A questão do eu-e-o-outro: uma intersubjetividade possível?
Em que medida o “eu”, numa sociedade democrática, pode estar impregnado por ampla convivência com o “outro”, capaz de reconhecer o outro em si mesmo?
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“Um diálogo aconteceu quando deixou algo dentro de nós. Quando encontramos no outro algo que não havíamos encontrado em nossa experiência de mundo. O diálogo nos põe à prova; o outro nos ajuda a des-cobrir nossos preconceitos”. (Hans-Georg Gadamer)
“A verdade essencial é o desconhecido que me habita. Por ele sou observado com ironia e incompreensão. Por que não nos compreendemos?”. (Carlos Drummond de Andrade)
A emergência do neofascismo no Brasil, com grande número de seguidores civis, militares e religiosos, representado pela figura de Bolsonaro, com sua estrutura ideológica alicerçada na dominação egocentrista, violenta, machista, racista, militar, negacionista e mistificadora (fake), coloca em larga medida a questão da relação entre o “eu” e o “outro”. Em que medida o “eu”, numa sociedade pluralista e democrática, pode estar impregnado por ampla convivência com o “outro” (viver com), capaz de reconhecer o outro em si mesmo? Afinal, a herança metafísica ocidental dualista opõe o corpo à alma, a velhice à juventude, a racionalização ao sentimento, o ocidente ao oriente, o céu ao inferno, por meio do estabelecimento de ordens que definem hierarquias, conduzindo os ocidentais a verem o outro como tudo o que se opõe às suas idealizações e realizações: o bárbaro, o selvagem, o infiel, o pagão, o desprezível, o não-amigo, o louco. Portanto, como ter acesso ao outro sem degradá-lo, sem humilhá-lo, sem oprimi-lo ou eliminá-lo, integrando-o ao “eu”? E se não convergirmos em relação ao outro, como poderemos construir democraticamente um mundo comum para reconhecer normas com validade universal? Haverá uma atitude ética que possibilite, reciprocamente, o acesso ao outro?
Colocando a questão num espectro concreto mais amplo, de que perspectiva a guerra europeia dos EUA-Otan contra a Rússia, a realizar-se no território da Ucrânia, dizimando milhares de vidas habitantes daquele espaço-tempo, poderá suscitar uma compreensão mais crítica e engajada, aos muitos diversos cidadãos e governos nacionais, sobre a mudança de paradigma em andamento na geopolítica mundial, na qual emergem legitimamente novos atores como potenciais lideranças no campo econômico e político, em busca de novos arranjos culturais e normativos internacionais a serem elaborados em função de uma ordem mundial multipolar que promova uma nova convivência simbólica e relacional, mais igualitária, distributiva e fraterna? Afinal, guerras não menos inclementes e truculentas, engendradas pelo interesse hegemônico do império ocidental, como as invasões do Vietnã, do Iraque 1 e 2, da Líbia, do Afeganistão, não causaram tamanha comoção nem manipulação midiática como a atual guerra europeia.
De olho no passado fundante ocidental, vamos encontrar no século V a.C. que a dificuldade da relação entre o “eu” e o “outro” apareceu com os gregos ao estabelecerem uma diferença de natureza vertical entre eles e os bárbaros, designando-os inicialmente como aqueles que articulam mal as palavras, que balbuciam mal, possuidores de uma estética repulsiva. Posteriormente, esse significado se estendeu para aqueles povos que não possuíam a cultura grega, passando a ser constituídos como o selvagem, o estranho, o outro. Assim, para essa cultura, aquilo que é estranho, que escapa à uniformização, deve ser destruído. (HERMANN, Nadja. A questão do outro e o diálogo. Revista Brasileira de Educação, Jun 2014).
Nessa linha também acenou Tomás de Aquino (1225-1274), frade italiano da Ordem dos Pregadores, grande estudioso do grego Aristóteles, em seu livro De Regimine Principium, afirmando que “certos povos vivem num grau de matéria e barbárie que só podem ser regidos com uma vara”. Para Tomás de Aquino era lícito fazer guerra aos pagãos, por exemplo, se eles ofenderem a fé cristã com a idolatria, a blasfêmia das blasfêmias. (FARIA, Pe. Henrique de Moura. Bartolomeu de Las Casas: o direito a serviço da vida do pobre. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.2, n. 4, Jul/Dez 2005).
