A luta brasileira contra as fake news, crônica de um fracasso anunciado

"Tentar combater as 'fake news' com medidas regulatórias e punitivas é como enxugar gelo", defende Fernando Horta



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Em primeiro lugar, é preciso dizer – e repetir sempre – que o problema das “fake news” não é novo na história da humanidade. Atrevo-me a dizer que não é novo em absolutamente nada. Em cada momento histórico e para cada sociedade a ideia de “verdade” tinha algumas regras. Foucault chama isso de “regimes de verdade”. Na Antiguidade, gregos e romanos desenvolveram um regime de verdade que se baseava na lógica, na empiria e nos acordos sociais. Na Idade Média, em grande parte da Europa ocidental pelo menos, a ideia de verdade não existia sem a chancela da Igreja. O problema das “fake news” é, de novo, um deslocamento do regime de verdade no mundo contemporâneo. Nem mais, nem menos.

Durante o século XX, as potências ocidentais, e também a URSS e China, se esforçaram para colocar o regime de verdade em algum lugar entre as instituições de Estado (notadamente o poder judiciário), as universidades (a partir do paradigma de ciência) e uma ideia de democracia como fiadora dos pactos sociais. Não poderia existir uma “verdade” que não fosse chancelada por algum destes espaços de poder institucionalizados. No século XXI, não é coincidência que o advento das redes sociais ataca exatamente os três pontos desse arcabouço.

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A extrema direita criou mecanismos e estratégias de difusão de informações sobre o mundo (que variam desde pequenos julgamentos sobre questões pontuais, até grandes utopias e estratégias de ação) que atacam exatamente o conhecimento científico (deslegitimando-o a partir de uma leitura rasa sobre a pós-modernidade), o Estado (através da reificação do individualismo histérico de alguns autores neoliberais) e a própria ideia de democracia (a partir de uma leitura estranha do conceito de “liberdade”). Esse ataque se viu fortalecido pela arquitetura das redes sociais, pelos conflitos geracionais inerentes à passagem do tempo e pela tremenda diferenciação material e na educação de alguns países.

E aqui é todo o problema: as fake news não são o centro da questão. Elas são uma das inúmeras consequências do ataque que é feito hoje ao regime de verdade consolidado no século XX. Tentar combater as "fake news” com medidas regulatórias e punitivas é como enxugar gelo. A capacidade das redes digitais de produzir desinformação como parte da disputa política sobre o sentido de verdade é algo perto do infinito. Nenhuma burocracia de Estado terá sucesso nessa empreitada. A regulação deve ser apenas suplementar na estratégia de combate a esse problema.

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A solução tampouco é fácil. Se fosse a União Européia, os EUA e outros países já teriam resolvido o problema. Ninguém perdeu mais do que a Inglaterra com essas “fake news”. O Brexit foi o primeiro momento da utilização massiva dessa estratégia de deslocamento do regime de verdade com objetivo político-eleitoral. Hoje, a Inglaterra amarga desabastecimento e falências por conta da sua saída da União Européia. Ainda assim, a Inglaterra não conseguiu resolver a disfunção. Estados Unidos, França, Itália e praticamente todos os países ocidentais viram o ressurgimento de uma extrema-direita totalmente tributária desta disfuncionalidade. E ninguém ainda surgiu com as respostas.

Se não sabemos como resolver, sabemos já o que não dá certo. Regular e punir é impossível. Não só pela incapacidade física da estrutura de Estado realizar esta tarefa, como também da impossibilidade de prever as transformações da tecnologia nos próximos, por exemplo, 3 anos! Ainda antes do final do mandato do presidente Lula, é muito provável que já tenhamos outros aplicativos, explorando outras estratégias dentro do mesmo problema. A regulação que não for extremamente aberta não dará conta. A que for aberta o suficiente vai ameaçar a democracia. Indo pelo lado da judicialização caímos na mesma armadilha que o fascismo e o nazismo usaram para destruir os regimes políticos no início do século XX: o paradoxo da liberdade.

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O caminho da ação social engajada é também inócuo. Criar meios de “denúncia” de fake news, estimular o comportamento fiscalizador e beligerante de parte da sociedade apenas vai insuflar um denuncismo raso que servirá para tornar o objetivo da política (de criar pontos e consensos sociais) impossível. Além disso, a imensa maior parte da desinformação nas redes advém de um pequeno grupo de pessoas que, a partir do uso de ferramentas modernas de comunicação é capaz de gerar mais conteúdo falso ou questionável do que a grande massa teria capacidade de “denunciar”. Essa solução também é uma armadilha, estimulamos o conflito social como forma de combater exatamente uma ferramenta de comunicação social cujo objetivo final é estimular o conflito social.

O terceiro caminho que o governo Lula está tentando é a geração de “argumentos de autoridade” via mercado com as “agências de checagem” privadas, ou mesmo agências de checagem públicas. Acho que fica muito claro o perigo de entregarmos o papel de dizer o que é certo e o que é errado para o mercado. Visto que as agências criadas pelo governo não terão a mínima condição de operar nesse espaço se não houver legislação prévia. E aí, caímos no primeiro erro, apontado alguns parágrafos acima. Definir o que é verdade ou não é algo tão importante, que parte do desenvolvimento social e político dos séculos XV ao XXI foi consolidar o monopólio de um poder de Estado para essa função. Em última instância, é o poder judiciário que foi criado para definir exatamente este ponto. 

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Ora, se nos é presente o perigo de deixar que o mercado (a religião, a academia e etc) nos dizer o que é verdade ou não, por que estamos caminhando nessa direção? A discussão sobre os regimes de verdade são formas de disputas políticas. Criar mecanismos para impor verdades é ditatorial, não importando o quão especializadas sejam as instituições usadas para esse fim.

Mas então, está pensando o leitor, não há solução possível? Há sim. Minha aposta é que precisamos ou criar um novo regime de verdade para substituir o do século XX (o que seria deveras impossível já que a missão de organizar consensos sobre o mundo é da política através da história), ou retomar os regimes de verdade do século XX.

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Para retomar o regime de verdade do século XX é preciso atuar ao mesmo tempo em 4 pontos de forma sinérgica:

1) Criar um grande programa de letramento digital (e este letramento não é “ensinar a usar o Windows, o whatsapp e etc).

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2) Aumentar o controle social sobre o mundo digital que hoje é coordenado pelas big techs.

3) Recolocar as universidades dentro da disputa pelos sentidos de verdade através da criação de centros de avaliação de conteúdo.

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4) Regular suplementarmente as redes em forma de afirmação de direitos e não de criação de marcos punitivos somente.

Para que isso aconteça é preciso que o governo entenda que precisar TAXAR as bigtechs que operam dentro do território nacional ou por brasileiros. Programas de educação digital, manutenção de centros de avaliação de conteúdos ligados a universidades públicas, manutenção de conselhos plurais para avaliação de políticas e transformações no mundo digital custam caro. Quem tem que pagar a conta são aquelas empresas que lucram com o caos criado. O cenário do deslocamento do regime de verdade enriqueceu o Google, o Facebook e etc. É a hora deles pagarem pelos danos que causaram. E que esse dinheiro seja revertido todo para projetos que toquem nos pontos acima.

Não acho que isso por si só conseguirá eliminar o problema, muito porque as fake news NÃO SÃO o problema. O que se vai fazer é construir um tecido social, cultural e educacional mais sólido para resistir aos ataques do mundo digital. Algo semelhante ao que o renascimento e depois o iluminismo fizeram na recomposição dos regimes de verdade no final da Idade Média. A História, aqui, volta a ser nossa guia.

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