A sabotagem ao papa por bispos conservadores

Este ano o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja são os “serviços públicos”. Se não for percebido, ao longo dessa campanha, que serviços públicos decentes estaduais dependem de finanças saudáveis, sendo que é virtualmente impossível ter finanças saudáveis sem resolver a questão da dívida dos Estados, a campanha será inútil

A sabotagem ao papa por bispos conservadores
A sabotagem ao papa por bispos conservadores (Foto: TONY GENTILE/Reuters)


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Nasci num ambiente católico mas não sou praticante. Entretanto, nos anos recentes, desenvolvi profunda simpatia em relação ao Papa Francisco pelo seu compromisso inarredável com os pobres e desassistidos. Todas as pessoas preocupadas com a justiça social, em todas as suas dimensões, e em especial na dimensão política, tem no Papa Francisco o líder mundial mais eminente da atualidade. Ele trouxe a Igreja Católica a uma posição moral que não se compara  à posição de nenhum dos seus predecessores na era moderna.

Pois bem, o Papa aprovou e mandou divulgar um documento sobre questões monetárias sob o título de “Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”. Enganam-se os que pensam tratar-se apenas de uma abordagem moral. É um libelo devastador, absolutamente fundamentado em análises  técnicas, sobre a forma como o sistema financeiro neoliberal está escravizando o mundo e promovendo uma das maiores concentrações de renda da história do capitalismo.

Acontece que a forma abrangente como Mamon, o dinheiro, passou a dominar o mundo nas últimas décadas não obedece fronteiras, sequer fronteiras religiosas. A maioria do bispado brasileiro, francamente de direita, ignorou o documento do Papa e está literalmente  sabotando a sua difusão no país. Dada sua extrema importância, era natural que todas as dioceses promovessem seminários e cursos sobre ele para orientar seus fiéis sobre o posicionamento político que precisam ter diante da praga da financeirização. E convocassem para dar aulas professores que não seja do mercado, mas que falam no interesse comum e não no interesse de suas carteiras, como é o caso da maioria da imprensa econômica.

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Quero explicar esse conceito, numa linguagem menos formal que a do documento. Darei três exemplos, um da bancarização dos pobres, outra da financeirização das receitas públicas estaduais, outro da chamada securitização de créditos públicos. O que chamam de bancarização dos pobres é, por exemplo, o empréstimo consignado. Como todo mundo sabe, é um empréstimo sem risco para o banco pois as prestações correspondentes são descontadas em folha. Os juros, dependendo do caso, podem chegar a 40% ou mais de um salário.

O apelo para o tomador de um empréstimo consignado é a taxa de juros aparentemente baixa. É que os juros de mercado são um assalto. Quando se compara a altura do Corcovado com o pico do Everest, o Corcovado parece baixo. Contudo, quando observado isoladamente, é um gigante. O efeito da financeirização é pôr o pobre para rodar na ciranda financeira. O pagamento das prestações precede a qualquer outro débito ao banco, impedindo qualquer forma de atraso, inclusive os indispensáveis para pagar despesas imprevistas.

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Já a financeirização de parte das receitas públicas estaduais foi um expediente inventado no fim dos anos 90. Trata-se da imposição aos Estados, pela União, de uma dívida paga anteriormente pela totalidade dos contribuintes. Com isso estão sendo saqueadas as receitas públicas estaduais a fim de enterrar o resultado do roubo,na forma de superávit primário, na ciranda financeira da dívida pública. Fiz um  livro, “Acerto de Contas”, onde provo que a maior parte dessa dívida é nula, o que espero venha a ser  base de um conflito federativo na hora oportuna.

Para se ter uma idéia das dimensões dessa dívida, ela se elevava a R$ 111 bilhões em fins de 1997, quando foi consolidada como dívida dos Estados em bancos privados e paga com títulos públicos. Se foi paga com títulos públicos, não tinha porque ser ilegalmente repassada para trás aos Estados porque os títulos públicos (ou mesma a moeda) são passivos de toda a sociedade, inclusive dos contribuintes estaduais. O resultado, porém, é que os Estados haviam pago à União, até fins de 2016, nada menos que R$ 277 bilhões em prestações sucessivas. E restam a pagar, contabilizando juros extorsivos, R$ 497 bilhões!

