A morte é festa no Brasil de Bolsonaro

Bolsonaro, como grande fascista que é, necessita da morte e do extermínio do outro como contraponto e como ponto de fuga de sua política

(Foto: Reuters)


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Por Tales Ab'Sáber

I

Quem leu Freud pensando sobre grupos sabe como o líder, quando está no lugar do “ideal do eu”, uma das dimensões do “superego”, tem poder de hipnotismo sobre o grupo massivo que domina. Isso significa apenas que, com pouca mediação, o líder fala o próprio eu do seu fiel fascista. Se o líder no poder diz exterminem os judeus como baratas por não serem humanos, o grupo produzirá com ele câmaras de gás para matar pessoas. Se o líder diz tomem um remédio ineficaz, que pode matá-los, o grupo toma feliz a cloroquina com efeitos adversos, que pode matá-lo. Se o líder diz, não usem máscara que ela significa a sua opressão, o grupo se revolta animado contra a máscara. Se o líder diz, sigam a vida sobre a peste como se nada tivesse acontecendo, o seu grupo vai pra rua, pro boteco e pra balada, dançar e beber até o fim do mundo sobre a peste, como se nada tivesse acontecendo…

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Freud é odiado por cientistas políticos convencionais, que desdenham da natureza psíquica do poder, por ter mostrado que o fascismo é uma subjetivação desejante, uma estrutura irracional humana de desejo do poder e de submissão, uma modalidade política gerenciada técnica e historicamente de sadomasoquismo. O fascismo é o ultrapassamento, pelo desejo do poder concentrado em um mais guerra aberta contra outros, de todo compromisso de racionalidade na política. E Freud foi o primeiro a dizer isso, e não o seu discípulo Reich, que deu continuidade à sua análise do princípio do fascismo, muito destacado por Deleuze e por Guattari, que queriam ultrapassar Freud, exatamente como aquele que teria dito que o fascismo foi desejado. Foi Freud quem demonstrou que o fascismo é desejo, que corresponde a formas inconscientes da realidade psíquica. Existem formas psíquicas para o fascismo, disse Freud, que podem ser acionadas historicamente em certas circunstâncias, e isso aumenta imensamente o sentido do trabalho da civilização e da política em se comprometer com o sentido radical do trabalho humano contra a violência, em nossa própria formação como sujeitos.

Bolsonaro, como grande fascista que é, necessita da morte e do extermínio do outro como contraponto e como ponto de fuga de sua política. Se não pode matar ativamente, como um dia disse que faria e como fez o ditador latino americano Pinochet que ele tanto admira, ele o faz por decisão de eximir o governo de responsabilidade, e de governo, diante de uma pandemia global mortal. Não existe fascismo sem um plano necessário de assassinato em massa. O que foi feito no Brasil é que as imensas pulsões destrutivas do bolsonarismo, não podendo destruir inteiramente tudo o que desejam – a esquerda, as representações minoritárias, as universidades, os artistas, os direitos civis… – transbordaram para destruir toda a sociedade.

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Bolsonaro ordenou explicitamente às pessoas em 2020 que não usassem máscaras, que tomassem remédios falsos e que se expusessem com satisfação ao vírus. Fez campanha política aberta, pública, contra a vacina, entendida em sua patologia política como “arma do inimigo”. E nós vimos essa política afirmativa da destruição da vida, por perversão e ignorância, que no caso são uma coisa só, acontecer em tempo real no país. Ele condenou à morte dezenas de milhares de brasileiros, que, apaixonados por ele ou inconscientes do seu vínculo amoroso com ele, fizeram a política suicida que ele necessita. A morte de um povo por amor, sem pensamento, ao seu líder fascista.

II

Também há um outro grande hipnotizador de pessoas, de grupos e de massas que se expuseram ao vírus com prazer durante as festas de fim de ano de 2020, e em janeiro e no carnaval de 2021 no Brasil. Se trata do próprio empuxo da vida encantada da mercadoria e do consumo, a inércia do movimento e do apego do desejo a uma forma e a um modo de viver, biopolítica reforçada a cada segundo e a todo instante – uma relação entre os homens, e deles frente o valor das coisas que se produzem entre eles: o fetichismo da mercadoria.