Para Paul Ricoeur (1913-2005), pensador existencialista cristão, na modernidade europeia, o "eu penso" cartesiano fundou todas as relações ao se expressar sem a confrontação de algo fora de si mesmo. Nas Meditações, René Descartes (1596-1650) [que teve toda sua obra proibida de circular, pela Igreja Católica, por meio do Index Librorum Prohibitorum, criado em 1559 pelo Concílio de Trento], considerado fundador da filosofia moderna ocidental, mostra que a objetivação do pensamento, que pode garantir a verdade, não depende de outrem. A certeza está ligada apenas ao cogito. Só há pensamento puro e isso permite representar o mundo e dominar a natureza. A radical separação entre o pensar e a corporeidade, por exemplo, trouxe como consequência nossa dificuldade em lidar com a natureza, em reconhecer o outro em nós mesmos. Não só na dimensão intelectiva, mas também na dimensão moral, o outro não é objeto de consideração. Em As paixões da alma, ao analisar paixões como a estima e a generosidade, Descartes as remete, numa primeira instância, a si mesmo, e não ao outro. Assim, o sujeito moderno ocidental constitui-se sem apelo a nenhuma exterioridade, e, em tudo o que olharmos ao redor, veremos só o que lá pusemos, ou seja, nós mesmos. Segundo o filósofo Bernhard Waldenfels (1934), o caminho que levou a pensar o outro como um si mesmo foi "pavimentado com muitas deficiências”. Um desses caminhos se refere ao universal formal, que sonega a pluralidade, criando dificuldade em reconhecer o diferente, o que não é idêntico. Um segundo caminho conduz ao individualismo, à particularidade do eu, em que o outro é um espelhamento do si próprio. (HERMANN, Nadja. Op. cit.).
Em sua primeira viagem oficial ao continente europeu, visitando os países da Península Ibérica, 21 a 27/04, após o deplorável isolamento internacional a que foi submetido o Brasil pelo governo do capitão do exército (2019-2022), o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da Cimeira Brasil-Portugal, cúpula que não se realizava desde o Golpe de 2016, além de entregar o Prêmio Camões ao artista brasileiro Chico Buarque de Hollanda. Na Espanha, que assumirá a presidência da União Europeia no segundo semestre, além de vários acordos bilaterais em diversas áreas, Lula voltou a demarcar sua incansável campanha pela busca da paz do conflito europeu travado em solo ucraniano. Durante o almoço com o rei espanhol Filipe VI e a rainha Letizia Ortiz, o Presidente Lula, em seu discurso, afirmou: “Queremos abrir o caminho para o diálogo e não obstruir as saídas que a diplomacia oferece. O mundo precisa de paz. O mundo precisa também de solidariedade. Sem o cessar-fogo não é possível avançar. Não haverá sustentabilidade sem justiça social. Tampouco haverá sustentabilidade num mundo em guerra”.
Escutar a voz de Lula, clamando no deserto, para uma Europa outrora fanática em sua violência contra os mouros, contra os povos do Islã, contra os indígenas, contra os chineses, contra os judeus, contra os comunistas, e agora contra os russos, faz recordar a voz de outros humanistas em tempos passados a lutar contra a truculência colonizadora europeia, como a do frei dominicano Bartolomeu de Las Casas (1484-1566) que dedicou inteiramente sua vida e obra à causa indígena e à defesa dos direitos políticos de povos livres, capazes de realizar uma nova sociedade e uma nova Igreja Católica mais próxima do evangelho do que a velha cristandade. Na obra de Las Casas transparece uma contínua interação entre a reflexão e o compromisso histórico, entre teoria e prática. (GUTIERREZ, Gustavo. Em busca dos pobres de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995).
