A ‘Guerra Eterna’ beneficia os afegãos? Siga o dinheiro
Quem comprou ações da Lockheed Martin, da Northrop Grumman, da Raytheon e de outras empresas do setor de defesa dos Estados Unidos ganhou uma nota preta
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Depois de 20 anos e estarrecedores 2,23 trilhões de dólares gastos em uma "guerra eterna" insistentemente narrada como promoção da democracia e proteção do povo afegão, é legítimo perguntar que resultados o Império do Caos tem para mostrar.
Os números são desastrosos. O Afeganistão continua sendo a sétima nação mais pobre do mundo: 47% da população vive abaixo da linha da pobreza, segundo o Banco de Desenvolvimento Asiático. Nada menos que 75% do orçamento do agora dissolvido governo de Cabul provinha de ajuda externa. Segundo o Banco Mundial, essa ajuda foi responsável por 43% da receita da economia - sugados pela corrupção maciça do governo.
Nos termos do acordo Washington-Talibã assinado em Doha em fevereiro de 2020, os Estados Unidos deverão continuar a financiar o Afeganistão durante e após a retirada.
Agora, com a Queda de Cabul e o iminente retorno do Emirado Islâmico do Afeganistão, vai ficando claro que o uso de táticas de poder brando financeiro pode ser ainda mais letal que uma mera ocupação da OTAN.
Washington congelou 9,5 bilhões de dólares em reservas do Banco Central Afegão, e o Fundo Monetário Internacional cancelou seus empréstimos ao país, incluindo 460 milhões de dólares que fazem parte do programa de combate à covid -19.
Esses dólares custeiam os salários do setor público e as importações. Sua falta levará a um sofrimento ainda maior para o "povo afegão" como consequência direta da inevitável desvalorização da moeda, da alta dos preços dos alimentos e da inflação.
Um corolário dessa tragédia econômica é a clássica pirueta "agarre o dinheiro e corra": O ex-presidente Ashraf Ghani fugiu do país após, ao que consta, encher quatro carros com a quantia de 169 milhões de dólares em dinheiro vivo e deixar 5 milhões na pista de pouso do aeroporto de Cabul.
Isso segundo duas testemunhas: um dos guarda-costas do presidente e o embaixador afegão no Tajiquistão. Ghani negou as acusações de pilhagem.
No Tajiquistão, e também no Uzbequistão, foi negada permissão de pouso ao avião de Ghani, que então seguiu para Oman, até Ghani ser bem-recebido na UEA – muito próxima a Dubai, uma meca global de contrabando, lavagem de dinheiro e crime organizado em geral.
O Talibã já declarou que um novo governo e uma nova estrutura política e econômica só serão anunciados após as tropas da OTAN saírem definitivamente do país, o que acontecerá no próximo mês.
As complexas negociações para a formação de um governo "inclusivo", repetidamente prometidas pelo porta-voz do Talibã, são na verdade conduzidas, no lado não-talibã, por dois membros de um conselho de três: o ex-presidente Hamid Karzai e o eterno rival de Ghani, o dirigente do Alto Conselho para a Reconciliação Nacional, Abdullah Abdullah. O terceiro membro, que atua nas sombras, é o chefe guerreiro transformado em político e duas vezes primeiro-ministro, Gulbuddin Hekmatyar.
Karzai e Abdullah, ambos muito experientes, são vistos pelos americanos como "aceitáveis", o que poderia contribuir para facilitar um futuro reconhecimento oficial do Emirado Islâmico do Afeganistão pelo Ocidente e para a retomada de financiamentos por instituições multilaterais.
Mas há miríades de problemas, inclusive o papel muito ativo desempenhado por Khalil Haqqani, que preside a Comissão do Conselho de Paz do Talibã, cujo nome consta da "lista de vigilância ao terror" e que sofre sanções da ONU. Haqqani está encarregado não apenas da segurança de Cabul mas também de participar, juntamente com Karzai e Abdullah, nas discussões sobre a formação de um governo inclusivo.
Como o Talibã funciona
Há duas décadas o Talibã vem operando fora do sistema bancário ocidental. O grosso de sua receita vem de impostos de circulação aplicados às as rotas de comércio (por exemplo, com o Irã) e nas taxas sobre combustíveis. Consta que os lucros com as exportações de ópio e heroína (o consumo interno não é permitido) representem menos que 10% de sua receita.
Em muitas aldeias do interior profundo do Afeganistão a economia gira em torno de pequenas transações em dinheiro e escambo.
Recebi uma cópia de um artigo proveniente dos escalões mais altos da inteligência acadêmica paquistanesa examinando os desafios que o novo governo afegão tem pela frente.
O artigo observa que "a rota de desenvolvimento a ser seguida tenderá a ser fortemente pró-povo. O Islã do Talibã é socialista, com aversão ao acúmulo de riqueza nas mãos de poucos e, o que é importante, repúdio à usura.
O artigo prevê que os passos iniciais em direção aos projetos de desenvolvimento devem partir de empresas russas, chinesas, turcas, iranianas e paquistanesas – e também de alguns poucos setores governamentais. O Emirado Islâmico "espera pacotes de desenvolvimento de infraestrutura" a custos "acessíveis ao atual PIB do país".
