A impossibilidade da superação da crise pelo mercado livre

A outra solução é deixar o sistema quebrar. Não compactuo com a ideia de que se o sistema financeiro especulativo for à bancarrota o mundo vai junto. A economia real continuará na mesma

A impossibilidade da superação da crise pelo mercado livre
A impossibilidade da superação da crise pelo mercado livre (Foto: AYRTON VIGNOLA)


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0s estudantes de Cálculo I sabem que a única solução para uma equação de duas variáveis (y igual a x.z) é fixar uma delas e fazer variar a outra. Isso, contudo, não dá uma resposta exata. Suponha que você fixou uma das variáveis em "1" e fez a outra percorrer todo o caminho entre "1" e "3". Os números variáveis entre "1" e "3" podem assumir valores decimais infinitos. Já a variável que se tornou um valor fixo terá que assumir valores discretos – 1,1; 1,2, 1,3 etc, sendo que, entre cada um desses valores, há também inúmeros infinitos!

Se você pensar um pouco, e refletir bem, verá que não há nenhuma dificuldade maior em entender esse processo. Acontece que a esmagadora maioria dos economistas, os quais nas últimas décadas tomaram o partido neoliberal de mercado, entendem que duas variáveis em interação – por exemplo, os preços da soja nos Estados Unidos e no Brasil – convergem automaticamente para um preço de equilíbrio. São tontos. O que equilibra preços de mercado são monopólios e oligopólios, não preços livres.

No mercado real interagem milhões de variáveis, não apenas duas. Se são só três, aí mesmo é que jamais haverá equilíbrio. Newton descobriu isso ao tentar estimar as distâncias entre a Terra e os planetas conhecidos: a interação de massas, velocidade relativa e gravitação tornou impossível encontrar um valor exato – algo que Einstein quase resolveu com a Teoria da Relatividade Especial mas não chegou a completar com a Teoria da Relatividade Geral. Em contraposição a isso, o "Nobel" Milton Friedman, mestre do facínora Pinochet, no Chile, acreditava em mercado em equilíbrio, enquanto o equilíbrio político era imposto sob tortura.

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Houve outros Prêmios Nobel que acreditaram na bobagem do "equilíbrio geral", e com isso ganharam bastante dinheiro. Quem perdeu foi o povo vitimado por políticas econômicas de exclusivo favorecimento dos ricos em praticamente todo o Ocidente, com a notável exceção de alguns dos países nórdicos da Europa. É que a crença ideológica no deus mercado – ou Mamon, como diz o Papa Francisco – tira o Estado de qualquer ação efetiva a favor das camadas materialmente menos favorecidas da população.

Escrevi com o matemático Antônio Dória um livro que liquida tecnicamente com o conceito de mercados em equilíbrio geral. Infelizmente, o livro – "O Universo Neoliberal em Desencanto", Ed. Civilização Brasileira – ficou inacessível ao grande público tento em vista o formato altamente técnico que Doria deu a sua parte na obra. Curiosamente, Doria é um intelectual ambíguo: pessoalmente, é muito amigo dos austríacos em cujo país nasceram as principais teorias matemáticas, aplicadas à economia, de equilíbrio geral dos mercados.

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Vejamos agora um exemplo prático. Os preços da soja no Brasil, pressionados pela greve dos caminhoneiros e pelo lockout involuntário do agronegócio, constituem uma variável independente. Os preços da soja nos Estados Unidos, sob pressão baixista por causa de impostos estabelecidos pela China em retaliação ao nacionalismo de Trump, constituem a outra variável. Experimentem agora prever o que vai acontecer com o preço médio futuro da soja nos mercados internacionais nas principais bolsas de valores do mundo. É impossível.

Se é impossível no mercado de commodities, principalmente da soja e do milho, imaginem o que vai acontecer nas outras bolsas mundiais. Todas são caracterizadas pela extrema especulação financeira – futuros, swaps, câmbio, juros etc. Quem perde num mercado ou sai do jogo, ou tenta fazer seguro, tipo swap. Mas o swap também tem risco. E se sai do jogo pode representar uma defesa individual, mas contribui para a redução da liquidez dos mercados conjuntamente, num processo que vaza fronteiras.

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Há solução para isso? Sim, há duas. A primeira aconteceu em 2008, quando, diante da primeira grande crise da financeirização no mundo, nas palavras do presidente francês Sarkozy "todos se tornaram keynesianos". A intervenção nos mercados de ativos financeiros e de ativos reais custou ao Governo de Obama quase 30 trilhões de dólares, cerca de um terço do PIB mundial real. Os Estados Unidos se safaram, mas a Alemanha não deixou que o resto da Europa tomasse o mesmo caminho. O único desobediente foi Portugal, que vai muito bem.

A outra solução é deixar o sistema quebrar. Não compactuo com a ideia de que se o sistema financeiro especulativo for à bancarrota o mundo vai junto. A economia real continuará na mesma: os fazendeiros continuarão plantando, os industriais produzirão seus bens, a área de serviço – exceto a voltada para a especulação financeira – vai se arranjar. Haverá desemprego friccional no início, mas a economia que ressurgir desse caos será muito mais produtiva, muito mais saudável e muito mais respeitosa com os trabalhadores que dão sua força de trabalho para produzir bens reais.

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