A posse e o desvio da atenção
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A cultura nem sempre emana da elaboração criativa do homem em sentido antropológico, como as festividades típicas, o artesanato local ou a literatura de um povo - a cultura nestes termos é uma potência social, coletiva. A cultura também brota entre os vãos menos fecundos da mente; nasce dos sulcos e rachaduras produzidos por grupos de interesses, como a indústria cultural e a política.
Meu propósito aqui é abordar uma consequência cultural de origem política e apontar para os riscos que vem se descortinando no Brasil e em outros países do mundo. Trata-se do “desvio” e do “déficit de atenção”. Autores de elevado gabarito vem refletindo profundamente (p. ex. o filósofo alemão Christoph Türcke e o sul-coreano Byun-Chul Han), e não é aqui minha intenção de entrar nos pormenores de tais argumentos, na medida em que me distancio deles. Minha hipótese é de que a erosão da atenção somente pode ser um fenômeno sociológico ou cultural se compreendida como evento essencialmente político. Atacar a essência da atenção por meio de um desvio de rota é o núcleo onde se concentra o problema. Trata-se da milenar artimanha do ladrão para, criando uma ilusão, efetuar qualquer que seja o roubo. É isso, só que em larga escala. Um engodo contra as massas que ainda oxigenam os regimes democráticos. Nos tempos atuais não é a religião, como assinalou Freud em “Futuro de uma ilusão”, o conjunto sistemático de crenças falsas; mas a própria política, especialmente da extrema direita. A religião é apenas um pilar que dá sustentação à ideologia neoliberal. O mesmo ocorre com a indústria do entretenimento e das redes sociais.
Dito isto, é preciso dizer: o desvio da atenção, embora não seja uma novidade, tem sido o modus operandi do governo bolsonarista. Afinal, essa estratégia faz parte da ilusão que pertence tanto aos mágicos quanto aos ladrões desde a aurora dos tempos. O desvio da atenção é, por assim dizer, o ponto nevrálgico onde se instala a guerra híbrida, que encontra na mobilização popular e na desinformação suas principais aliadas.
Desviar a atenção é chamar a atenção para um motivo fútil, distanciado do foco original. O mesmo ocorre quando se fala na crise da economia da atenção por meio do rótulo psiquiátrico do “déficit de atenção”. O que essas categorias têm de familiar é o fato de que a desinformação como estratégia política encontra na cultura do déficit de atenção um terreno fecundo - daí o apelo dos think tanks sobre tudo o que é inovação tecnológica nos processos formativos. O fetiche pela tecnologia não é apenas pelo simples fetiche do novo. Trata-se de um fetiche industrializado, um coquetel encefálico a serviço de algo maior. Daí porque a compra do Twitter pelo oligarca Elon Musk, o homem mais rico do mundo que já soltou um “daremos golpe aonde quisermos”, nada tem de high tech. Não como tema central. A aquisição de uma rede social, quando o que está em jogo é a formação ou deformação das almas, significa a aquisição de uma arma. Uma arma de distração e desinformação.
Quando presenteamos uma criança com um smartphone, estamos oferecendo a ela um sistema completo de formação ideológica a serviço das elites.
O tão esperado dia da posse do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, em 1૦ de Janeiro, e a ameaça terrorista que a base golpista acampada nos QG vem materializando a cada dia mostram por antecipação o que se deve esperar na data da celebração. Há, sem dúvida, o risco de ataques contra o alvo central, o amado e odiado presidente eleito, que a base golpista insiste em chamar de ladrão - produto direto da desinformação - como há risco de atentado contra a multidão que deve ir à Brasília para a celebração da posse. Imaginar o pior cenário não é exagero diante do repertório semântico que vem sendo disseminado no Brasil nos últimos meses: snipers, granadas, metralhadoras, fuzis, coquetéis molotovs e bombas e, é claro, muito ódio . A tensão está posta, por mais que tente-se criar um clima de segurança.
Há, ainda, outra possibilidade de extrema gravidade: a que pode emergir do desvio da atenção. Tentativas não faltarão para tentar “roubar a cena” no ato da posse. Como o foco da atenção estará em peso concentrado no itinerário que guiará os passos do presidente eleito até a subida na rampa - subida desnecessária, como bem salientou Alex Solnik - não se pode dispensar igual atenção aos símbolos de poder e espaços públicos, espalhados pelo Distrito Federal, que podem se tornar alvos estratégicos para ataques terroristas, com o intuito de “chamar a atenção” das forças armadas ou quem quer que seja. É necessário cercar também o perigo ao entorno, marcando de perto qualquer sinal que possa desviar a atenção. De modo antecipado, deve-se olhar detidamente para movimentações ao entorno da Catedral Metropolitana, a ponte JK, o Mané Garrincha, o Templo da Boa Vontade, o Memorial dos Povos Indígenas, o metrô, o aeroporto e os Shopping Centers. Antecipar-se sobre tais aspectos parece tão óbvio quanto fundamental para conter o terrorismo que vem se instalando no país. Torna-se cada dia mais evidente os recursos utilizados na guerra híbrida contra os governos progressistas e democráticos. Contando com um investimento robusto, em reais e dólares, a ideia é criar um clima de permanente instabilidade para o novo governo. E assim que este assumir, diversos pontos devem ser prontamente atacados, sob o risco de uma total ruptura da democracia, são eles: os marcos regulatórios das mídias e da internet e a ampliação do debate acerca da liberdade de expressão, a despolitização das forças armadas e das polícias, a rápida ação contra atos anti-democráticos ou que afrontam a constituição, além de políticas de prevenção à expansão de células neonazistas que vem se espalhando por todo o país.
Lula deverá governar um Brasil diferente das experiências anteriores (2003-2011). O Império fincou de vez suas garras por aqui. Acabou a conversa amiga e o tapinha nas costas. Será necessário, sim, utilizar-se do expediente fundamental da política, por meio da invejável capacidade de negociação e carisma - talento que Lula tem de sobra - mas será também o momento de aprender a lidar com o indesejável sem nutrir-se de falsas expectativas a curto prazo. O Brasil não voltará a ser o mesmo. Acontece que o Brasil conseguiu se ver pela primeira vez. Como diante dos espelhos das redes sociais, o país parou, pela primeira vez, para se enxergar. Neste momento, nos vemos chocados entre a nossa beleza e as cicatrizes de nossa história. O Bolsonarismo abriu feridas que pareciam para sempre fechadas. Queremos sorrir, mas o ar ainda cheira muito a cadáver.
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