A religião ecológica e o novo paradigma vivente
Perceba que o Papa não está pedindo aos cientistas ou a seus auxiliares simpáticos (ou não) à fé católica que parem as experimentações, as pesquisas. A ciência é fundamental ao progresso e ao desenvolvimento humano
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Nota inicial. Este é um trecho que retirei de um artigo o qual escrevi para apresentação de um trabalho acadêmico específico cujo seu valor histórico, penso, merecia ser compartilhado numa adaptação para um ensaio aqui com vocês. O original se refere à Encíclica do Papa Francisco sobre o Meio Ambiente. Coincidência da vida ou não, Barack Obama, presidente (dos Estados Unidos da América) do segundo maior país poluidor do mundo e o único – dos “grandes” – a não ratificar o Protocolo de Kyoto, lançou essa semana um Plano de Energia Limpa em que se pretende reduzir significativamente as causas e impactos ao consequente aquecimento global. Dessa forma, peço, leiam, para que debatamos a crise civilizatório-ambiental que vivemos e uma oportuna intervenção que propõe a instituição Igreja Católica, sem que leiamos pela fé, necessariamente, contudo, pela emergente sobrevivência do Planeta Terra. (Bom! Assim escrevi...)
Quis a história ser generosa por demasiada com minha monografia. Antes que se findasse a formalidade do cronograma de entrega do trabalho, uma das instituições mais poderosas em todos os tempos, a Igreja Católica Romana, nos brinda a proposta mais que revolucionária de uma Encíclica Papal orientada exclusivamente para a Natureza. Já é em seu próprio título, qual seja, “Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da Casa Comum” (grifo nosso), publicada em 24 de maio de 2015, é perceptível a semântica de uma nova ação mundial em cuja lógica põe em xeque os comportamentos humanos e corporativos, sobretudo, nos dois últimos séculos, posto que as escolhas e modelos de vida simplesmente ignoraram o Meio Ambiente. Não fosse o conjunto de orientações aos fieis membros católicos e a consequente inspiração ao restante dos não-católicos, somente o caráter simbólico daquela Sé em usar-se dos vocábulos “Casa” e “Comum”, por si só teria dedicado à humanidade uma reflexão pertinente. Ou seja: o Planeta é a morada de todos, para todos, sem distinção ou favorecimento, o lugar comum de cada ser e para o qual celebram a comunhão dos bens que a Natureza oferta.
Porém, é necessário que não se veja os dispositivos do documento como meros usos de estratégias linguísticas e poéticas. Prepondera no compendio seu caráter doutrinário-teórico acerca da ecologia. Trata-se de uma peça normativa completa para regrar o comportamento dos que à religião escolheram seguir e conviver. Vejamos o somatório dessas inferências:
A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por “rapidación”. Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientadas para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. (SANTA SÉ, 2015.)
Esta síntese acima ditada pelo Papa Francisco servirá apenas como elemento introdutório de uma complexa abordagem multi-setorial diante dos problemas ambientais diversos e da denúncia de uma crise civilizatória sem precedentes. Senão, vejamos. Ao falar da poluição, por exemplo, a Igreja acusa o modelo de desenvolvimento econômico vigente, de ser paradoxal quanto ao Meio Ambiente e à vida humana. Para a Santa Sé (2015), “a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros”. Por meio do seu Pontífice, declara a prática vigente deste processo que é danoso; que é poluidor:
A exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras. Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que afecta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral. (SANTA SÉ, 2015.)
Francisco assume o protagonismo ambiental da Igreja durante todo o manifesto documental, denunciando o problema da [falta de] água no mundo, das mudanças climáticas e todos os riscos inerentes a que a humanidade corre diante tal atrocidade, da ganância dos empossados dos recursos naturais que inconsequentemente aniquilam da Terra sua biodiversidade, enfim, sem perder de vista o arcabouço místico-transcendental, a Encíclica é, sobremaneira, um pressuposto metodológico que produzirá efeitos conceituais e atitudinais para além dos fóruns políticos e acadêmicos em todos os países que este tenha influência.
Para acentuar este asserto e, numa clara posição de vanguarda, sob a matriz obrigatoriamente ética e equilibrada, o Papa balizará seus subordinados a seguinte abordagem quanto à inovação biológica e a pesquisa científica que se apropria dos meios naturais:
Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um factor externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas “desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas”. Recorda, com firmeza, que o poder humano tem limites e que “é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas”. Todo o uso e experimentação “exige um respeito religioso pela integridade da criação”. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que “manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na acção criadora de Deus”, mas ao mesmo tempo recordava que “toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas consequências noutras áreas”. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição “do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria”, embora dissesse também que isto não deve levar a uma “indiscriminada manipulação genética” que ignore os efeitos negativos destas intervenções. (SANTA SÉ, 2015.)
Perceba que o Papa não está pedindo aos cientistas ou a seus auxiliares simpáticos (ou não) à fé católica que parem as experimentações, as pesquisas. Seria inoportuno e inconsequente que qualquer pessoa assim também quisesse dispor. A ciência é fundamental ao progresso e ao desenvolvimento humano. É a consubstanciação do devir experimental, a intervenção positiva junto à evolução das espécies e coisas. Contudo, é irracional quando praticada em desarmonia com a lógica necessária do equilíbrio ecológico. E neste caso, não é só paradoxal: é desnecessária.
É pertinente que mencionemos o essencial uso de dispositivos bíblicos no texto corrente da Encíclica. Não fosse isso, não seria um regramento Apostólico. Contudo, não nos parece necessário repetir as citações bíblicas oportunamente usadas, desde que façamos a justa recomendação da leitura integral acerca deste documento histórico que marcará significativamente o mundo católico e, quiçá, a reflexão antropológica e sociológica de todos os seres humanos viventes. Destarte, continuamos nos debruçando em certas terminologias da Bula Papal.
A Igreja cuidou-se de ser cautelosa também em pensar nas futuras gerações. Francisco fez diálogo com as fontes jurídicas e em um dos títulos da Encíclica, a saber, “A justiça intergeracional”, remeteu-se a desafiar a reflexão dos homens e mulheres. Na abonação que mais nos inquietou, queremos (grifadamente) concordar com Ela em relação ao Meio Ambiente e à Terra que “as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo” (SANTA SÉ, 2015).
A nós, pareceu ser o resumo de tudo. Estamos cuidando, em acelerada intenção – ou não – de prover a nossos filhos e netos, e seus filhos e netos, e os demais um Planeta desprezível, provavelmente inconcebível em prazo adiante de ser sustentar o alimento, a energia necessária aos organismos vivos, a distribuição do fundamental à subsistência, a água e, logicamente, a vida em si. Creio ser este o recado do Papa Francisco e do seu reinado no Vaticano, como Chefe de Estado, portanto, soberano do ponto de vista jurisdicional, além do dever-fazer que o Chefe dos Católicos orienta aos seus fieis. A Encíclica representa um claro conjunto de declarações sistematizadas ao Meio Ambiente. Caber-nos-á também, como estudiosos e operadores do Direito, compreender a sinergia que vem de outras fontes para balizarmos a novíssima disciplina do Direito Ambiental. E esta é, sem dúvidas, a nossa conclusão a respeito.
Ademais, à conclusão do trabalho monográfico, prefiro este artigo encerrar com a frase do atual líder mais poderoso do Planeta. Assim disse Obama: "Somos a primeira geração a sentir os impactos das mudanças climáticas e a última capaz de fazer algo a respeito. Se não agirmos, ninguém agirá". Denota-se daí o ensaio de uma nova geopolítica ambiental. De restante sobra (resta-nos) nossa atitude local.
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