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Como sabemos desde Adorno e de Horkheimer, toda a formulação e expressão do mundo industrial da cultura é, em seu fundamento – o seu próprio inconsciente coletivo formado, produtivo e socialmente comprometido com a lógica geral da acumulação –, um imaginário geral de celebração festiva e de aceitação daquilo que existe. Anticrítico por natureza, o mundo criado pela indústria cultural universal tem por princípio essencial a lógica de que “tudo o que existe é bom”. E tudo o que se deseja, ao se viver assim, é celebrar, festejar e gozar o que existe, ter acesso às coisas e à sua felicidade, verdadeira ou falsa, tanto faz. O princípio é o da cultura afirmativa, sempre positiva, a vida alavancada como ela é e a favor de tudo o que é, como dizia Marcuse.

O mundo do consumo como subjetivação é isso. Neste sentido, Bolsonaro não precisou de muito trabalho e de nenhuma energia especial para empurrar pessoas para viverem aquilo que, contra a real realidade da doença e da morte, elas de fato queriam viver. Entre o líder fascista, sua lógica cruel anti-humanista neoliberal, que deseja desresponsabilizar o governo do trabalho coletivo e social, e a ordem comum e repetitiva dos gozos contínuos do mercado e da imagem mercadoria comum no mundo, há também uma continuidade eletiva forte. O mercado que se celebra em cada compra e em cada venda de uma ilusão qualquer é também extamente o mesmo que faz o elogio de um mundo sem governo, sem compromisso social e com o trabalho, ou qualquer coisa que exista para além da mercadoria, do dinheiro e de si próprio.

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A homogeneidade cultural de massas, e seu gozo planejado, prepara a homogeneidade política; esta frase de Adorno e Horkheimer dos anos 1940 foi a primeira percepção forte dos elementos fascistas presentes no interior do próprio mundo do mercado dito liberal, seu sistema geral de excitações e circulações de imagens e seu reality show. Ela apontava para a emergência totalitária da vida de todos como agentes culturais exclusivos de mercado, o neoliberalismo por vir, da escola de Chicago, de Guedes e de Bolsonaro, como algo que sempre esteve presente no mercado de massas. De fato, no grande isolamento de 2020 muitos adoeceram pela perda de suas práticas de vida, o ambiente geral da vida na cidade da mercadoria. Ficou famosa na internet a imagem impressionante de milhares de pessoas, de todas as idades, famílias inteiras, fazendo fila para entrarem no shopping center reaberto, após um período de isolamento social para a proteção da vida. Elas cumpriam um ritual, de culto ao seu único e verdadeiro deus, indizível, a coisa na loja e a cidade para as coisas, o shopping center.

As pessoas não querem de volta uma vida qualquer, tanto quanto são totalmente incapazes de refletir no tempo de silêncio e do esvaziamento de sua atuação geral no mundo do espetáculo como vida. Elas querem de volta o shopping apinhado com as coisas e sua vulgaridade cultural gritante, de choque, os entrepostos globalizados que dão destino ao circuito mundial da produção, em escala planetária. Elas querem de volta a mesma ordem de produção, recusa de sentidos e da alteridade de mundos e razões ambientais, que gerou mesmo o vírus pandêmico, o primeiro sintoma universal da crise impensável do mundo da mercadoria, o Capitalismo, de nosso tempo.