O PIB nominal do Afeganistão em 2020 foi de 19,8 bilhões, segundo dados do Banco Mundial.
Espera-se que novos pacotes de ajuda e investimentos cheguem de países-membros da Organização de Cooperação de Xangai (Rússia, China, Paquistão) ou de países observadores da OCX (Turquia e atualmente o Irã – programado para passar à condição de membro pleno na próxima cúpula da OCX, a ter lugar no mês que vem, no Tajiquistão). Fica implícita a ideia de que o reconhecimento pelo Ocidente será uma tarefa de Sísifo.
O artigo admite que o Talibã não teve tempo para avaliar que a economia será o vetor decisivo na determinação da futura independência do Afeganistão.
Mas essa passagem do artigo talvez traga a chave da questão: "Em suas consultas junto aos chineses, eles foram aconselhados a irem com calma e a não criarem problemas para o sistema mundial do Ocidente se apressando a falar sobre o controle estatal do capitalismo, sobre uma economia livre de juros e sobre os lanos de desligar-se do sistema financeiro baseado no Fundo Monetário Internacional. Mas como o Ocidente recolheu todo o dinheiro do tesouro público afegão, é provável que o Afeganistão se candidate a pacotes de ajuda de curto prazo dando como garantia sua base de recursos".
FMI-OTAN como irmãos de armas
Perguntei a Michael Hudson, professor de economia da Universidade do Missouri, em Kansas City, e da Universidade de Pequim, que curso de ação ele recomendaria ao novo governo. Sua resposta foi: "Em primeiro lugar, fazer o FMI morrer de vergonha por atuar como braço da OTAN".
Hudson se referia a um artigo publicado no Wall Street Journal, de autoria de um ex-consultor do FMI que agora trabalha para o Atlantic Council, dizendo que "agora, uma vez que o reconhecimento está paralisado, os bancos de todo o mundo hesitarão em negociar com Cabul. Essa medida dará aos Estados Unidos força de pressão para negociar com o Talibã".
O Afeganistão, portanto, talvez esteja seguindo o mesmo caminho que a Venezuela: o FMI não "reconhecendo" um novo governo por meses, e até anos a fio. E sobre o confisco do ouro afegão pelo New York Fed – na verdade, uma conjunto de bancos privados - vemos os ecos da pilhagem do ouro da Líbia e do confisco do da Venezuela.
Hudson vê todo o citado acima como "um abuso do sistema monetário internacional" – que supostamente seria um serviço público - atuando como braço da OTAN controlada pelos Estados Unidos. A atuação do FMI, principalmente no que diz respeito aos novos direitos de retirada, deve ser vista como um teste decisivo para a viabilidade do Afeganistão governado pelo Talibã.
Hudson vem agora trabalhando em um livro sobre o colapso da Antiguidade. Suas pesquisas o levaram a Cícero, em Pro Lege Manilia (A Favor da Lei Maniliana), escrevendo sobre a campanha militar de Pompeu na Ásia e seus efeitos sobre as províncias, em uma passagem que se aplica perfeitamente à "guerra eterna" do Afeganistão:
"As palavras não conseguem expressar, cavalheiros, o quão amargamente odiados nós somos entre as nações estrangeiras, em razão da conduta libertina e ultrajante dos homens que, em anos recentes, enviamos para governá-los. Pois, naqueles países, que templos acreditais que foram respeitados como sagrados por nossos oficiais, que estado foi inviolável, que lar suficientemente guardado por suas portas fechadas? Ora, eles buscam cidades ricas e florescentes para encontrar razão de guerrear contra elas para satisfazer sua ganância pelas pilhagens".
Passando dos clássicos a um nível mais prosaico, o WikiLeaks vem tocando repetidamente uma espécie de Grandes Sucessos do Afeganistão, relembrando a opinião pública, por exemplo, de que ainda em 2008, não havia uma "data final predefinida" para a "guerra eterna".
Mas a avaliação mais concisa talvez tenha vindo do próprio Julian Assange:
"O objetivo é usar o Afeganistão para lavar o dinheiro saído das bases tributárias dos Estados Unidos e da Europa através do Afeganistão e de volta às mãos da elite transnacional de segurança. O objetivo é uma guerra eterna, não uma guerra vitoriosa".
A "guerra eterna" pode ter sido um desastre para o bombardeado, invadido e empobrecido "povo afegão", mas foi um retumbante sucesso para o que Ray McGovern tão memoravelmente definiu como o complexo MICIMATT (Militar-Industrial-Contra-Inteligência-Mídia-Academia-ThinkTank). Quem comprou ações da Lockheed Martin, da Northrop Grumman, da Raytheon e de outras empresas do setor de defesa dos Estados Unidos ganhou uma nota preta.
Os fatos são realmente sombrios. Barack Obama – que presidiu sobre uma volumosa "lista de mortes" afegã – dá uma festa de aniversário e convida os novos-ricos woke. Julian Assange sofre tortura psicológica aprisionado em Belmarsh. E Ashraf Ghani fica matutando sobre como gastar os 169 milhões de dólares na máfia de Dubai, dinheiro que alguns dizem ter sido devidamente surrupiado do "povo afegão".
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