A invenção da democracia como valor universal
"Compartilho um pequeno trecho da Introdução do livro, com a expectativa de que suas ideias ainda possam ser debatidas livremente a partir de 2023"
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Com o título de “A invenção da democracia como valor universal”, acabo de publicar pela Editora Alameda o meu mais novo livro. Isso, num dos momentos mais angustiantes da vida política brasileira, na qual a eleição presidencial de 30 de outubro – exageros à parte – poderá redefinir o regime político do País e o seu próprio destino como Nação.
No próximo domingo (16/10), a partir das 15h, receberei no Trilhas da Democracia da TV247 os professores titulares Michel Zaidan (UFPE), Daniel Aarão Reis (UFF) e Marcelo Ridenti (Unicamp) para um diálogo sobre a fundamental e controversa ideia criada pelo ex-secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, e difundida entre nós pelo cientista político Carlos Nelson Coutinho.
Abaixo, compartilho com meus leitores/minhas leitoras um pequeno trecho da Introdução do livro, com a expectativa de que suas ideias ainda possam ser debatidas livremente a partir de 2023, seja no ambiente acadêmico, seja nos espaços da sociedade civil engajados na construção da utopia da igualdade das relações de poder, em todas as suas múltiplas dimensões.
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A grossíssimo modo, existem duas grandes maneiras de se compreender as relações existentes entre o pensamento político de Antonio Gramsci, de um lado, e o de Palmiro Togliatti, Luigi Longo e Enrico Berlinguer, de outro lado, no que diz respeito especificamente aos nexos existentes entre socialismo e democracia – exatamente o ponto nodal do “comunismo democrático italiano”, de um ponto de vista teórico-conceitual.
Fundamentalmente constituída por pesquisadores da história do Partido Comunista Italiano e/ou do pensamento de Gramsci que tinham (ou tiveram) alguma relação orgânica com o partido, é prevalecente a ideia de que, não obstante as particularidades do pensamento político de Gramsci, Togliatti, Longo e Berlinguer, havia entre os quatro uma relação de continuidade que acabou por dar forma à tradição do “comunismo democrático italiano”.
Contrária a tal linha de análise, existem aqueles pesquisadores da história do PCI e/ou do pensamento gramsciano, os quais nunca tiveram uma relação orgânica com o partido (ou que dele se afastaram em algum momento da sua trajetória de 70 anos), que defendem a ideia de que o “Gramsci utilizado por Togliatti, Longo e Berlinguer” não corresponde ao “Gramsci real”, ou seja, Togliatti, Longo e Berlinguer teriam se utilizado do pensamento de Gramsci com o propósito de dar legitimidade às táticas e estratégias por estes defendidas nos debates travados dentro do partido.
A pergunta central que se faz, dentro desse contexto, (e tendo em vista que nesse livro nos limitaremos à análise do pensamento político de Enrico Berlinguer nos anos compreendidos entre 1972 e 1984) não consiste em saber qual das duas linhas de interpretação é “a” correta, porque isso nos levaria a seguir o perigoso caminho da busca da pureza conceitual de uma obra e da correta interpretação de um legado tão multifacetado como o contido na obra carcerária de Gramsci, mas sim em investigar a trajetória durante a qual foram realizadas as apropriações e inovações teórico-conceituais e políticas de Berlinguer (ou, dito de outra maneira, as continuidades e rupturas estabelecidas por Berlinguer em relação não apenas a Gramsci, mas também a Togliatti e a Longo) e o conjunto de determinações histórico-sociais e ídeopolíticas que levaram o “comunismo democrático italiano” à sua fase de mais elevada maturação durante os treze anos do secretariado-geral berlingueriano, até a sua repentina morte em junho de 1984.
A hipótese a ser aqui defendida parte da premissa de que da “guerra de posição” gramsciana à “introdução de elementos de socialismo no capitalismo” berlingueriana, passando pela “democracia progressiva” togliattiana e pelo “reformismo revolucionário” de Luigi Longo, efetivou-se uma crescente e permanente valorização da “questão democrática” no interior da estratégia revolucionária dos comunistas italianos, numa obra de transição teórico-política que, por um lado, consolidava a ideia de democracia como valor universal voltado à socialização do poder, e, por outro lado, afastava-se das concepções bolchevistas herdadas da cultura terceiro-internacionalista.
O ápice dessa transição – e nesse ponto apresentamos a nossa hipótese central – deu-se no decorrer da liderança de Enrico Berlinguer à frente do PCI, entre 1972 e 1984. Isso, no plano nacional, num momento em que a Itália atravessava os “anos de chumbo” do terrorismo de extrema-direita e extrema-esquerda e, concomitantemente, quando o PCI berlingueriano tentava estabelecer um difícil pacto estratégico (o “compromisso histórico”) com a Democracia Cristã de Aldo Moro e, em seguida, distanciar-se da DC após o sequestro e assassinato de Moro por meio da estratégia da “alternativa democrática”; e, no plano internacional, por um lado, no periodo em que o Welfare State entrava em crise e o neoliberalismo dava início à sua ofensiva a partir do eixo anglo-saxônico, com Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, e, também, por outro lado, na fase em que se aprofundava a crise dos partidos e regimes de orientação socialista e comunista no continente europeu, incluindo a União Soviética e todos os seus países satélites.
Assim, ao contrário do que possa parecer, a nova fase da Guerra Fria, com todas as suas repercussões internas e externas, representou exatamente o combustível responsável pela elaboração teórica que resultou no ápice da democratização do comunismo italiano, nos treze anos de secretariado de Enrico Berlinguer, bem como na preservação do tecido democrático italiano durante o “período das bombas”. Mas isso só foi possível – insistimos nesse ponto – graças aos sólidos fundamentos teóricos e às decisivas escolhas políticas feitas no decorrer de uma história de cinquenta anos (especialmente, nos vinte e cinco anos que se seguiram à derrota do fascismo e ao término da Segunda Guerra Mundial) por Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Luigi Longo
Em suma, o período mais virtuoso do “fazer política” dos comunistas italianos, levado a cabo pela obra de radicalização da questão democrática capitaneada por Berlinguer, entre 1972 e 1984, deu-se num contexto histórico pleno de adversidades, tendo sido as respostas teóricas e políticas a tais adversidades por meio da opção democrática o elemento diferenciador e o maior legado deixado por Berlinguer para os que se engajam nesses difíceis tempos de retrocesso autoritário no mundo inteiro.
Com isso, a convicta adesão à democracia política foi o elemento diferenciador e permanente da estratégia reformista revolucionária dos comunistas italianos, bem como o seu maior legado para os que lutam contra o avanço do conservadorismo e do neofascismo na atualidade, como que a demonstrar, com o seu exemplo, que fora do universo da luta democrática, não há alternativa para a resistência antifascista e para a garantia e expansão dos direitos humanos – ou dito com outras palavras, é em condições adversas, no arenoso terreno do risco autoritário, que a democracia política demonstra toda a sua validade.v
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