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Antes da crise econômica global de 2008, gerada, com se sabe, pelos terroristas milionários do mercado financeiro de Wall Street, que desorganizou grande parte dos circuitos mundiais de apostas e de produção de valor, existiu uma grande festa jovem, excitada e excessiva, que não podia parar. Era a “república mundial” da noite eletrônica, com meca em Berlin, que convocava a juventude hedonista do tempo e a antiga contracultura jovem para um mesmo espaço maníaco de agitação e gozação permanentes. Aquela ação e sujeitos que existiam para a diversão conspícua não podia parar nem de noite nem de dia. Dançando e gozando sem parar, ela criava zonas de esperas existenciais como consumo de prazer industrializado liberado, o novo estatuto da música e das drogas no mundo, que mantinha jovens ao mesmo tempo celebrando a festa do tempo presente e encenando esteticamente a sua ruína, também onipresente, como verdadeiros punks de butique globais. Entre a ausência de emprego, a oferta mundial de imagens, informação e gozos das infinitas coisas geradas pelo tempo do mundo, e a vida toda deslocada para as micro-telas da internet pessoal global, a solução de compromisso social passou a ser celebrar permanentemente, se agitar sem parar, ser feliz por compulsão, vencendo a sociedade do cansaço pelo prazer do excesso, noite e dia, dia e noite. Forçava-se o gozo, com a pulsação da música eletrônica como dispositivo de um corpo em êxtase e suas drogas sintéticas, tomadas em escala industrial, para nos convencer, agora colonizando o afeto e deformando o sonho, que o mundo é bom. O êxtase mundial da subjetivação da balada eletrônica encontrava sua sociologia na ideia de produzir sem parar, sem silêncio, intimidade ou pensamento, sobre a ruína universal do mundo do trabalho e das guerras do poder de produção dos refugiados mundiais, que aqueles jovens conheciam bem.

Como eu disse em outro momento – em um livro que aprofunda o estudo da estética maníaca da afirmação do prazer como indústria, e da recusa performática do terror como estratégia de sobrevivência, A música do tempo infinito, (Cosac e Naify, 2014) –, esta tendência de ocupar o desejo com os objetos técnicos pulsantes do tempo, música eletrônica, massa imaginária pulsante na internet e drogas sintéticas e recreativas, tendia a dissolver os limites entre dia e noite – sono, sonho, despertar e pensamento –  em um novo estatuto de subjetivação, de transe técnico, festa contínua a favor de tudo o que existe. Bem como, com outra perspectiva da mesma coisa, o professor de arte e teoria em Columbia, Jonathan Crary, nos deu a ver, no mesmo momento, em seu 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. Como se sabe, um dos efeitos do isolamento social e da recolha histórica das pessoas em casa do ano de 2020, foi o imenso e generalizado sono. Ao avesso do mundo explosivo e massivo de uma agitação permanente, cujos circuitos mundiais das baladas eletrônicas sem fim foram um dos campos de imanência e apresentação, as pessoas reestabeleceram durante o isolamento o tempo  regressivo do corpo, pessoal e inconsciente, do sono e do sonho. O que pressupõe o privilégio de classe de se ter casa, cama, um cuidado básico e um tempo livre, sem a invasão da produção, para se poder dormir, e dormindo, sonhar. Da agitação maníaca de um mundo em crise, que dança sobre o abismo da sua própria destruição, os homens – a quem foi permitido por acaso de classe –  recuaram ao tempo indefinido e silencioso do sono, do inconsciente esparramado sobre o ser e sobre o mundo e da agitação secreta da metafísica  do sonhar– a realização poética, narrativa, cinematográfica, imanente ao sonho. Dormiram e sonharam, para poder despertar de um pesadelo social muito mais profundo. O sonho, que pressentia mesmo o contato com a peste, dizia Artaud. A peste, que é o mundo.

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Quem se atirou às festas, e hoje morre sozinho de modo cruel às portas de uma UTI em caos, não suportou retornar à política do sono e do sonho, da sustentação de condições para o sono e da necessária intimidade do sonho, e seu necessário segredo, ou mistério. Como a mercadoria global em febre e festa permanente, estas pessoas também precisaram gozar na exposição dos corpos como objetos para a visão do outro, e na fantasia, própria ao capital, de que tudo o que existe nesse mundo, que se produz assim, necessita ser celebrado, até o fim.

