A força contra a razão

"Ninguém lutou mais pela democracia no Brasil do que a esquerda", escreve o professor aposentado do IFSP Valério Arcary

(Foto: ABr | Stuckert)


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Por Valério Arcary 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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“Coube sempre o melhor quinhão, a quem mais força teve, e não razão” (Sabedoria popular portuguesa).

A disputa eleitoral de 2022 já começou na mídia comercial expressando uma fração da classe dominante que se posiciona pela defesa de uma terceira via, anti-Lula e anti-Bolsonaro, seja lá quem for. Os principais meios de comunicação atuam, escandalosamente, como um “partido acima dos partidos”. O pretexto, desta vez, para a manipulação dos incautos, foram as recentes eleições na Nicarágua, em que Daniel Ortega foi reeleito para um quarto mandato. Outras incontáveis vezes, nos últimos anos, estes liberais de araque se calaram, em indisfarçável conivência, quando as hordas exasperadas da extrema-direita se lançaram às ruas gritando: “O Brasil não será uma Venezuela” e “Vai para Cuba”.

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Já tiveram mais força, mas nunca tiveram razão. Está em curso uma campanha para denunciar que Lula e toda a esquerda não têm compromisso com a democracia. Esta acusação é uma calúnia, embuste, e mentira. Esta operação política é, intelectual e historicamente, falsa, injusta e desonesta.

Ninguém no Brasil, em toda a história trágica da nação, lutou de forma mais corajosa, abnegada, e despojada pela liberdade do que a esquerda. Foi assim contra o Estado Novo nos anos trinta, durante os vinte anos da ditadura militar, e nos últimos anos contra o neofascista na presidência. A esquerda, em todas suas nuances e matizes, das mais moderadas às mais radicais, sempre alertou que liberdade e igualdade não são irreconciliáveis, são indivisíveis. Não há liberdade entre desiguais.

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Antes de 1991, o argumento era a denúncia da União Soviética. O mantra dos liberais é recorrente: a teoria de conspiração dos “dois demônios”, ou seja, a denúncia do perigo simétrico do autoritarismo de esquerda e de direita. Hoje esse discurso abraça a defesa da responsabilidade “fiscal” aliada á “sensibilidade social”, mas procura esconder, encobrir e apagar que os seus candidatos “terceira via”, em 2018, se associaram a Bolsonaro, como Dória e Sergio Moro.

O compromisso anti-imperialista deve nos engajar na defesa da independência nacional de regimes que são ameaçados pela Tríade, liderada pelos Estados Unidos, que governa o mundo: até mesmo do Irã ou Coreia do Norte, por exemplo. Mas, isso não significa ter qualquer ilusão sobre os seus destinos. Não são pontos de apoio para a transição ao socialismo, e não devemos defendê-los diante da mobilização de seu próprio povo. Internacionalismo não pode ser cumplicidade. Nessa mesma chave, o governo do casal Ortega não merece apoio da esquerda mundial. Manifestações populares legítimas, nos últimos anos, foram reprimidas, brutalmente, e lideranças populares presas. As esperanças despertadas pela revolução sandinista em 1979 foram, totalmente, defraudadas. Mas esta lamentável degeneração política e social dos Ortega não autoriza uma campanha que faz um amálgama denunciando toda a esquerda como autoritária.

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O desenlace trágico da luta socialista no século XX, com a restauração capitalista sendo liderada por frações dirigentes dos partidos estalinistas no poder, está alimentando, ainda hoje, um certo pudor, até com palavras que, por terem sido usadas e abusadas, caíram em desgraça. Socialismo e comunismo são alguns desses conceitos, nem citar ditadura do proletariado. Quando Marx a utilizava, em meados dos anos quarenta do século XIX era “feijão com arroz” na esquerda francesa e, plenamente, compartilhada nos meios socialistas europeus. Depois da revolução francesa de 1789/91, ninguém duvidava que, quando um governo dos trabalhadores viesse a conquistar o poder não duraria dois meses, se não se protegesse com uma ditadura revolucionária. A experiência da Comuna de Paris não fez senão reforçar a expectativa de que a revolução social despertaria a mais implacável e furiosa contrarrevolução. O “laboratório da história” confirmou esse prognóstico.

