A pirralha e o roqueiro
Em crônica, Miguel Paiva relata o diálogo de duas gerações: "Ela sai e deixa o avô, velho roqueiro, protagonista de histórias muito loucas de espiritualidade, paternidade, defesa do meio ambiente que escandalizaram sua época, envolvido nas memórias enfumaçadas e lisérgicas que nenhuma droga seria capaz de imitar"
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- Abaixa esse som, menino. Essa música é muito ruim!
- Não é menino, vô! É menina. Sou sua neta, a Olívia.
- Oi, Olívia, desculpe. Não imaginei que você gostasse desse tipo de música...sempre soube que você gostava de sertanejo.
- Quem gosta de sertanejo é a Paula, vô. Gosto de rock...e essa aqui é a sua banda tocando em Arembepe...lembra? 1969?
- Arembepe...? lembro vagamente, mas eu era muito jovem.
- Que bom, né vô. O som era maneiro.
O avô faz uma expressão de muxoxo, aliás, expressão bem antiga, e tenta diminuir o volume.
- Pode acordar seu irmãozinho..
- Qual deles?
- Qualquer um...são tantos netos, sei lá, o Fred.
- O Fred tá no Amazonas com a mamãe. Lembra?
O avô faz uma cara de quem não lembra?
- Pô, vô, tá ficando esquecido? Foi com a mãe no seminário da terra, lá na tribo onde ela trabalha.
- Ah, agora lembro...é que são tantos filhos que nem lembro... Quantos são mesmo?
- Sei lá vô. Meus tios?
Ela faz as contas.
- Tios homens são 7 e mulheres 4...Pô vô, quando é que você tocava? Só fazia filho...
- Também não lembro...sei que ia nascendo...
- Mas você sabe que pra engravidar tem que transar?
- Claro que sei, só não lembro. Devia ser bom...fiz tantos.
- O senhor está com a memória muito comprometida. Se drogou muito na juventude, vovô?
- Só coisa leve...agora na velhice é que tenho me entupido de drogas pesadas, remédios comprados na farmácia...tudo veneno. Tomo um para curar uma doença e acabo criando outra doença...
- Sei como é...melhor fazer acupuntura e tomar fitoterápicos...
- Fala baixo, menina. Não sabe com foram proibidos?
- Tá confundindo, vô. O canabidiol é que foi liberado, é isso.
- É essa música alta...coloca um Miles Davis ai pra acalmar.
- Miles Davis é maneiro também. Meio devagar mas dá a maior onda...uma coisa assim meio espiritual, meio louca.
- Menina, depois que eu passei um ano na Índia nada é mais espiritual que o som daquela cítara, a comida, o rio Ganges, aquela paisagem, os passarinhos...muito doido.
-Adoro quando você me conta essas histórias do seu tempo de roqueiro. Não sei como vocês viviam sem internet.
- Pois é, a gente vivia, escrevia cartas, a terra era redonda, o clima bem melhor, a comida mais saudável, o sexo...bem o sexo eu não me lembro.
- Tenho que ir para o curso de informática. vô. Deixo o som ligado?
- Deixa, deixa, mas coloca uma coisa suave...
- Sepultura?
- Mais suave...
- Gustav Mahler?
- Isso. Esse era bem doidão. Mas coloca baixo. O vizinho é milico é pode não gostar.
- O vizinho é pastor, vô. Milico era o anterior...foi embora antes de eu nascer.
- Sei lá, é tudo igual... Dá um beijo aqui no vô.
Ela se aproxima do rosto do avô.
- Afasta essa juba...Dou em cima da tatuagem do Che Guevara?
- Não é o Che, é Jesus, minha neta. Não reconhece?
- É tudo igual.
Ela sai e deixa o avô, velho roqueiro, protagonista de histórias muito loucas de espiritualidade, paternidade, defesa do meio ambiente que escandalizaram sua época, envolvido nas memórias enfumaçadas e lisérgicas que nenhuma droga seria capaz de imitar.
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