A Revolução Russa, na visão de García Linera

"Que visão pode ter um revolucionário do século XXI na América Latina, sobre a epopeia dos bolcheviques 100 anos depois? Ninguém melhor que Alvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o mais importante intelectual contemporâneo no continente, para fazer uma releitura da revolução russa, no seu centenário", escreve o sociólogo Emir Sader, em seu blog no 247; Linera acaba de publicar o livro "O que é uma revolução? - Da Revolução Russa de 1917 à revolução dos nossos tempos"

"Que visão pode ter um revolucionário do século XXI na América Latina, sobre a epopeia dos bolcheviques 100 anos depois? Ninguém melhor que Alvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o mais importante intelectual contemporâneo no continente, para fazer uma releitura da revolução russa, no seu centenário", escreve o sociólogo Emir Sader, em seu blog no 247; Linera acaba de publicar o livro "O que é uma revolução? - Da Revolução Russa de 1917 à revolução dos nossos tempos"
"Que visão pode ter um revolucionário do século XXI na América Latina, sobre a epopeia dos bolcheviques 100 anos depois? Ninguém melhor que Alvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o mais importante intelectual contemporâneo no continente, para fazer uma releitura da revolução russa, no seu centenário", escreve o sociólogo Emir Sader, em seu blog no 247; Linera acaba de publicar o livro "O que é uma revolução? - Da Revolução Russa de 1917 à revolução dos nossos tempos" (Foto: Emir Sader)


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Que visão pode ter um revolucionário do século XXI na América Latina, sobre a epopeia dos bolcheviques 100 anos depois? Ninguém melhor que Alvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o mais importante intelectual contemporâneo no continente, para fazer uma releitura da revolução russa, no seu centenário.

Ao invés de densos e repetitivos seminário acadêmicos de celebração de 1917, um dirigente político da esquerda latino-americana do século XXI se volta sobre o acontecimento fundamental da história do século XX com os olhos contemporâneos e a cabeça posta no futuro.

No seu livro "O que é uma revolução?", publicado agora pela editora Akal, com o subtítulo "Da Revolução Russa de 1917 à revolução dos nossos tempos", García Linera refaz toda a trajetória e as narrativas que foram feitas sobre a Revolução Russa em um texto denso e cheio de elementos para pensar a contemporaneidade da revolução.

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Antes de tudo, García Linera constara a dimensão do fenômeno em suas proporções históricas: "A revolução soviética de 1917 é o acontecimento político mundial mais importante do século XX, pois muda a história moderna dos Estados, dividido em duas e em escala planetária as ideias políticas dominantes, transforma os imaginários sociais dos povos, devolvendo-lhes seu papel de sujeitos da história, inová-los cenários de guerra e introduz a ideia de outra opção (mundo) possível no curso da humanidade.

A Revolução Russa anunciou o nascimento do século XX, colocando a revolução como "referente moral da plebe moderna em ação". "Revolução se converterá na palavra mais reivindicada e mais satanizada do século XX".

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Por isso, "nos últimos 100 anos morrerão mais pessoas em nome da revolução que em nome de qualquer religião", com a diferença de que "na revolução, a imolação é a favor da libertação material de todos os seres humanos".

Em seguida, García Linera encara a revolução como "momento plebeu", que é "a sociedade em estado de multidão fluida, autorganizada, que se assume a si mesma como sujeito do seu próprio destino", antes de definir o significado da Revolução Russa. García Linera critica em seguida as visões reducionistas da Revolução Russa, as que a reduzem à tomada do Palácio de Inverno e à instauração de um novo governo. "A Revolução não constitui um episódio pontual, datável e fotografável, mas um processo longo, de meses e de anos, em que as estruturas ossificadas da sociedade, as classes sociais e as instituições se liquefazem e tudo, absolutamente tudo o que antes era sólido, normal, definido, previsível e ordenado se dilui em um 'turbilhão revolucionário, caótico e criador".

