A guerra tem rosto e voz de homem

As mulheres veem a guerra como o cotidiano que é: imigração, separação, morte, escreve a jornalista Gisele Federicce

Pessoas voando da Ucrânia para a Hungria, após a invasão russa
Pessoas voando da Ucrânia para a Hungria, após a invasão russa (Foto: REUTERS/Bernadett Szabo)


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Por Gisele Federicce

Tudo o que se sabe, discute e articula sobre a guerra é protagonizado por homens. As delegações de Rússia e Ucrânia, os ministros de Relações Exteriores, os presidentes, os soldados, a grande maioria dos analistas internacionais nos meios de comunicação pelo mundo. Com apenas duas exceções de maior visibilidade na mídia - a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, e a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, duas posições estratégicas, porém, não de comando - as cenas relacionadas ao conflito são todas predominantemente masculinas.

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Falando de um país que não tem relação direta com a guerra atual, o Brasil, observo que as discussões sobre o conflito têm gerado defesas enfáticas, tensões e até rompimentos sem que nenhuma mulher esteja presente. Seja ao vivo, na mídia hegemônica ou progressista, nas redes sociais ou nos diálogos do cotidiano. O debate sobre o tema é formado por homens que estão 100% certos de suas convicções e veem seu interlocutor como ingênuo, ignorante ou traidor por pensar de outra forma.

“Se tivéssemos mais mulheres em posição de mando no mundo, com certeza não estaríamos testemunhando a guerra na Ucrânia”. A declaração do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, tem fundamento comprovado. A origem da relação masculina com a guerra e a violência é estudada desde a ancestralidade - quando os homens saíam para caçar e faziam guerras e as mulheres cultivavam a terra e ficavam mais próximas do que estivesse relacionado à criação da vida do que das coisas que a destroem.

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Pesquisas acadêmicas no Canadá e na Inglaterra já apontaram por exemplo¹ que os países mais beligerantes são aqueles onde a proporção de jovens do sexo masculino passa dos 35%. Ou que os homens reagem de maneira mais ativa a ameaças externas², e portanto, têm probabilidade maior de apoiar a entrada de um país numa guerra, de oferecer-se para atuar nas Forças Armadas e de liderar grupos de maneira mais autocrática e militarista do que as mulheres.

Mas há mulheres na guerra, sempre há. As mulheres que deixam o país acompanhadas dos filhos pequenos e dos idosos - porque os maridos e irmãos foram obrigados a ficar para lutar; as mulheres que lutam no front, junto dos homens, apesar de serem minoria; as mulheres que ficam para cuidar de tudo e fazem seus os bairros, vilarejos, comunidades, enquanto aguardam a paz e o retorno de parte dos homens. Cerca de 90% dos que fugiram da Ucrânia desde o início da guerra (hoje é o 25º dia) - de um total de dez milhões de pessoas, mais de um quarto da população do país - são mulheres e crianças, segundo a ONU.

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A guerra “impacta de forma diferente homens e mulheres. Um dos dados que temos é que a mínima a porcentagem de notícias e histórias na mídia sobre as guerras incluem mulheres, e quando elas são citadas, muito raramente são protagonistas dos processos de paz. Mulheres em situações de guerra e conflito são somente vistas como vítimas, como pessoas a serem protegidas, os heróis são sempre os homens. Sim, elas são vítimas, é importante falar sobre isso, mas mulheres também estão fazendo paz”, descreveu Joana Chagas, da ONU Mulheres, em uma entrevista de 2019.

No livro “A guerra não tem rosto de mulher”, a jornalista bielorrussa Svetlana Alexijevich, Nobel de Literatura em 2015, percebe e sente, a partir de entrevistas feitas com mulheres que vivenciaram diversas guerras, como elas viam e viviam o conflito de forma diferente dos homens. Enquanto para os homens a guerra é contada como um fato histórico, feita por pessoas honradas e de atitudes gloriosas, que engrandecem o ser humano perante o inimigo “inumano” e cruel, a mulher lida com os acontecimentos da forma como eles são; um período de morte, ódio e muito sofrimento:

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A memória feminina sobre a guerra, em termos de concentração de sentimentos e de dor, é a que tem mais “tempo de exposição”. Eu até diria que a guerra “feminina” é mais terrível que a “masculina”. Os homens se escondem atrás da história, dos fatos, a guerra os encanta como ação e oposição de ideias, diferentes interesses, mas as mulheres são envolvidas pelos sentimentos. E mais: desde a infância, os homens são preparados para que, talvez, tenham que atirar. Não se ensina isso às mulheres… elas não se aprontaram para fazer esse trabalho… E elas lembram de outras coisas, ou lembram de outra forma. São capazes de ver o que está escondido para os homens. Vou repetir mais uma vez: a guerra delas tem cheiro, cor, o mundo detalhado da existência. (...) Não importa de que falem as mulheres, nelas estava sempre presente a ideia de que a guerra é só uma matança, e depois, trabalho duro. E então só a vida habitual: cantavam, se apaixonavam, usavam bobes de cabelo. No centro, sempre o fato de não querer e não aguentar morrer. E é ainda mais insuportável e angustiante matar, porque a mulher dá a vida. Presenteia. Carrega-a por muito tempo dentro de si, cria. Entendi que para as mulheres é mais difícil matar (ALEXIEVICH, 2016, p. 20).

A guerra não tem rosto de mulher, embora carregue os relatos, o sofrimento e também a luta pela paz das mulheres. Elas não estão na linha de frente dos combates nem ocupam o centro dos debates arraigadas em convicções sobre o lado “certo” e o “errado”. Nem ocupam-se de como, depois da matança, o mundo se organizará. Elas veem a guerra como o cotidiano que é: imigração, separação, morte.

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[1] Os biólogos Christian Mequida e Neil Wiener, da Universidade York, em Toronto, Canadá, analisaram a história e a população de mais de 150 nações

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[2] Segundo Mark van Vugt, professor da Universidade de Kent, no sul da Inglaterra, a conclusão de estudos feitos com grupos formados com 300 estudantes universitários, de diferentes gêneros e em campos diversos da psicologia comportamental, indica que os homens se relacionam bem e cooperam mais diante de adversidades, para proteger seus interesses - mais do que as mulheres - o que pode explicar por que a guerra é uma atividade quase exclusivamente masculina. 

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