A guerra bolsonarista

"Existe um risco real de o bolsonarismo evoluir para uma organização político-militar de estilo fascista. Dois ingredientes favorecem esse risco. Primeiro: o governo Bolsonaro tende ao fracasso na sua face institucional, formal", diz o colunista Aldo Fornazieri; "Quanto mais o governo formal tender ao fracasso, mais o governo informal, não institucional, tende a vir à tona buscando, inclusive, controlar as rédeas do governo formal", diz ele, acrescentando que "existe um risco real de o bolsonarismo evoluir para uma organização político-militar de estilo fascista"

A guerra bolsonarista
A guerra bolsonarista (Foto: Adriano Machado - Reuters)


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O governo Bolsonaro tem duas faces: uma formal, institucional onde ocorre a administração do Estado e as políticas de governo; outra informal, não institucional, fundamentalmente ideológica, onde se opera a guerra política, com uma estratégia bem definida de ataque a inimigos e adversários e a partir da qual se pretende instituir uma nova ordem nacional, salvar a pátria contra seus inimigos, produzir uma sociedade ordenada e disciplinada e afirmar (resgatar) uma nova cultura, entendida como a cultura ocidental tradicional fundada na valorização da pátria, da nação, da família, da religião e de Deus.

Bolsonaro, como presidente, opera nas duas faces do governo. Daí ganha sentido lógico as postagens, atitudes e declarações sem sentido político e governamental que ele faz nas redes sociais e em ambientes diversos. Os filhos de Bolsonaro são chefes do governo informal. A maior parte dos ministros opera na face formal e institucional do governo. No entanto, alguns ministros (Educação, Relações Exteriores, Família...) e outros assessores espalhados em vários ministérios e no próprio Palácio do Planalto operam também nas duas faces do governo, mas com forte dedicação à face informal, não institucional. A partir dessas posições de poder, onde contam com informações privilegiadas, municiam os “camisas negras” do bolsonarismo, as milícias virtuais e as milícias reais que lhes dão suporte na promoção da guerra política.

Alguns ministros, embora não atuem na face informal do governo, fazem claras concessões aos “camisas negras”. O caso mais notório é o de Sérgio Moro, que fraqueja ao primeiro grito dos milicianos bolsonaristas. Existem agudas contradições entre as necessidades do governo formal para se viabilizar junto a grupos de interesse que elegeram Bolsonaro e até mesmo com interesses do país com os interesses ideológicos do governo informal trumpista e pró-EUA, o que tende a gerar crises recorrentes produzidas no seio do próprio governo. O governo informal, Bolsonaro à frente, não titubeia em degolar Bebianno e em humilhar Sérgio Moro, Ricardo Velez ou qualquer outro.

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O termo “camisas negras” se refere ao movimento político-militar criado por Benito Mussolini no entreguerras. Originalmente surgiu como movimento político que usava retórica violenta para depois se tornar um movimento militar que se esmerou no uso da violência como instrumento de poder e de aniquilação de inimigos políticos. Uma das características típicas dos movimentos totalitários nazifascistas, descrita pelos estudiosos, consiste no uso sistemático das mentiras como elemento de propaganda e da violência como meio de poder. O bolsonarismo, embora minoritário no governo e na sociedade, propende claramente a esta tipologia. Essas minorias mentirosas e violentas tendem a se impor em face da covardia dos liberais, dos democratas e pela desorganização das esquerdas. No Brasil, os “camisas negras” vestem o verde-amarelo do “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Os integralistas de Plínio Salgado já vestiam camisas verdes.

Existe um risco real de o bolsonarismo evoluir para uma organização político-militar de estilo fascista. Dois ingredientes favorecem esse risco. Primeiro: o governo Bolsonaro tende ao fracasso na sua face institucional, formal. Bolsonaro não tem nenhuma aptidão e preparo para ser presidente. Ademais, Bolsonaro não é um líder popular típico, não tem força política no Congresso e nem habilidade para a negociação e a mediação políticas. É verdade que esses problemas podem ser atenuados pelas atuações dos presidentes da Câmara, do Senado e do STF. Mas, dificilmente, eles salvarão o governo de um desempenho sofrível e medíocre. Quanto mais o governo formal tender ao fracasso, mais o governo informal, não institucional, tende a vir à tona buscando, inclusive, controlar as rédeas do governo formal. Mas o governo informal, os “camisas negras”, tenderão à radicalização política, aos linchamentos de reputações, e buscarão as ruas para legitimar suas ações.

