A insuportável leveza da China

O novo livro de Kishore Mahbubani afirma que o rejuvenescimento da China não é movido por qualquer impulso missionário, fato que um Estados Unidos decadente se recusa a entender

Sem rumo na política externa, o governo brasileiro também teve conflitos diplomáticos com a China na crise do coronavírus
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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Como a encarnação viva do futuro encontro entre Oriente e Ocidente, Mahbubani é incomensuravelmente mais capaz de falar sobre a complexidade das questões ligadas à China do que os superficiais e autodesignados "especialistas" em Ásia e China ocidentais.

Principalmente agora, que a guerra híbrida 2.0 contra a China, com suas pesadas táticas de demonização, vem sendo praticada por praticamente todas as facções do governo dos Estados Unidos, do Deep State e do establishment da Costa Leste.  

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Membro ilustre do Instituto de Pesquisas Asiáticas da Universidade Nacional de Cingapura, ex-presidente do Conselho de Segurança da ONU (de 2001 a 2002) e reitor-fundador da Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew (2004-2017), Mahbubani é a quintessência do diplomata asiático. 

Melindrar sensibilidades não é com ele. Ao contrário, ele sempre usa de infinita paciência - e de informações privilegiadas -  quando tenta explicar, especialmente aos americanos, como funciona o estado-civilização chinês.

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Ao longo de todo o livro, uma argumentação elegante e repleta de fatos convincentes dá a impressão que Mahbubani está pondo em prática o Tao. Seja como a água. Deixe fluir. Ele flutua como uma borboleta indo além de sua própria "conclusão paradoxal": "Uma competição geopolítica de grandes proporções entre a América e a China é tanto inelutável quanto evitável. Ele prefere enfocar os caminhos que levam ao "evitável". 

O contraste com a mentalidade confrontadora, esclerosada e irrelevante da Cilada de Tucídides que prevalece nos Estados Unidos não poderia ser mais radical. É muito esclarecedor observar o contraste entre Mahbubani e Graham Allison, da Universidade de  Harvard  – que parecem se admirar mutuamente - em um debate no Instituto da China.
Mahbubani nos oferece uma pista importante para a compreensão de seu enfoque quando ele conta que sua mãe hindu costumava levá-lo a templos hinduístas e budistas de Cingapura - embora, nessa ilha-estado, os monges, em sua maioria, fossem na verdade chineses. Encapsulado nessa lembrança está contido o cerne da intersecção cultural-filosófica que define o Leste Asiático "profundo", que entrelaça confucionismo, budismo e o Tao. 

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Tudo sobre o dólar americano 

Para os asiáticos nativos e para os que, como é o meu caso, de fato viveram em Cingapura, é sempre fascinante perceber que Mahbubani é, essencialmente, um discípulo de Lee Kuan Yew, mas sem a arrogância do chinês. Embora seu esforço, que já vem de décadas, em compreender a China de dentro para fora e de forma ampla  seja mais do que evidente, ele está longe de ser um discípulo do Partido Comunista Chinês (PCC). 

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E ele enfatiza esse ponto de uma infinidade de maneiras,  mostrando que, no slogan do Partido, "Chinês" é muito mais importante que "Comunista": "Diferentemente do Partido Comunista Soviético, [o PPC] não surfa a onda ideológica, ele surfa a onda do ressurgimento de uma civilização... a civilização mais forte e resiliente de toda a história". 

Como não poderia deixar de ser, Mahbubani traça um esboço dos desafios e dos pontos fracos da geopolítica e da geoeconomia tanto chinesas quanto americanas. E isso nos leva ao que talvez seja o cerne da argumentação de Mahbubani nesse livro: a forma como ele explica aos americanos a recente erosão da confiança na "nação indispensável", e como o dólar americano é seu calcanhar de Aquiles. 

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Então, mais uma vez, temos que nos espojar no interminável pântano da situação das reservas de moeda estrangeira; seu "exorbitante privilégio", a recente e descarada transformação do dólar americano em arma de guerra e o inevitável contragolpe - as "vozes influentes" que agora trabalham para pôr um fim ao uso do dólar americano como moeda de reserva. 

Entram em cena a tecnologia do blockchain (ou protocolo de confiança) e a intenção chinesa de criar uma moeda alternativa baseada no blockchain. Mahbubani nos conduz a um Fórum  da China Finance 40 realizado em agosto do ano passado, quando o diretor-adjunto do Banco Popular da China, Mu Changchun, disse que o Banco estava "prestes"  a emitir sua própria criptomoeda.

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Dois meses mais tarde, o Presidente Xi anunciou que o  blockchain se converteria em uma "alta prioridade" para a estratégia nacional de longo prazo. Isso está acontecendo agora. O yuan digital - "um blockchain soberano"  – é iminente.   

E isso nos leva ao papel do dólar americano no financiamento do comércio global. Mahbubani está correto em sua análise quando afirma que, assim que tudo isso tiver terminado, "o complexo sistema internacional baseado no dólar dos Estados Unidos pode desmoronar rápida ou lentamente". O plano diretor da China é acelerar o processo conectando suas plataformas digitais – Alipay, WeChat Pay – em um único sistema global. 

O século asiático 

Como Mahbubani cuidadosamente explica, "embora os líderes chineses queiram rejuvenescer a civilização chinesa, eles não têm qualquer impulso missionário a dominar o mundo e transformar a todos em chineses". E, mesmo assim, a América convenceu a si mesma de que a China se tornou uma ameaça existencial". 

As melhores e mais brilhantes cabeças de toda a Ásia, entre elas o próprio Mahbubani, não conseguem deixar de se estarrecer com a total incapacidade do sistema americano de "fazer ajustes estratégicos a esta nova fase da história". Mahbubani dedica um capítulo inteiro - "A América seria capaz de dar uma guinada de 180 graus?" – a esse enigma.

No apêndice, ele chega a incluir um texto de Stephen Walt que desmonta "o mito do excepcionalismo americano". Não há o minimo indício de que o ethos excepcionalista venha sofrendo qualquer contestação séria. 

Um  relatório McKinsey recente traz uma análise de se "o novo normal" surgirá na Ásia, e algumas de suas conclusões são inevitáveis: "A história global futura começa na Ásia". A análise vai muito além de números prosaicos que provam que, em 20 anos, por volta de 2040, "é esperado que a Ásia responda por 40% do consumo, e por 52% do PIB global". 

O relatório coloca que "talvez esta pandemia, vista em retrospectiva, venha a aparecer como o ponto de virada que marcará o verdadeiro início do Século Asiático".  

Em 1997, na mesma semana em que estava cobrindo a devolução de Hong Kong, eu publiquei no Brasil um livro cujo título em português era  21: O Século da Ásia (trechos de alguns capítulos podem ser encontrados aqui). Naquela época, eu já vivia na Ásia há três anos e havia aprendido um bom número de lições importantes com a Cingapura de Mahbubani. 

A China, então, ainda era um ator distante no novo horizonte. Hoje, o jogo mudou por completo. O Século Asiático - na verdade, o século Eurasiático - já começou, enquanto a integração da Eurásia se desenvolve, movida por acrônimos complicados (BRI, AIIB, SCO, EAEU) e pela parceria estratégica Rússia-China.

O livro de Mahbubani, que capta a esquiva, a insuportável leveza da China, é a ilustração mais recente desse inexorável fluir da história. 

Has China Won? The Chinese Challenge to American Primacy (A China venceu? O Desafio Chinês à Primazia dos Estados Unidos) (Kishore Mahbubani), publicado pela Public Affairs, (US$19.89).        

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