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A combinação extraordinária de uma série de eventos e fatores é o que torna a revolução possível: "As revoluções são acontecimentos excepcionais, raríssimos, que combinam de uma maneira nunca pensada antes correntes as mais dissimiles e contraditórias, que lançam a sociedade inteira, antes indiferente e apática, à ação política autônoma", consagrando a imagem clássica da "velha toupeira". Uma revolução, segundo García Linera, é, por excelência, uma guerra de posições e uma concentrada guerra de movimentos", reaproximando Lenin de Gramsci. Na intensa luta ideológica prévia, os bolcheviques vão se tornando politicamente hegemônicos nas classes subalternas. "Na realidade, a insurreição de outubro simplesmente consagrou o poder real alcançado pelos bolcheviques em todas as redes ativas da sociedade trabalhadora", que se apresenta "mais que como 'dualidade de poderes', como 'multidão de poderes locais'".

Assim, para García Linera a contraposição entre revolução e democracia é um falso debate, porque uma "revolução é a realização absoluta da democracia". Da mesma forma que é uma interpretação equivocada considerar que as revoluções são um tipo de "guerra de movimentos", impossível sem uma "guerra de posições", que constrói, ao longo do tempo, as condições do triunfo revolucionário. Por isso Lenin traz o conceito da "frente única" nos debates da Internacional Comunista, explicitado por Gramsci sobre as sociedades orientais e ocidentais.

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Há um aspecto universal da revolução soviética, que se radica "na vitória cultural, ideológica, política e moral das correntes bolcheviques na sociedade civil". Em seguida García Linera retoma os termos em que ele caracterizou as etapas da revolução boliviana, ao enfocar as relações entre o momento jacobino leninista e o momento gramsciamo hegemônico. Ele se refere ao momento jacobino como "o ponto de bifurcacion revolução", que não tem a ver com um momento de ocupação das instalações do velho poder, nem do deslocamento das antigas autoridades. "As revoluções do século XXI mostram que este último chega a se realizar por meio de eleições democráticas."

"O ponto de bifurcação ou o momento jacobino é a epitome das lutas de classe que desata uma revolução", é "um tempo em que os discurso emudecem, as habilidades de convencimento se retiram e a querela pelos símbolos unificadores se opacam". Na revolução cubana foi a batalha de Giron, no governo de Allende foi o golpe de Pinochet, na Venezuela o paro de atividades da PDVSA e o golpe de Estado em 2002, na Bolívia o golpe de Estado cívico-prefeitural de setembro de 2008. A importância desse momento "jacobino-leninista" radica em instituir "de forma duradoura, o monopólio da coerção, dos impostos, da educação pública, da liturgia do poder e da legitimidade político-cultural". Essa combinação inseparável dos momentos "faz com que uma revolução com um momento gramsciano sem um momento leninista seja uma revolução truncada, falida.

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O livro desemboca na discussão sobre o que é o socialismo. García Linera incorpora a ideia de que uma revolução que não se alastra a outros países termina se esgotando. Frente a essa e a outras dificuldades, ele observa: "Nós gostaríamos de fazer muitas coisas na vida, mas a vida nos habilita simplesmente a fazer algumas. A gente desejaria que a revolução fosse o mais diáfana, pura, heroica, planetária e de sucesso possível – e está muito bem se trabalhar para isso –, mas a história real nos apresenta revoluções mais complicadas, mais enrevesadas e de risco. A gente não pode adequar a realidade a nossos sonhos, mas ao contrário: deve adequar os sonhos e as esperanças à realidade, a fim de aproximá-la o mais possível a elas, fortalecendo e enriquecendo esses sonhos a partir do que a vida real nos brinda e nos ensina.

Na análise concreta da dinâmica da revolução russa, García Linera adverte que "nenhuma revolução tem um conteúdo predeterminado", o que foi gerando o caráter da revolução russa foi a forma como os bolcheviques foram encarando as transformações revolucionarias. "O socialismo não é estatização dos meios de produção", mas, em termos leninistas: "não é mais do que o monopólio capitalista de Estado posto a serviço de todo povo e que, por isso deixou de ser monopólio capitalista".