A elaboração de Marx e Engels teve, desde o início, como objetivo central retirar o socialismo das nuvens dos desejos e enraizá-lo nas lições da história. Com o marxismo, o socialismo fez um encontro com a ciência e, portanto, uma ruptura com a utopia. Não se tratava mais de idealizar uma sociedade perfeita futura. Mas buscar na história os fundamentos de um projeto anticapitalista.

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Não obstante é verdade que a dimensão utópica de um projeto igualitarista nunca deveria ser minimizada, já que a aposta política sempre dependerá de um engajamento que exige o enfrentamento de dúvidas e riscos, sem esquecer os perigos e as derrotas. Todas as fórmulas que depositam “na história” a esperança de definição de uma luta que exige empenho e vontade só podem ajudar a semear ilusões fatalistas ou pessimismos deterministas. A “história” não pode decidir nada porque não é sujeito, mas processo. Tudo é luta.

O socialismo sempre foi entendido pelo marxismo como um projeto que depende da capacidade de mobilização e organização de forças sociais com interesses anticapitalistas, ou seja, em primeiro lugar a confiança na classe trabalhadora e nos oprimidos, e na presença de sujeitos políticos, ou seja, organizações revolucionárias capazes de traduzir esses interesses numa perspectiva de poder.

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Mas sem a esperança ou “fé” na possibilidade desses sujeitos sociais serem vitoriosos, o que poderíamos chamar uma consciência de classe, seria muito difícil sustentar de forma continuada uma militância que exige sacrifícios e abnegação. Esse sentimento que já foi denominado, no passado, de “robusto otimismo” na disposição revolucionária do proletariado é indispensável para alimentar um projeto político, e tem uma evidente dimensão utópica.

O problema, todavia, é que a fórmula “paradigma utópico” tem sido utilizada como uma alternativa a socialismo, ou até mesmo de uma perspectiva estratégica anticapitalista. Em uma situação como a que vivemos, de crise do capitalismo, mas, também, de crise e reorganização da esquerda e, portanto, de grandes incertezas, não é estranho que as inseguranças ideológicas ganhem terreno.

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A nova respeitabilidade do conceito de “paradigma utópico” se explica, portanto, porque, confortavelmente, promete dizer muito sem se comprometer com nada. E, também, porque permite inúmeras leituras, o que já por si, revela as ambiguidades da sua utilização. Por um lado, ele remete a um esforço meio constrangido de superação do “esquematismo” das correntes campistas que se dedicaram incansavelmente, durante décadas, à defesa incondicional das “realizações” da construção do socialismo na URSS e na China (ou mesmo na Albânia), ainda que as evidências socioeconômicas, entre outras, contrariassem de forma cada vez mais indisfarçável que os regimes burocráticos podiam ser qualquer coisa, menos um regime em transição ao socialismo.

Por outro lado, ele expressa as tremendas pressões que se abateram nas últimas três décadas sobre as organizações de massas do movimento operário, com o colapso da ex-URSS, e a ofensiva do neoliberalismo: traduz, nesse sentido, um movimento teórico confuso de adaptação ao discurso antissocialista predominante, uma reciclagem da socialdemocracia europeia. Mas é também usado por socialistas sinceros como uma fórmula que busca ir além das certezas deterministas do que foi por muito tempo identificado, pelos ex-partidos comunistas, como os dogmas do “socialismo científico”.

Existem margens de incerteza no combate pelo socialismo? Sim. Os elementos de barbárie se avolumam, dia a dia, diante da crise do capitalismo? Sim. A revolução mundial pelo socialismo parece hoje um projeto histórico dificílimo? Sim. Não importa. A luta pelo socialismo é indivisível da luta pelas liberdades. Temos esperança. Sabemos que é possível. Outubro provou que era possível.

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