A inflexão da mídia norte-americana
Por que os especialistas ligados aos governos dos EUA e do Reino Unido elogiam as capacidades de guerra eletrônica da Rússia?
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(Publicado no site A Terra é Redonda)
O Business Insider publicou um artigo no domingo passado que citava especialistas ligados aos governos dos EUA e do Reino Unido elogiando as capacidades de guerra eletrônica da Rússia para neutralizar a ameaça que os drones Bayraktar de Kiev, fornecidos pela Turquia, costumavam representar no campo de batalha. Samuel Bennett, do Center for Naval Analyses, com financiamento federal, disse ao site de notícias que “assim que as forças armadas russas se organizaram, conseguiram derrubar muitos TB2”. Acrescentou ainda que, atualmente, Kiev utiliza estes drones sobretudo para fins de reconhecimento.
O núcleo da avaliação de Bennett foi anteriormente compartilhado pelo Royal United Services Institute do Reino Unido, que é parcialmente financiado pelo governo, cujo relatório de 19 de maio sobre as táticas russas no segundo ano deste conflito foi citado também no artigo da Business Insider. O texto chamava a atenção para a parte que descrevia a guerra eletrônica como um “componente crítico” das táticas russas, que, segundo seus especialistas, contribuiu para as enormes perdas de drones da Ucrânia nos últimos 15 meses, desde o início da “operação especial”.
Os observadores casuais podem ter ficado surpresos ao ver especialistas ligados aos governos dos EUA e do Reino Unido elogiando as capacidades de guerra eletrônica da Rússia numa popular mídia tradicional, especialmente no que diz respeito à forma como neutralizaram o que anteriormente tinha sido considerado uma das “wunderwaffen” [maravilhas] de Kiev. Aqueles que seguem de perto a narrativa emergente da mídia tradicional, no entanto, de modo algum teriam sido pegos desprevenidos, dado que este desenvolvimento está totalmente de acordo com a última tendência.
O chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, deu o tom no final de janeiro ao avisar que seria provavelmente impossível à Ucrânia desalojar a Rússia neste ano de todo o território que Kiev reclama como seu. Algumas semanas depois, em meados de fevereiro, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, declarou que seu bloco está numa “corrida logística”/“guerra de atrito” com a Rússia, o que implicava a igualdade da capacidade militar-industrial entre seu único adversário e a de duas dúzias e meia de membros desta aliança.
Em meados de março, o Washington Post informou a todos sobre o fraco desempenho das forças de Kiev, depois que o Politico citou, no final de abril, funcionários não identificados do governo Biden, preocupados com a reação do público caso a próxima contraofensiva de Kiev, apoiada pela OTAN, não corresponda às suas expectativas. Pouco depois, o chefe do Estado-Maior da Polônia, Rajmund Andrzejczak, compartilhou algumas verdades “politicamente incorretas” sobre o conflito que reafirmaram as duas avaliações anteriores sobre as fraquezas da Ucrânia.
A dissonância cognitiva, que muitos apoiadores pró-Kiev no Ocidente começaram a sentir como resultado dos meios de comunicação e funcionários de seu bloco, na prática, da nova Guerra Fria contradizerem suas percepções do poder de cada uma das partes, levou alguns como Garry Kasparov a imaginar que agentes russos se infiltraram na Casa Branca. Estas teorias da conspiração mais excêntricas, do tipo QAnon, poderiam proliferar incontrolavelmente no caso da próxima contraofensiva falhar e, assim, arriscar-se a radicalizar uma massa crítica da população com o tempo.
Com o objetivo de impedir preventivamente estas ameaças latentes, o Ocidente tem procurado gradualmente recalibrar suas percepções sobre este conflito, tal como evidenciado pela admissão franca de Milley no início do ano e pelos desenvolvimentos narrativos subsequentes desde então, que foram abordados acima. A intenção é evitar que os apoiadores pró-Kiev mais fervorosos se radicalizem caso suas expectativas de “vitória final” da Ucrânia não se concretizem, o que parece cada vez mais provável.
Para isso, as mensagens estratégicas do Ocidente estão agora orientadas para refletir com maior precisão a verdade sobre esta guerra por procuração, o que coloca em seu devido contexto o último artigo do Business Insider que citava os elogios dos especialistas ligados aos governos dos EUA e do Reino Unido sobre as capacidades de guerra eletrônica da Rússia. Isto também serve indiretamente para moderar as expectativas sobre a potencial obtenção dos F-16 por Kiev, precondicionando sutilmente os apoiadores pró-Kiev a não depositarem todas as suas esperanças nesta última “wunderwaffe”.
Paralelamente, a mídia tradicional, como a CNN, também está preparando o Irã para ser o bode expiatório se a contraofensiva de Kiev falhar, a fim de distrair o público do fato “politicamente inconveniente” da paridade militar da Rússia com a OTAN nesse cenário. O efeito combinado de todos estes desenvolvimentos narrativos é recalibrar as percepções das massas ocidentais sobre este conflito para mais perto da realidade, a fim de amortecer o golpe em seu moral se tudo não correr como esperam até o final deste verão.
O propósito é evitar preventivamente a potencial radicalização dos apoiadores pró-Kiev mais fervorosos que, previsivelmente, começaram a inventar as teorias da conspiração mais excêntricas do tipo QAnon para explicar o fato de que suas expectativas ainda não foram satisfeitas e poderiam nunca ser alcançadas. O motivo suplementar por trás desta mudança estratégica de mensagem é também manter o apoio a Joe Biden em vista das eleições do próximo outono, na esperança de que os apoiadores desanimados de Kiev não o abandonem por causa disso.
A política externa raramente entra nas corridas presidenciais dos EUA, mas a guerra por procuração entre a OTAN e a Rússia na Ucrânia é uma exceção, tendo em vista seus interesses globais. A profunda desilusão que alguns eleitores pró-Kiev indecisos sentiriam perante o possível fracasso da contraofensiva que se avizinha poderia inspirá-los a não participar das eleições, a votar em terceiros e/ou até mesmo a votar nos republicanos, comparativamente mais pragmáticos, como forma de protesto, o que prejudicaria as perspectivas de reeleição de Joe Biden.
Os democratas liberal-globalistas no poder nos EUA, que dominam a mídia tradicional, têm um interesse próprio na reeleição de Joe Biden, daí terem começado a mudar a narrativa oficial sobre esta guerra por procuração há quase meio ano, quando começou a ser impossível manter o roteiro anterior. Desde então, aceleraram seus esforços antes da contraofensiva após perceberem que há uma hipótese credível desta campanha não corresponder às expectativas, com o último artigo do Business Insider representando o esforço mais recente a este respeito.
Em termos simples, a elite está agora disponibilizando ao público relatórios comparativamente mais precisos sobre este conflito, a fim de gerir suas percepções e reduzir o risco dos apoiadores pró-Kiev abandonarem os democratas antes das eleições do próximo outono e/ou de se radicalizarem como resultado de sua desilusão. Estas saídas limitadas verificadas ultimamente dão credibilidade às afirmações de que a contraofensiva provavelmente não corresponderá às expectativas, o que sugere que as conversações sobre o cessar-fogo poderão ocorrer até o final do ano ou o início do próximo ano.
Tradução: Fernando Lima das Neves.
(Publicado originalmente na newsletter do autor.)
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