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"...o socialismo jamais poderá ser a socialização ou a democratização da pobreza, porque fundamentalmente é a crescente socialização da riqueza material." Na contramão do que a esquerda mundial acreditou durante todo o século XX, a estatização dos grandes meios de produção, dos bancos e do comércio, não instaura um novo modo de produção, nem institui uma nova lógica econômica – menos ainda o socialismo -, porque não é a socialização da produção." "Em outras palavras", um dos fetiches da esquerda falida do século XX: 'a propriedade do Estado é sinônimo de socialismo', é um erro, uma impostura. Hoje inclusive se tem esquerdismo deslatosado que, da cômoda cafeteria de onde planifica terríveis revoluções a partir da espuma do capuchino, reclama dos governos progressistas mais estatizações para instaura imediatamente o socialismo.

Na parte final do livro García Linera se detém em uma de suas (justas) obsessões atuais: o papel importante da resolução dos problemas econômicos e seu papel de conquista de tempo. Nele, se demonstra o fracasso total de guerra e como Lenin justifica e introduz a NEP, para organizar a econômica soviética em condições do enorme retrocesso social provocado pelas devastações do país.

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"A regra básica do marxismo de que a base material da sociedade influencia nas outras esferas nem sempre é levada em conta pelos revolucionários, que podem a sobredimensionar a vontade e a ação política como motores da transformação." No entanto, "sem a base material, não existem potencialidades revolucionarias que impulsionar e, portanto, se tornam impotência discursiva". A NEP derruba boa parte das ilusórias concepções pré-constituídas acerca da construção do socialismo, ajuda a precisar o que o socialismo é na realidade e fixa com clareza as prioridades que uma revolução em marcha deve resolver.

"O socialismo como construção de novas relações econômicas não pode ser uma construção estatal, nem uma decisão administrativa; mas, acima de tudo, uma obra majoritária, criativa e voluntaria das próprias classes trabalhadoras que vão tomando nas suas mãos a experiência de novas maneiras de produzir e de gerir a riqueza.

Assim, "a luta por um novo sentido comum e pelas estruturas organizativas das classes trabalhadoras são as tarefas fundamentais no processo revolucionário." "A economia e a revolução mundial representam então as preocupações pós insurrecionais."

"Em síntese, o socialismo é um longuíssimo período histórico de intenso antagonismo social, em que, no plano econômico, as relações capitalistas de produção e a logica do valor de troca continuam vigentes, mas que, no seu interior, desde suas entranhas, no âmbito local, nacional, surgem uma e outra vez incipientes, intersticiais e fragmentarias formas de trabalho comunitário, associado, que pugnam por expandir-se a escalas regionais e nacionais." "O socialismo não é assim um modo de produção, nem um destino. É um espaço histórico de intensas lutas de classes..."

E por que fracassou a revolução soviética? Porque não conseguiu articular-se com outras revoluções. E porque o Estado assumiu o protagonismo das transformações e das decisões sociais, que é caminho rápido do fracasso. Mas ficou dessa revolução a experiência mais prolongada de uma revolução social.

"Hoje recordamos a revolução soviética porque ela existiu, porque por um segundo despertou nos plebeus do mundo a esperança de que era possível construir outra sociedade..." "Mas também a recordamos porque ela fracassou de maneira estrepitosa, devorando as esperanças de toda uma geração de classes subalternas.

Mesmo se citando amplamente a García Linera, para lhe dar a palavra da forma mais textual possível, meso se se trata de um livro relativamente pequeno – cerca de 100 páginas –, estou seguro de que muitos outros aspectos e argumentos que vale a pena ser considerados por nós hoje no livro, não mencionado neste artigo. Mas bastam esses para que se reafirme que a melhor fonte para encarar o passado, o presente e o futuro é a prática revolucionária, que permite a García Linera extrair esse conjunto de extraordinárias lições. Em comparação com seminários tristes, encerrados em claustros acadêmicos, celebrando os 100 anos de 1917 longe da realidade histórica e política contemporânea, particularmente da nossa, da brasileira e da latino-americana.

Trata-se de uma obra mais de Alvaro García Linera que o reafirma como o melhor e o mais importante intelectual latino-americano contemporâneo.

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