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Existe uma base social para a formação de um movimento político-militar do bolsonarismo? Sim, existe. Ela se compõem de diversos grupos disponíveis: as milícias já existentes, que têm ligações com polícias militares e com a própria família Bolsonaro; as milícias do agronegócio; setores minoritários e radicalizados das Forças Armadas; setores das polícias militares e Federal e grupos sociais e categorias radicalizados que veem num governo militar a única saída para o Brasil. Setores evangélicos também podem ser manipulados para este fim. Até mesmo setores da classe média identificados com a Lava Jato podem aderir a um movimento deste tipo. Não por acaso, Deltan Dallagnol se propõe apedrejar o STF, Joice Hasselmann defende um golpe militar e Regina Duarte prega o fechamento do Supremo. O bolsonarismo agora vai às ruas contra o STF, o mesmo STF que foi um dos artífices da vitória de Bolsonaro. Se o STF seguiu a Constituição na questão do julgamento dos crimes de caixa 2 e conexos, errou gravemente ao determinar uma investigação própria de supostas ofensas e críticas ao Tribunal e aos ministros da Corte. Trata-se de uma clara violação de competências – uma afronta à Constituição.

A guerra bolsonarista tem vários alvos e os seus ataques mudam de intensidade conforme a conjuntura. No plano partidário os alvos são o PSol, o PT as esquerdas em geral. Mas setores da grande imprensa, jornalistas específicos, o STF, possíveis concorrentes de Bolsonaro em 2022, os movimentos sociais, os movimentos de luta por direitos civis (feministas, LGBTs, ambientalistas, grupos de direitos humanos, índios, movimentos negros etc.), também estão na linha de tiro das trincheiras bolsonaristas. Sempre que possível, o bolsonarismo usa as políticas de governo para enfraquecer seus alvos, como foi o caso dos sindicatos que foram proibidos de descontar a contribuição sindical dos salários.

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Lula poderá se tornar o epicentro da guerra bolsonarista. Admita-se que o PT e aliados consigam fazer uma campanha efetiva por Lula Livre. Certamente haverá respostas. Ou, admita-se, mesmo que remotamente, que os tribunais superiores anulem o sentenciamento de Lula ou lhe concedam algum tipo de liberdade. Neste caso, a guerra será intensa e aberta. Os ataques ao STF podem ser preventivos, visando impedir alguma concessão a Lula.

Se do ponto de vista ideológico o bolsonarismo se liga a movimentos internacionais da chamada nova direita populista, do ponto de vista prático é uma fraude. De fato, os bolsonaristas, mal ou bem, procuram enfatizar o resgate “dos fundamentos morais da civilização ocidental e dos valores judaico-cristãos”, sob uma ótica conservadora e retrógrada. Mas, do ponto de vista prático, se confrontam à “nova direita” na medida em que ela procura fazer uma crítica ao capitalismo financista que “transforma as pessoas em mercadorias” e empobrece os trabalhadores, nas palavras de Steve Bannon. Ocorre que o programa ultraliberal de Bolsonaro-Guedes é o que há de mais perverso em termos de direitos dos trabalhadores e da perspectiva de um empobrecimento ainda maior dos mais pobres. Enquanto a chamada “nova direita” procura assentar suas bases numa aliança entre “as classes médias e os trabalhadores”, no bolsonarismo não há nenhuma referência a bases sociais. Suas políticas tendem a quebrar justamente os interesses das classes médias e dos trabalhadores. Neste particular, o bolsonarismo aparece como um filho pervertido da “nova direita” populista

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Junto do ataque ao capitalismo financista “desprovido de valores”, a “nova direita” ataca também o marxismo cultural que estaria enredado com esse capitalismo financista e globalista. Aqui cabe uma observação: de fato, a esquerda parece ter uma hegemonia cultural nas interpretações acadêmicas e intelectuais do mundo no Ocidente. Mas do ponto de vista prático, principalmente a esquerda que governa ou governou, se tornou subsidiária, uma espécie de cereja no bolo, do capitalismo globalizado que esvaziou de conteúdo a democracia ocidental. Em termos políticos, as esquerdas em geral ficaram sem estratégia e isto explica o crescimento da extrema-direita como movimento crítico do status quo de um capitalismo perverso e predador que aumenta as desigualdades sociais, mesmo que essa crítica seja hipócrita. A estratégia das esquerdas consiste em se apresentar como face humanizada e humanizadora desse capitalismo predador.  

A “nova direita” populista não pretende simplesmente vencer eleições e governar. Ela protende desenvolver um movimento de “revolta global” contra o capitalismo financista globalista e contra o marxismo cultural. Daí a necessidade de promover uma guerra política permanente, fundada também em valores. Muitos dos movimentos do governo informal e do próprio Bolsonaro precisam ser compreendidos nesta chave para melhor combate-los.

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Em que pese toda a confusão e elementos fortes de desgoverno que se apresentaram em poucos meses de governo Bolsonaro, as esquerdas parecem estar tateando no escuro. A reforma da Previdência de Bolsonaro, se aprovada, penalizará gravemente setores pobres da sociedade. Mas não basta combater a reforma de Bolsonaro. As esquerdas precisam responder a seguinte questão: existem ou não existem privilégios ligados à Previdência? Se existem, as esquerdas têm o dever de propor sua remoção. As esquerdas precisam encontrar uma forma de fazer uma oposição consistente e mobilizadora contra o governo. Caso contrário, poderão perder as ruas mais uma vez, agora, para setores mais extremados da direita.

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