A França de Voltaire e Charlie

Pois é, nem todos entendem o Humor francês! Mas é fácil entender a ligação orgânica que os franceses têm com a imprensa escrita e com liberdade de expressão, ou a defesa simplesmente da liberdade

Pois é, nem todos entendem o Humor francês! Mas é fácil entender a ligação orgânica que os franceses têm com a imprensa escrita e com liberdade de expressão, ou a defesa simplesmente da liberdade
Pois é, nem todos entendem o Humor francês! Mas é fácil entender a ligação orgânica que os franceses têm com a imprensa escrita e com liberdade de expressão, ou a defesa simplesmente da liberdade (Foto: Marilza De Melo Foucher)


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Posso dizer que não fui uma leitora assídua de Charlie Hebdo, jornal satírico de tradição libertaria, porém, admirava a irreverência do humor de seus caricaturistas, o lado satírico do politicamente correto. Sempre combatendo o racismo e levando uma guerra implacável contra a extrema direita e todo tipo de fundamentalismo religioso que restringe o livre pensar, a liberdade. 

Lembro de ter encontrado um numero histórico no primeiro apartamento que aluguei em Paris, ele estava debaixo do velho carpete, era justamente o jornal precedente a Charlie na época chamado Hebdo Hari-Kiri (como eles diziam: estúpido e desagradável) que havia sido censurado e proibido sua divulgação devido o titulo de sua manchete no dia da morte do presidente francês Charles de Gaulle «Baile trágico em Colombey: 1 Morto. Para escapar da interdição, eles mudam de nome e passa a se chamar Charlie Hebdo, uma referência ao Charlles de Gaulle, para lembrar a censura infligida depois de sua morte. 

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Se levarmos em conta a historia deste hebdomadário, durante 45 anos ele nasceu e reviveu das cinzas varias vezes. Era um jornal satírico instável, tanto que em 1982, logo depois da chegada da esquerda ao poder, o hebdomadário Hebdo Hara-Kiri encerra sua atividade com o seguinte titulo: 

Tradução: O Hebdo Hara-kiri termina! Sua equipe lhes diz: Vão todos tomar no CU!

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Vale ressaltar, que os franceses têm uma ligação forte com a imprensa escrita e apreciam a sátira, certos sarcasmos embutidos no humor devastador que lhes fazem rir. Mesmo que Charlie não fosse tão apreciado por grande parte dos franceses, cada vez que o hebdomadário se encontrava em dificuldades e era obrigado a encerrar suas portas s venda do ultimo numero explodia. A mesma coisa acontecia quando Charlie voltava. Isto é difícil para o publico estrangeiro entender. Este é o espírito contraditório dos franceses! 

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Eu tentei explicar para uma brasileira que vende jornais em um Bar Tabac, tendo em vista, que ela não entendia o comportamento dos franceses, dizia ela, todas às vezes, que esse jornal fechava, lá vinham eles comprar o ultimo numero. Agora é diferente, devido ao massacre, mas, o comportamento é igual, os franceses acordaram de madrugada e compraram tudo!  

Pois é, nem todos entendem o Humor francês! Mas é fácil entender a ligação orgânica que os franceses têm com a imprensa escrita e com liberdade de expressão, ou a defesa simplesmente da liberdade.

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Desde o século de luzes os franceses guardam a tradição da imprensa planfetária e satírica que denunciaram todos os sistemas políticos. Os grandes filósofos como Diderot, Voltaire, Rousseau foram alvos de proibição no século XVIII.  

Os que foram barbaramente assassinados são herdeiros desta tradição. Não devemos esquecer que a liberdade de expressão não tem limites quando se trata de idéias. Somente os covardes, os fanáticos assassinam de modo ignóbil os seres humanos, pois não tem coragem de enfrentar e debater idéias contra idéias. 

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Repito o que disse recentemente a filósofa Elisabeth Badinter: «Hoje, o credo substituiu o cogito. "Eu penso, logo existo" tornou-se secundário para "Eu creio, logo existo. Estamos deixando que o vasto mundo de crenças se imporem à razão. Hoje vivemos uma fase de regressão, de recuos, mas não podemos permitir que a razão em muitos lugares seja colocada em estado de KO.” E eu acrescento: Vale à pena resistir contra todas as formas de obscurantismo. 

Percebi ao ler as reações de muitos internautas brasileiros, os artigos escritos na semana da tragédia francesa, o quanto era difícil para a maioria dos brasileiros entender o que se passava na França, e porque Maomé era caricaturado. Difícil em um país dominado hoje por evangélicos entender que a blasfêmia aqui não é delito, ela foi abolida com a revolução francesa! Vale ressaltar que aqui a Republica Francesa é LAICA. Fazer humor com as grandes religiões e caricaturá-los faz parte da liberdade de expressão, mas, por exemplo, discriminar seus praticantes é delito, e, se a questão da religião é associada à questão racial é crime! 

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Associar e generalizar os mulçumanos franceses ao islamismo ideológico, fundamentalista nada tem a ver com a religião islâmica francesa praticada pelos muçulmanos franceses. Estes paralelos aqui são feitos nos últimos tempos pela a extrema direita com certa impunidade. Os chefes religiosos do Islame condenaram o terrorismo e defenderam a liberdade de expressão na França, eles estavam presentes no desfile “Somos todos Charlie”. 

