A menina que não lia livros
O discurso do “nunca li um livro na vida” soa, no mínimo, estranho
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A menina estufa o peito e, em rede nacional de televisão, diz: “nunca li um livro na vida”. A declaração pode até ser verdadeira e honesta, tendo em vista que hoje muita gente sente orgulho da própria ignorância. É, contudo, curiosa, e tem de tudo para ser apenas um discurso falacioso na busca por algum tipo de aprovação ou da necessidade de um mísero “like”, que preencha um vazio existencial. Veja bem: passamos pelo menos treze anos das nossas vidas na escola, e mesmo que seja a escola mais carente de recursos, como ainda são muitas das escolas públicas brasileiras, há sempre uns “livrinhos” à disposição, quando não bibliotecas completas com obras nacionais e estrangeiras enviadas às escolas por governos passados ou adquiridos pela própria escola. Quem trabalha com educação e está no chão da escola sabe muito bem disso. Há outras questões envolvidas, claro, mas é consenso que nossos docentes têm uma preocupação comum, pelo menos a maioria, de que alunas e alunos conheçam algumas das principais obras da literatura brasileira e desenvolvam o hábito de ler, pois sabem muito bem que sem o básico domínio da leitura o acesso às outras áreas do conhecimento fica seriamente comprometido.
Houve um tempo em que alunas e alunos liam na escola as obras de José de Alencar, Machado de Assis, Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Oliveira Paiva, por exemplo. Na sequência, vieram os modernistas e muita coisa mudou. Passou-se a consumir a prosa de Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Clarice Lispector. E também a poesia de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Morais e Cecília Meireles. Como acréscimo a tudo isso, lá estavam nossos heróis (popularmente conhecidos como professores e professoras) indicando aos alunos e alunas a leitura das famosas coleções: Vaga-lume e Para gostar de ler. Essa prática pouco mudou, uma vez que as escolas públicas e privadas continuam trabalhando a leitura cotidianamente. Logo, o discurso do “nunca li um livro na vida” soa, no mínimo, estranho. A não ser que a pessoa nunca tenha ido à escola (infelizmente isso ainda é parte da realidade da população pobre brasileira) ou tenha sido mantida em cativeiro por pelo menos treze anos, sem acesso a nenhuma forma de letramento.
Novos tempos, novas obras. Outras leituras chegaram, não para substituir Jáder de Carvalho, Lima Barreto, João Cabral de Melo Neto ou Lygia Fagundes Telles; insubstituíveis que são. Mas chegaram para somar e mostrar a educadores e educandos novas narrativas, novos mundos e outras palavras. É assim que hoje a escola lê Maria Firmina dos Reis, Chico Buarque, Carolina Maria de Jesus, Caetano Veloso, Conceição Evaristo, Belchior, Ruth Guimarães, Orides Fontela, Cartola, Ana Cristina Cesar, Gilberto Gil, Chacal, Waly Salomão, Jarid Arraes e Eliana Alves Cruz, entre tantas e tantos outros.
Ler, como tudo no Brasil, é um ato de resistência. E em tempos de avanços fascistoides, a importância do ato de ler tem que ser tratada como política de Estado, pois, comprar livros ou até mesmo ir à biblioteca nunca foi fácil para a maioria da população, que não sabe se vai ter o que comer amanhã. A menina, que nunca leu um livro, tropeça na própria ignorância desastrada. Não sabe ela, como diz o poeta, que os livros que entram em nossas vidas são como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo, e é o que pode lançar mundos no mundo. A menina, que se orgulha de nunca ter lido um livro na vida, é apenas mais um retrato pendurado na parede da nossa desolação. E como dói!
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