A Rússia pretende realizar o sonho da Grande Eurásia
O papel da Rússia será o de equilibrar as potências hegemônicas como avalista de uma nova união das nações não-alinhadas
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
O professor Sergey Karaganov é informalmente conhecido nos altos círculos da política externa como o "Kissinger russo" - com o bônus extra de não carregar o selo de "criminoso de guerra" em razão do Vietnã, do Camboja, do Chile e de outros ainda.
Karaganov é diretor da Faculdade de Economia Mundial e Questões Internacionais da Escola Superior de Economia da Universidade Nacional de Pesquisas. Ele também é presidente de honra do Presidium do Conselho de Política Externa e Defesa da Rússia.
Em dezembro de 2018, tive o prazer de ser recebido no gabinete de Karaganov, em Moscou, para uma conversa em particular tratando essencialmente da Grande Eurásia - o caminho russo para a integração da Eurásia.
Mais recentemente, Karaganov expôs de maneira mais extensa seus principais pontos de vista para um veículo italiano atlanticista mais conhecido por seus mapas que por suas "análises" previsíveis, que parecem saídas diretamente de um press release da OTAN.
Mesmo observando corretamente que a União Europeia é uma "instituição profundamente ineficiente", rumando lentamente para a dissolução, - o que é em grande medida um eufemismo - Karaganov diz que as relações Rússia-União Europeia estão a caminho de uma relativa normalização.
Esse assunto, já há meses, vem sendo intensamente discutido nos corredores de Bruxelas. Não exatamente a agenda imaginada pelo Deep State e pelo governo Trump, por sinal. O grau de exasperação com as palhaçadas do Time Trump não tem precedentes.
Mesmo assim, como Karaganov reconhece: "As democracias ocidentais não sabem como existir sem um inimigo". Entram em cena os chavões de rotina de Stoltenberg, o secretário-geral da OTAN, sobre a "ameaça" russa.
Ao mesmo tempo em que o comércio da Rússia com a Ásia passa a equivaler a seu comércio com a União Europeia, uma nova "ameaça" surge na Europa: a China.
Uma Aliança Inter-Parlamentar sobre a China acaba de ser inventada na semana passada, como mais uma plataforma de demonização, congregando representantes do Japão, Canadá, Austrália, Alemanha, Reino Unido, Noruega e Suécia, bem como membros do Parlamento Europeu.
A China, "liderada como é pelo Partido Comunista", deve ser enfrentada como uma "ameaça" aos "valores ocidentais" - a mesma tríade de sempre - democracia, direitos humanos e neoliberalismo. A paranóia encarnada na dupla "ameaça" Rússia-China nada mais é que uma ilustração explícita do principal conflito do Grande Tabuleiro de Xadrez: a OTAN versus a integração eurasiana.
Uma grande potência asiática
Karaganov explica a crucial parceria estratégica Rússia-China com uma fórmula fácil de entender: na mesma medida que Pequim encontra um forte apoio no poder estratégico da Rússia em contraposição aos Estados Unidos, Moscou pode contar com o poderio econômico da China.
Ele lembra o fato crucial de que, na época em que a pressão do Ocidente sobre a Rússia estava no auge, depois do Maidan e do referendo da Crimeia, "Pequim ofereceu a Moscou um crédito praticamente ilimitado, mas a Rússia decidiu enfrentar a situação sozinha".
Um dos benefícios subsequentes foi que a Rússia e a China pararam de competir uma com a outra na Ásia Central - algo que vi com meus próprios olhos em minhas viagens no fim do ano passado.
Isso não significa que a competição tenha sido eliminada. Conversas com outros analistas russos revelaram que o medo de um excesso de poder chinês ainda persiste, principalmente quando se trata das relações da China com estados mais fracos e não-soberanos. Mas o cerne da questão, para um brilhante praticante da realpolitik como Karaganov, é que o "pivotar para o leste" e o acordo estratégico com a China favoreceram a Rússia no Grande Tabuleiro de Xadrez.
Karaganov entende perfeitamente o DNA russo de grande potência asiática - levando em conta desde a política autoritária até a riqueza da Sibéria em recursos naturais.
A Rússia, diz ele, é "próxima da China em termos de uma história em comum, apesar da enorme distância cultural que as separa. Até o século XV, ambos os países pertenciam ao Império de Genghis Khan, o maior de toda a história. Se a China assimilou os mongóis, a Rússia acabou por expulsá-los, mas em dois séculos e meio de submissão, incorporou muitos traços asiáticos".
Karaganov vê Kissinger e Brzezinski como "estrategistas lúcidos", e lamenta que, apesar de eles terem sugerido o contrário, "a classe política americana" tenha inaugurado uma "nova Guerra Fria" contra a China. Ele explica o objetivo de Washington como sendo o de se lançar em uma "Última Batalha", tirando partido das bases avançadas que os Estados Unidos ainda dominam naquilo que Wallerstein definiria como nosso sistema mundial em vias de colapso.
O Novo Movimento Não-Alinhado
Karaganov é muito arguto quanto à veia independente característica da Rússia - que sempre se contrapõe ferozmente a "qualquer um que aponte para uma hegemonia global ou regional: dos descendentes de Genghis Khan a Carlos XII da Suécia, de Napoleão a Hitler. Nas esferas militar e política, a Rússia é auto-suficiente, embora não o seja nas esferas econômica, tecnológica e cibernética, nas quais ela necessita de mercados e parceiros externos, que ela irá procurar e encontrar".
O resultado é que o sonho da reaproximação Rússia-União Europeia permanece vivo, mas agora sob uma "ótica eurasiana".
É aí que entra o conceito da Grande Eurásia, como discuti com Karaganov em nosso encontro: "uma parceria multilateral e integrada, com o apoio oficial de Pequim, baseada em um sistema igualitário de vínculos econômicos, políticos e culturais entre os diversos estados", com a China desempenhando o papel de primus inter pares. E isso incluiria "uma parte significativa do extremo ocidental do continente eurasiano, ou seja, a Europa".
É para essa situação que a evolução do Grande Tabuleiro parece apontar. Karaganov – de forma correta – identifica o Oeste e o Norte da Europa como atraídos para o "polo americano", enquanto o Sul e o Leste europeus "inclinam-se para o projeto eurasiano".
O papel da Rússia, nessa estrutura, será o de "equilibrar as duas potências possivelmente hegemônicas", como "avalista de uma nova união das nações não-alinhadas". Isso sugere uma nova e interessantíssima configuração do Movimento dos Países Não-Alinhados.
Então, temos agora a Rússia como um dos baluartes de uma nova parceria multilateral e multivetorial, abandonando, finalmente, o status de "periferia da Europa ou da Ásia" para se tornar um dos principais centros do Norte Eurasiano. Um trabalho em - sólido - andamento.
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