Na França todos os praticantes de qualquer religião (judaísmo, islamismo, cristianismo) são livres para praticar sua religião, todavia, a república laica francesa impõe certas regras. Aqui não existem crucifixos ou qualquer outro símbolo religioso expostos nas repartições publica. Um aluno ou aluna não entra na escola com cruz, véu integral, nihab, kippa ou qualquer outro símbolo religioso. Ninguém pode exibir o pertencimento de religião em espaços de serviço publico. As regras republicanas exigem respeito às religiões, mas também neutralidade, nenhum proselitismo é tolerado. Se você é praticante isto é teu problema, a religião é um espaço de intimidade, é teu espaço privado, daí, ela respeita também o outro que não tem religião ou é de religião diferente.

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Nada justifica a barbaridade

O modo bárbaro como foram mortos os jornalistas, desenhistas humorista, os judeus do Supermercado, os policiais chocou todos os franceses, dai a unidade nacional. Dai Somos todos Charlie se transformou em identidade nacional, isto não quer dizer que todos concordavam com a linha de Charlie, muitos não liam Charlie Hebdo, eles estavam em crise financeira por falta de leitores. 

Tomados pela emoção o momento até então não era de polêmica nem de analises. Era de comunhão e fraternidade. A psicologia coletiva estava mais para o lado dos sentimentos do que da razão, todavia, não demorou a emergência do espírito critico. A França é um país adepto de grandes debates políticos e culturais, ai os questionamentos começam. Agora a racionalidade, a objetividade política da analise começa a se manifestar. Isto integra a cultura francesa. Se apropriar do máximo de informações para evitar a deformação da realidade. E será dentro do debate intenso que os franceses enfrentarão os problemas confrontados hoje na sociedade. As medidas que estão sendo discutidas no parlamento francês não serão aprovadas facilmente. Estariam os franceses aptos a ceder sobre o espaço de liberdade? 

A unanimidade da classe política na defesa dos símbolos da republica não invalidou, por exemplo, os questionamentos que alguns franceses hoje fazem. Exemplo: O que têm a haver a presença de todos esses dirigentes europeus, assim como o Egito, Rússia, Turquia, Argélia e Emirados Árabes Unidos, de Israel, a Palestina com o desfile nacional em prol da laicidade, da liberdade, da igualdade e da fraternidade? Logicamente Cubu e seus amigos devem está incrédulos vendo a maioria dos chefes de Estado de braços dados sob a bandeira “Somos todos Charlie”, na certa deram gargalhadas em reunir tantos contrários!  

Enquanto os jornalistas exaltam esta união da classe política, outros analistas independentes fazem questionamentos. Outros demonstram indignação com a presença de países repressivos contra a liberdade de informação, como Egito, Rússia, Turquia, Argélia e Emirados Árabes Unidos. Outros se perguntam até quando os europeus, os Estados Unidos que se dizem lutar contra o terrorismo recusarão o dinheiro sujo de paraísos fiscais, dos petrodólares da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, do Qatar, cujos países já foram denunciados por financiar treinamento das milícias extremistas, obscurantistas. 

Como imaginar que estes que pisam sobre os direitos humanos, que oprimem as mulheres e todos que lutam pela laicidade e pela garantia de liberdade possam reivindicar do espírito anarco-libertário de Charlie Hebdo? 

Uma coisa parece clara para a maioria dos franceses que desfilaram: O espírito de Voltaire ainda está bem vivo e obscurantismo na França será sempre combatido. A França despertou do horror e ela se agarrou nos seus símbolos! 

Resta agora saber qual o novo olhar que os franceses terão sobre a população migrante. Sobre a integração real dos jovens franco-arabes que sempre foram estigmatizados pela direita conservadora e pela extrema direita. Eles são os excluídos da divisa republicana e se sentem abandonados pela Mariana que encarna esta república.  

Como lutar contra as desigualdades que nos últimos anos não cessa de aumentar na França? Essas desigualdades estão presentes principalmente nos bairros pobres em que vivem os jovens de origem migrantes das ex.colonias francesas e são fermentos propícios para germinar a violência  O economista Michel Husson, em um artigo saído nesta semana no jornal Humanité declara: "Eu acho que a raiz da FN- Frente Nacional e violência é o mesmo. Ambos os fenômenos resultam de um sentimento de exclusão e rejeição. A política do governo atual aborda os sintomas, mas não as causas. O governo se recusa a fornecer os meios de uma política econômica que criaria empregos. À medida que avançamos, teremos 10% de desemprego durante anos. E acrescenta :

O neoliberalismo cria a precariedade e as discriminações. As políticas neoliberais se acomodam ao desemprego de massa, tendo em vista que eles não consideram o trabalho que sob o ângulo da rentabilidade. 

Outros começam a debater sobre as mudanças na cooperação internacional, sobre os desafios da geopolítica, sobre a venda de armas, a relação ambígua com Arábia saudita, Qatar, Israel.

Entra-se agora na fase do “Après Charlie”.

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