A loucura generalizada
"A ciência e a filosofia, sintetizadas na grande política, é o que pode salvar o planeta da infinita solidão do universo indiferente", escreve o ex-ministro da Justiça Tarso Genro
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Por Tarso Genro
(artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)
Recorto alguns textos aleatórios para expressar o que talvez milhares de pessoas sintam neste momento de solidão da humanidade. Digo solidão da espécie, não como sentimento melancólico de “um” estar no mundo isolado, como se sentem os humanos quando longe dos seus afetos. Falo da solidão do planeta, não neste país das milícias no poder, mas neste universo profundo e desconhecido onde a claridade transita milhões de anos-luz para chegar a um ponto qualquer em que os rostos do homem são refletidos com certa paz.
Ali, ele é o rosto solitário da humanidade inteira perante a força da natureza que se rebelou, como se – do lugar que lhe foi destinado – ela se voltasse contra todos os tempos que lhe foram subtraídos: em forma de medo, em forma de morte, em forma de espelhos deformados. Naquele espelho que somos obrigados a nos conhecer mais um pouco, no mais terrível e também no mais digno que construímos como espécie. Qual dos lados vencerá? Nossas maldades atávicas e nosso cansaço ou nossas alegrias, que podem nos erguer para uma luta sem tréguas contra o mal absoluto?
Os recortes: Steinbeck, em “A rua das ilusões perdidas”, depois de dizer que a cidade “parece estar suspensa fora do tempo, em meio a uma luz prateada”, diz que “bem poucas pessoas estão de pé, apenas o suficiente para fazer com que a rua pareça ainda mais deserta.” De Ian McEwvan, “Enclausurado”: “coisa demais para suportar, macabro demais para ser verdade. Por que o mundo se organiza de forma tão cruel?”. Mujica, “Uma ovelha negra ao poder”: “o humanismo mais profundo vem pelo caminho da ciência. Em última instância a filosofia é irmã das matemáticas e sem filosofia e sem ciência não há humanidade.”
Reflito: nossas ruas deveriam estar mais “vazias” do que estão; sim, é “macabro demais” para ser verdade, mas esta é a pureza que vai refazendo a vida de todos; e aduzo, com Mujica: a ciência e a filosofia – sintetizadas na grande política – é o que pode salvar o planeta da infinita solidão do universo indiferente. Muitos chamam este universo de Deus, outros de expressão das “forças cósmicas”, mas a maioria, na prática, aceita-o como espera e dúvida. Através destas, os impulsos da consciência dão lugar ao fato de que a vida simplesmente continua.
Alguns detalhes que passam – voluntária ou involuntariamente – desapercebidos pela mídia tradicional mostram a brutalidade da situação. Num país em que o presidente é um pária internacional e “curandeiro” desqualificado de pandemias, dissensos que imperam no Executivo e no Legislativo indicam que estamos muito longe da lucidez e próximos da loucura generalizada: o presidente passa o nariz no braço e ato contínuo cumprimenta pessoas desprotegidas, que estão ao seu redor, depois de desqualificar – por semanas inteiras – o trabalho de um de seus ministros, que mostra um mínimo apego aos protocolos internacionais de combate à pandemia que ataca toda a humanidade. Basta? Sigamos.
Os filhos deste presidente formaram um governo paralelo e passando por cima de todas as hierarquias ministeriais desenvolvem uma política externa subordinada ao presidente Donald Trump. Ele, o grande idiota que quer ser imperador da guerra e da decadência – nacionalista de país rico –, orienta o nosso Governo para colocar em risco ainda maior nossas contas externas e dilapidar, aliado ao subserviente Bolsonaro, as reservas formidáveis deixadas pelos governos do PT e seus aliados. As mesmas que estão hoje salvando o país de uma crise ainda mais brutal. E prossigo.
O presidente agride e debocha do oligopólio da mídia e de toda imprensa, graças a qual ele se elegeu, com a ajuda da falsificação delinquente dos “dois extremos”; e também mantém o STF como refém de “um cabo e dois soldados”, alusão ainda não esquecida que intimida a maioria dos Ministros da Corte. Mas a loucura não fica por aí: o bloco de poder – que não é uno e cultua as reformas ultraliberais como pacto de sangue – também expressa suas divergências, que não são sobre como fazer o Estado funcionar num momento de grave crise, mas como melhor aparelhá-lo para seus desígnios político imediatos.
Vejamos agora a fala de um dos mais eminentes integrantes do grupo de poder, referindo às divergências internas que os norteiam: depois do espetáculo de traição simulada – ao vivo e a cores – irradiada pelo celular de um pretendente a Ministro do MDB. Diz o presidente da Câmara Rodrigo Maia, reportando-se à forma inadequada com que o governo distribui recursos para os estados da Federação, para amenizar suas crises financeiras: “o governo foi ágil em dar alguma solução para os estados do Norte e Nordeste, que ideologicamente são uma oposição natural ao governo. Então eles resolveram, porque na política do contraponto eles querem o PT vivo e querem matar o entorno, aqueles que são de centro-direita…”
Primeira mentira calhorda: o governo não está privilegiando nenhum governo da esquerda ou do PT, na distribuição de recursos, como se viu da própria e provocadora exposição de Maia; segunda mentira calhorda, em tão poucas palavras: este governo e Bolsonaro – em particular – jamais desejou o PT “vivo” e até simulou nos metralhar, sob o silêncio cúmplice das instituições do Estado, paralisadas pela sedução e pela violência da escória do mito; mas a terceira mentira calhorda – que desejo tenha sido proferida por ignorância, não por convicção – é que o protofascismo do atual Governo deseje alguém vivo, ao final do seu percurso. Não quer ninguém vivo quem deseja higienizar a sociedade e o Estado de todos os “políticos”, menos dos marginais tornados políticos de Estado ou chefetes de partidos milicianos.
É assim que o fascismo deseja os países em que ele se instala, é assim que Bolsonaro desenha a sua estratégia. Quem não compreender isso poderá até entrar por último em algum canto escuro do seu inferno, mas não terá nenhuma luz para acender e reconhecer o ambiente ou verificar se as ruas estão vazias, “suspensas fora do tempo em meio a uma luz prateada.” Mas saberá que “não é macabro demais para ser verdade”.
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