A guerreira Soledad volta
"Diferente do tempo biológico, que se encarna em rugas e na finitude, o passado estrela guarda o seu frescor porque nos atinge num transporte instantâneo de ontem para agora", diz Urariano Mota
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O passado é o mais longo tempo. Ele está sempre sendo reconstruído, queiramos isso ou não. Nem me refiro ao fato mais básico de que o passado é esta língua que vem e se transforma desde idades sem registro. Eu me refiro a um passado mais novo, recente, desta manhã há cerca de mais de 40 anos. Não parece que foi ontem, como se diz. Parece que foi agora, nesse raio de segundo que passou na extensão desta frase. Por mais que não queiramos, por mais que ergamos novos obstáculos à sua volta, quanto mais fazemos de conta que não vemos as datas e seus significados, ele volta e vem e nos encontra, quando menos o esperamos. Pessoas são como estrelas – insisto – cuja luz vem para nós, não importa quantos anos distantes. Elas tornam e acendem um calor em nosso peito. Diferente do tempo biológico, que se encarna em rugas e na finitude, o passado estrela guarda o seu frescor porque nos atinge num transporte instantâneo de ontem para agora. Aquilo que a Física chama de anos-luz, para assim expressar a distância fabulosa que a luz de uma estrela, talvez inexistente hoje, correu a 300 mil quilômetros por segundo, guarda uma expressão mais complexa na memória que se reconstrói em todos nós, como se fôssemos artistas cujo ofício é lembrar. Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há quase 50 anos. E diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos.
Nestes dias, obedecendo a impulso incontrolável, tentei compor esta canção para Soledad Barrett:
“Quando te vi pela primeira vez, Soledad
Me deu vontade de cantar.
Lá no Pátio de São Pedro
Correu um fogo em meu coração
Que me dizia
Haveria incêndio se eu tocasse as tuas mãos.
Mas em 1973, Sol, o amor era uma alienação.
E a canção que não vinha me torturava assim:
‘Como posso tocar a sua alma? Como posso tê-la junto a mim?’
Em 73, no calor dos teus olhos, Soledad,
havia um fogo irresistível para todos
Não sei se era uma alucinação
Pois sentia o perfume dos jasmins,
Como se as pétalas do teu corpo
batessem num feitiço em cima de mim
Os beija-flores, mais educados que os amantes,
sabem que podem tocar a intimidade da flor
e por isso são felizes.
Diferente de ti, Soledad, que eras flor vermelha
e não recebeste o carinho de acender a centelha.
Por isso minha lembrança evitou a dor da tua morte,
Por isso pude ouvir o canto da criança guarani:
‘Filha do paraíso azul / entra para mim’.
Ainda ontem, em um ato público, ao gritarem o teu nome, Soledad,
a minha voz ao responder ‘presente’ fraquejou,
como se fraqueja diante de quem se ama
pois o teu nome em meu coração não cessou
As santas do Paraguai carregam o filho nos braços
e a aos pés delas têm anjos,
até lua em quarto minguante.
Mas um feto nos pés e sangue na fogueira
Somente Soledad, a guerreira
Por isso estás presente hoje nas cordas do violão
E para a tua nova vida eu fiz esta canção”.
Perdoem o lugar-comum da rima e o quanto fui tosco. Talvez importe mais o não-dito, que desejou apenas dizer “a voz fraqueja porque a tua presença não terminou em meu coração”. Não é nem “continuou”, porque a pessoa agora é melhor compreendida, e nesse entendimento o nosso afeto cresce. É próprio do homem crescer com humanos. Por que ela acorda e nos acorda dessa maneira? Toda a gente, quando simplifica histórias de terror, pensa que um remorso persegue o criminoso. Mas não é assim que a realidade nos toca. Se remorso houver em relação a Soledad, e a todos os socialistas que a tortura destruiu, se remorso houvesse, ele deveria perseguir o Cabo Anselmo. Mas esse anda, gargalha, palita os dentes e chega a reclamar dinheiro da Anistia, porque afinal teria sido perseguido pela ditadura. Dizer o quê diante do cinismo endurecido? Não, a ele o remorso não fere. “Você dorme bem?”, um repórter lhe perguntou. “Putz, tranquilamente”. E o repórter: “Você dorme tranquilo?! Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?”. E Anselmo: “Absolutamente. Não tenho”. E riu. Se o remorso persegue uma pessoa, talvez atinja as que nada fizeram, ou calaram depois do massacre de militantes contra a ditadura no Recife. Mas a esses mesmos, penso, o remorso ainda não fere. Loucas e tortuosas são as voltas da consciência. Ela é esperta e só quer a sobrevivência confortável. Não, a essa gente a verdade ainda é vedada.