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É claro que não há nenhuma razão individual, maior que esta, para a degradação dos serviços públicos estaduais de saúde, educação e segurança, funções principais dos Estados. Note-se que as prestações são cumulativas. Cada uma delas representa uma espécie de desinvestimento anual nesses setores, carreando os recursos correspondentes para o Tesouro federal fazer superávit primário, com um tremendo efeito contracionista na economia. Como disse, é a financeirização das receitas públicas estaduais, pois do superávit primário queimado na dívida pública, como do inferno, nada volta para girar a economia.

Este ano o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja são os “serviços públicos”. Se não for percebido, ao longo dessa campanha, que serviços públicos decentes estaduais dependem de finanças saudáveis, sendo que é virtualmente impossível ter finanças saudáveis sem resolver a questão da dívida dos Estados, a campanha será inútil. Não mais do que uma ladainha de lamentações sobre o estado da saúde pública, da educação e da segurança, sem qualquer menção às causas. Não seria o caso de os bispos, conservadores ou progressistas, explicarem a suas ovelhas, como Papa Francisco, a razão da degradação dos serviços?

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Talvez o mais descarado instrumento de financeirização da economia brasileira seja o projeto da chamada “securitização” de débitos públicos. É um acinte, que vem sendo tentado no Congresso há  dois anos e que agora, segundo o técnico Paulo Lindsay, da Auditoria da Dívida, entrou como jabuti em cima de árvore na proposta de reforma da Previdência. Em resumo, o projeto cria o que chama de “empresas financeiras independentes” às quais são repassados créditos públicos já negociados, líquidos e certos, com imensos descontos. Volta-se assim ao tempo do cobrador privado de impostos, com a diferença de que, no caso da chamada empresa independente, trata-se de créditos líquidos e certos.

É claro que esses exemplos são uma pálida amostra da financeirização à brasileira. Aqui o problema é mais grave que no resto do mundo porque o coração da financeirização é a atuação do próprio Banco Central, na forma como estabelece no Copom a taxa básica de juros e gere a dívida pública. Também diferente do resto do mundo o Tesouro atua na ponta contracionista da economia ao forçar a realização de superávits primários – situação que não se altera quando há, como agora, déficit nominal devido a queda generalizada da receita por causa da situação da economia e correspondente a juros e amortizações, porque juros não se transformam em investimento público produtivo.

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O fato é que, subordinados ao processo de financeirização, os setores públicos estaduais e federal atuam na mesma linha de contrair a economia, em ajuste fiscal permanente. Não admira que as receitas tributárias, nos dois planos, estejam despencando, pois necessariamente acompanham a recessão da economia. Só os idiotas e os que estão de longe, idiotas ou não, como os formuladores do FMI e do Banco Mundial, prevêem uma recuperação da economia neste ano. A meu ver, dadas as medidas tomadas e indicadas, será nova contração, seguindo os 8% acumulados de desastre do PIB na era Temer.

Mas voltemos ao Papa Francisco e seu libelo contra a financeirização, diante do qual o episcopado brasileiro apresenta  um comportamento estranhamente indiferente. Não sei se se trata de desconhecimento da realidade ou de submissão a assessores que carregam a marca de Caim do neoliberalismo. Entretanto, ou eles acordam e ajudam a promover a superação das manipulações da grande imprensa e de parte da academia nesse terreno, ou a Igreja, na  sua parte moral e ética, se tornará irrelevante.  A questão da pedofilia abalou a vida eclesiástica, mas está sendo tratado a ferro e fogo por Francisco, que assim honra a Igreja. Mas na mesma linha de crítica ele colocou a subordinação a Mamon. Do meu ponto de vista, tendo em vista o destino material e espiritual da humanidade, a mamonfilia, dentro da Igreja, é um cancro ainda mais terrível que a pedofilia. 

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