante papel a Revolução de 1930 –, o cenário descrito por Victor Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto, marcado pelo controle de um “lote considerável de votos de cabresto” pelo “coronel”. O controle da base do processo eleitoral dava ao líder político local a possibilidade de concentrar “em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais” dentre as quais “com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que frequentemente se desincumbe com a sua pura ascendência social” ou “com o auxílio de empregados, agregados ou capangas”.

Não obstante, persistiram, durante todo o século XX, os mecanismos de adulteração da vontade dos eleitores, que se expressavam por fraudes de várias ordens, praticadas em longos períodos de apuração dos votos, mas que se iniciavam ainda na etapa de cadastramento de eleitores, antes da votação. A precariedade dos controles administrativos tornava possível a uma pessoa ter vários títulos eleitorais.

Na etapa de apuração dos votos, qualquer cédula mal preenchida era motivo para impugnar votos e urnas por inteiro, mesmo quando se tratava de apenas marcar um “X”, ou quando havia algum erro ortográfico ao escrever o nome ou número do candidato. Sim, caro leitor, cara leitora, os eleitores escreviam nas cédulas eleitorais; mas, claro, muitas vezes isso era feito após as urnas se fecharem, durante a apuração, por “fiscais” de partidos, e mesmo alguns escrutinadores, hábeis nessa prática quando outros presentes “dormiam no ponto”.

Era ainda pior, antes de os eleitores terem de preencher as cédulas. Houve um tempo em que bastava ao eleitor(a) colocar na urna cédulas previamente preenchidas com os nomes dos candidatos da sua preferência. É desse período o fenômeno conhecido como “urna grávida”, segundo o qual no início de uma votação a urna “gestante” já estava cheia de votos.

No período em que não mais eram aceitas cédulas previamente preenchidas, a recontagem de votos era uma enfadonha rotina, frequentemente solucionada apenas com a intervenção da polícia e do juiz eleitoral – que arbitravam o conflito ao seu modo e, claro, de acordo com suas convicções.

Não havia controle eficaz sobre os ambientes de apuração, aos quais tinham acesso não apenas os escrutinadores, mas também os fiscais dos partidos, às dezenas. Havendo interesse, era muito fácil instaurar a balbúrdia e tirar proveito da bagunça. Em decorrência, frequentemente, algum “mapa de votação” registrava outro estranho fenômeno: a urna tinha recebido mais votos do que o número de eleitores inscritos naquela seção eleitoral.

Os mapas eleitorais, consolidando o resultado da apuração das urnas por seções, eram preenchidos por um escrutinador e muito vulneráveis à conveniência de quem os preenchessem. Apresentado algum recurso, a solução era a recontagem, o que tomava tempo, cansava os envolvidos e aumentava a pressão sobre escrutinadores. Era evidente a vulnerabilidade e os indícios de fraudes marcavam as eleições realizadas com urnas de papelão, cédulas de papel e apurações sem controle eficaz, transparência e possibilidade de automação.

Em A doença como metáfora, livro de 1978, a escritora estadunidense Susan Sontag, falecida em 2004, desenvolve a noção, também presente em vários outros escritores e artistas que se ocuparam desse tema, das enfermidades como metáfora do mal, do indesejado, do que deve ser banido, excluído. Isso se aplicaria à peste, à sífilis, à hanseníase, à tuberculose, ao câncer. Também à AIDS, tema de outro livro de Sontag, publicado em 1989. Bolsonaro vê (ou finge que vê) a urna eletrônica como uma doença, uma espécie de peste, o mal, que estaria a deformar a expressão da vontade popular, a qual, segundo a sua peculiar percepção dos fatos, o apoiaria por esmagadora maioria.

No ano em que a República comemorou seu primeiro centenário, em 1989, a eleição presidencial, vencida por Fernando Collor de Mello, foi realizada sem urnas eletrônicas. É certo que não houve “urnas grávidas”, mas não se pode dizer que a apuração foi isenta. Os resultados de alguns estados, como a Bahia, só chegaram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) muitos dias após o fechamento das urnas. Eu, até hoje, tenho muitas dúvidas sobre quem foi efetivamente eleito para a presidência da República naquele pleito. Aquelas urnas estavam gravemente enfermas.

Em 2022, quando o Brasil comemora o bicentenário da Independência, as eleições se realizarão com o emprego de urnas eletrônicas, utilizando o que há de mais avançado em nível mundial na tecnologia da informação e comunicação. O voto de cabresto, a urna grávida e o mapa da apuração eram doenças que deformavam a democracia. Mas a urna eletrônica que agora utilizaremos goza de boa saúde, sem dúvida.

Na reta final da campanha eleitoral, Jair Bolsonaro constatou a migração de votos de candidatos de centro-direita para Lula, isolando-o na extrema direita. Sem poder reagir, se fez de tonto e, alegando “problemas no TSE”, ameaçou a… urna eletrônica. Segundo sua disparatada visão das coisas, tudo estaria bem, não fosse a urna eletrônica. Por razões que se pode facilmente deduzir, ele a rejeita visceralmente, evidenciando uma vez mais que seu negacionismo é de conveniência. Nega a pandemia, nega a vacina, nega a urna eletrônica, nega direitos, nega o diferente e a diferença, nega a ciência e a cultura, nega o Estado Democrático de Direito.

Nega por não ter o que afirmar para enfrentar e resolver os problemas que importam.

De minha parte, em 2 de outubro de 2022, utilizarei o polegar e o indicador para digitar dois números diferentes. Ambos estarão na posição vertical. E o farei com a esperança de que a maioria dos eleitores também faça isso: que usem a cabeça para comandar suas mãos e, com os dedos, desarmem o país.

Agora, como em 1974, trata-se de dar um “rotundo não”, como diria Leonel Brizola, aos “filhotes da ditadura” e transformar cada voto em um sonoro sim ao Estado Democrático de Direito.

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