III

Assim Bolsonaro e seu senso comum grosseiro sobre a vida conservadora sobre o capitalismo tardio, essa tentativa de reafirmação de ilusões perdidas de poder imaginário de classe e do poder comum do mercado como tudo o que importa no mundo, está simplesmente a favor do que muitos internalizaram como sendo a verdade natural da máquina do mundo, seu desejo de mundo. O hipnotismo do líder ganha poder ao confirmar o desejo de todos de que o mundo não pare e não tenha parado, e que podemos prosseguir nosso compromisso com a sua reprodução infinita, gozando ilimitadamente o regime geral da mercadoria, o que de fato se adora. No entanto, entre o amor ao líder e o gozo da celebração do mercado espetacular como a própria natureza humana, há um elemento especial que Bolsonaro põe em cena, para a tragédia do genocídio à brasileira, que nos é praticamente único. Um campo de sentidos reacionários fortes e muito violentos, de longa duração e tradição, que diferencia o espaço social constituído desde a história do Brasil de toda ordem de leitura moderna, científica ou crítica, de uma grande comoção e risco social como vivemos.

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Só há algo semelhante ao que o Brasil realiza como maquinaria biopolítica exclusiva nos Estados Unidos de supremacistas brancos de Donald Trump. Um país que também, como aqui, condenou centenas de milhares de americanos à morte, pelo sadismo objetivo de uma cultura em que o direito à saúde não é universal, pela arrogância negacionista narcísica de seu líder, apoiado em seus grupos de extrema direita, cujo poder pressuposto e caprichoso era mais importante do que a vida de seus concidadãos.

O ponto de força histórica para a política da morte é o seguinte: não por acaso EUA e Brasil foram os dois grandes países americanos de colonização europeia – um branco, modernizado e protestante, outro branco, de tipo ancien régime e católico – que se formaram com e através da escravidão colonial ativa, como própria forma de produzir riqueza e sociedade, em seus próprios territórios nacionais. No entanto, lá, hoje, não exatamente como aqui, forças sociais de responsabilidade, de técnica, de ciência e de compromisso coletivo se organizaram para combater e vencer o seu sintoma neofascista, neo-escravocrata eu diria, constelado no líder mentiroso e descomprometido com tudo que não seja ele próprio. Aqui temos muitas dúvidas sobre nossas pulsões de vida políticas, aquelas que unem, que agregam, que reconhecem as partes e ampliam a capacidade de pensar o que é comum.

De todo modo, apenas em um país de origem escravista – desde a ordem colonial secular mundial, europeia – um governo e parte importante da sociedade pode dispor de uma outra parte do país para o seu desprezo radical de qualquer natureza de direito comum, até o direito à vida. Só em um país de longa formação escravista uma pequena parte da sociedade, ligada a classes médias que gozam com a própria servidão, senhores do dinheiro que não reconhecem nenhum país e uma cultura radical do autoritarismo, de religiosos e de militares, um grupo cindido da trama de direitos comuns e universais e da mediação científica para o problema global, pode decretar, como política de Estado, que a população se contamine, adoeça e morra, de modo aleatório mas certo.

O neofascismo brasileiro é alimentado inconscientemente pela profunda tradição reacionária, colonial escravocrata, luso monarquista, que cindiu nação de sociedade, riqueza e trabalho escravizado, nas raízes do país. Bolsonaro, capitão do mato do Brasil escravocrata estendido ao agora, tratou os brasileiros exatamente como os senhores e seus agregados do século XIX imperial tratavam o trabalho no país: “vocês só tem valor instrumental para a riqueza que geram, para os outros, e nem um direito a mais”. Se morrerem, é mesmo esse o seu destino. Escravo foi feito para trabalhar, gerar riqueza para o senhor, e depois morrer. Ou seja, não existir nem custar nada à sua “sociedade”, que não lhe pertence de nenhum modo, cindida de todo reconhecimento dos seus direitos e da sua vida. “E daí?”, exclama Bolsonaro rindo excitado frente a sua claque do curralzinho, em uma cena retirada de O bandido da luz vermelha de Rogério Sganzerla (1968), sobre a morte planejada e desejada de centenas de milhares de brasileiros.

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