Las Casas contemplava os povos nativos da América com outros olhos, vendo-os como irmãos, possuidores da mesma origem humana, pessoas sãs, racionais, vivendo em plena harmonia consigo mesmos e com a própria terra, mostrando que sua religião não é inferior à de outras culturas com as quais o cristianismo teve contato. Las Casas afirmou, enfrentando enorme oposição religiosa e política, que os direitos [humanos] dos indígenas devem ser respeitados e defendidos: “Os espanhóis não têm o direito de privar os indígenas de seus governos e autoridades legítimas, afinal são livres por direito natural, uma vez que todo poder civil quanto religioso deve estar a serviço da comunidade”. Ele foi a personalidade que enfrentou a violência contra o outro indígena, propondo novos caminhos, desafiando a Igreja católica e a Espanha a um enorme debate ético-jurídico.
Como na narrativa da guerra dos EUA-Otan contra a Rússia, estamos habituados a ver, ler e ouvir a história da América Latina da perspectiva do poder hegemônico europeu. Falam os vencedores, com seus Camões, cantando seu poder, suas aventuras, seus artistas, seus escultores que eternizam seus gestos triunfais. Poder para dominar; domínio, para lucrar. O que seria se escutássemos as vozes das vítimas, tidas como animais e assim tratadas pelos dominadores, invadidas em suas terras e em suas liberdades pela truculência hispânico-portuguesa? Como seria a sua versão? (NASCIMENTO FILHO, Antônio José do. Bartolomeu de Las Casas, um cidadão universal. Edições Loyola, São Paulo, 2005).
Os espanhóis uniformizaram todas as populações indígenas nativas do novo continente, denominando-os de “índios ocidentais” ou “bárbaros”. Pelo fato de andarem completamente nus, eram considerados estúpidos, broncos e pecadores, por não respeitarem a castidade católica. Eram tidos como verdadeiros bichos ferozes, uma raça cheia de vícios e bestialidades, sem qualquer vislumbre de bondade ou cultura. Quando Hernán Cortez tomou a cidade de Tenochtitlán, em 1519, a população indígena do México, sob o domínio do império asteca, era de 30 milhões de habitantes. Em 1615, devido a dizimação perpetrada pelo europeu cristão, despencou para 1,5 milhão. Juan Ginés de Sepúlveda, filósofo aristotélico, favorável à escravização dos índios, célebre opositor do monge dominicano Bartolomeu de Las Casas, afirmava que “os índios estão mergulhados numa barbárie tal que, dentro dos padrões de uma sã filosofia, deviam ser considerados escravos por natureza; por isso o rei espanhol estaria autorizado a castigar todos os nativos com a morte e a retirar deles a terra e todas as posses”. (FARIA, Pe. Henrique de Moura. Bartolomeu de Las Casas: o direito a serviço da vida do pobre. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.2, n. 4, Jul/Dez 2005).
Las Casas, em seu livro “O Paraíso Destruído: Brevíssima Relação da Destruição das Índias”, denuncia as atrocidades cotidianas perpetradas pelo invasor espanhol: “Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades: entravam nas aldeias não poupando nem crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Arrancavam os filhos dos seios das mães e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto outros os lançavam à água dos córregos, rindo e caçoando; outros, mais furiosos, passavam mães e filhos a fio de espada”. (LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O PARAÍSO DESTRUÍDO: brevíssima relação da destruição das Índias. 3ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1985).
Assim, como consideração final, diante da herança histórica remota e presente, o que se nos apresenta como desafio intersubjetivo envolve uma mudança paradigmática de grande monta. Como apontou Waldenfels, a expectativa do outro só é percebida se concretamente nos desvencilharmos de nossos enclausuramentos epistemológicos e éticos, para libertarmo-nos de danosos equívocos de uma lógica de apropriação redutiva do “outro” aos nossos esquemas interpretativos. Faz parte de todo verdadeiro diálogo ir ao encontro do outro, buscando entendê-lo realmente, fazer valer seus pontos de vista e pôr-se no seu lugar. O diálogo autêntico, aquele em que nos implicamos e do qual não sabemos o que resultará, apresenta a possibilidade de criarmos um mundo comum, permitindo o convívio, o acolhimento recíproco do outro como também a expansão de nossa própria individualidade. Para isso é preciso ultrapassar a visão monossilábica do mundo, o discurso único. Afinal, o diálogo só é possível, e se inicia, porque há um outro.
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