Então, como volta a pessoa que foi separada de modo brutal da vida? É como se não a procurássemos, é como se delas até quiséssemos fugir, mas de repente, por caminhos imprevisíveis, ela retorna. Penso e creio que ela está conosco, sempre, e fizemos de conta que nem mais existia. Assim aconteceu comigo, no cemitério, ao acompanhar o enterro da tia de um amigo. Súbito, me apareceu uma senhora de cabelos branquinhos, que falou me conhecer desde menino. A idosa me conhecera desde o tempo em que eu possuía mãe viva. E se pôs a falar e despertou numa avalanche tudo que estava submerso em mim. De modo igual ocorre quando fingimos não estar com a pessoa querida, para assim ignorar o nosso próprio corpo. Andamos com ele, com ele vamos à feira, ao bar, à livraria, às festas, como se nos transportasse um fluido imaterial. Mas ele está conosco, e só lhe prestamos atenção quando no íntimo nos pula uma dor. “Ah, este meu corpo existe”, e não mais podemos correr, ver o mar, inspirar o azul, porque o seu peso e aflição nos prendem. Assim também com as pessoas fundamentais, elas são o nosso corpo, estão conosco, com elas vamos à cama, à mesa, enquanto a sua presença sussurra e segreda em nós. Discreta, fundamental e silenciosa. Mais forte e senhora do nosso corpo que um câncer, porque ela nos vence com a ternura daquilo que nos funda. Assim, de repente, quando penso que Soledad está morta e sepultada não se sabe onde, de repente me aparece à frente um senhor baixinho, cabelos prateados, olhos vivos como os possuem os militantes comunistas que muito viveram. Ele me considera de modo firme e fala:
- Eu conheci Soledad.
Eu recebo o golpe e de imediato não o compreendo. Estou no Teatro Hermnilo Borba Filho, acabo de ver o monólogo sobre Soledad no palco. Então tudo é meio vivo, meio teatro, não sei, o momento em que estamos é o da suspensão da lógica mecânica.
- Eu conheci Soledad.
“Será que ele se refere ao conhecimento que teve dela nesse espetáculo, ou ao livro que escrevi?“, penso, mas não consigo falar. Estou naquelas zonas de estupefação em que a gente pensa e perde a fala. Mas de tal modo ele repete a frase, que num esforço de gentileza articulo:
- Foi? - E ele responde:
- Ela foi na minha casa. – E se aproxima de nós uma senhora, que venho a saber depois ser a sua esposa. E fala: - Muitas vezes. - E volta o senhor: - Conheci os dois. Ela e Anselmo.
Enquanto ele fala, se acerca de nós a jovem senhora Ñasaindy, filha de Soledad. E num impulso o abraça, calorosa. Então o senhor lhe fala:
- Parece que estou abraçando a sua mãe.
E saímos da sala de recepção do teatro. Eu estou tonto, porque saltam de repente os fenômenos adormecidos. Vamos para o pátio e conversamos como velhos amigos, aquela conversa em que estamos com toda a nossa pessoa. Só atenção, fraternidade e conhecimento antigo. Amigo será irmão de antigo? Aliás, as palavras que não saíam vêm num atropelo. O senhor com quem converso, que tem o nome de Marx, fala da sua prisão, de como caiu a máscara do infiltrado Anselmo. De um fusca verde que Anselmo usava sempre “com gasolina pela boca”, e de como um vizinho reconheceu o carro, propriedade de um coronel do Exército. Anticomunista. Mas para mim resulta mais a lembrança da esposa de Marx:
- A gente fazia sapatinhos de bebê com Soledad.
- Sapatinhos para quem? – pergunto.
- Para o bebê que ela estava esperando.
- Mas Anselmo fala que Soledad não estava grávida.
Marx sorri fino. A sua esposa o acompanha, negaceando com o queixo. E sinto que falam sem palavras: “Quanto cinismo. Que canalha”. Mas o movimento de condenação ao criminoso passa por ele e se dirige para a mãe que espera o filho, encostada ao muro do quintal da casa. Então a sua pessoa volta, desce e falamos sobre ela, como se estivesse presente e lhe prestássemos um reconhecimento. Na verdade, esta é uma sensação que temos presente. Quando eu falava para Hilda Torres, a atriz que a reencarna no palco, quando eu falava para Hilda lá na Ilha de Kos, eu lhe disse:
- Eu sinto Soledad como se ela entrasse agora por aquela porta. Eu sou ateu, mas sinto a sua presença viva.
É um vivo sem a matéria do corpo, eu poderia ter dito. Mas isso podia ser interpretado de um modo tão espírita, que cairíamos numa discussão do gênero Allan Kardec. Mas a pessoa de Soledad é real, a pessoa que nos acompanha é real, e se nela não tocamos com os dedos, podemos sentir o seu cheiro, as pernas, o rosto, o riso, sentir quase sem ver, se me entendem. Sabem a luz da estrela que vemos e não pegamos? A pessoa que amamos se toca, se pega, mas sem o tato, ou melhor, com um longo e total sentido, ainda que não o queiramos. É um imperativo do coração. É como se o sentimento se desprendesse da nossa vontade e autônomo nos desse uma ordem. Age, anda e voa. E o ser limitado que éramos ganha o espaço para abarcar o valor que não tínhamos sido. Mistura de empatia, solidariedade e sentimento oculto. É como se estivéssemos bêbados de amor, enfim. Então o beijo em Soledad voltou, lá do fundo daquela tarde de antes. Com mais precisão, voltou nos lábios que abraçam a sua pessoa.
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