A fantasia se faz realidade

Vamos celebrar, neste Carnaval, a união de espíritos, a tolerância de convicções, o diálogo das religiões, e exaltar o direito à diferença, execrando os que insistem em desenterrar torturadores e nazistas para convidá-los à dança macabra da necrofilia ao som de tiros

Blocos participam do carnaval do Rio de Janeiro, no centro da cidade
Blocos participam do carnaval do Rio de Janeiro, no centro da cidade (Foto: © Fernando Frazão/Agência Brasil)


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O Carnaval é uma festa litúrgica, momento de transgressão da racionalidade e de efusão do espírito. Sua essência é imprimir
realidade à fantasia, por mais paradoxal que pareça. No Carnaval o
folião se desafoga, livra-se dos anjos e demônios que o habitam, migra
para as múltiplas representações de sua personalidade condicionada, no
resto do ano, pelos padrões culturais hegemônicos.

Nessa festa o folião exibe o seu avesso e desmascara convenções sociais, quebra preconceitos e ridiculariza a empáfia dos que detêm o poder. É a ocasião de extravasar sentimentos e emoções reprimidos, trazer à tona a intimidade contida, inclusive se entrelaçar com estranhos que se tornam próximos pelo simples fato de endossarem o cordão, o bloco, a escola de samba.

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O ser humano não suporta ficar confinado na esfera da necessidade e cuidar apenas da administração da vida como fenômeno biológico: o trabalho em busca de salário; o aluguel; a mensalidade da escola dos filhos; as contas de luz e gás... É preciso emergir eventualmente para a esfera da gratuidade, na qual predominam o lúdico, o festivo, o litúrgico, território no qual a imaginação ou a fantasia assume supremacia sobre a razão e a moral se impõe sobre o moralismo.

O que se busca no Carnaval? O espelho invertido, trafegar na contramão e deixar Momo se refestelar na alegria. Fazer com que os monstros que protagonizam dias e meses do ano permaneçam calados, recolhidos à sua insana tristeza. Aflorar o júbilo dessa gente sofrida e devolver-lhe a autoestima. Ainda que dure apenas três ou quatro dias, sejam dados vivas e aplausos à faxineira travestida de rainha; ao encanador, de sultão; ao gari, de oráculo divino.

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Festa com gosto de infinitude, tenha o Carnaval um ritmo tão alucinado que faça todos rodopiarem no carrossel da alegria embriagadora. Soem cuícas, tamborins e pandeiros, e exorcizem, de todos os foliões, essa letargia que o medo infunde naqueles que não acreditam que o presente se fará ausência no futuro promissor. Abram alas às alvíssaras!

Vamos, neste Carnaval, arrancar as roupagens convencionais que nos impelem a ser o que não somos. Desfilar despidos de qualquer sinecura, sem os adornos que, ao longo do ano, nos inserem no bloco dos cínicos. Animados pelo samba-enredo, avancemos rumo à alucinação dos loucos repletos de razão, à subversão poética da palavra desassossegada, à lógica que supera os efeitos e ousa encarar as causas até elevá-las ao cume dos carros alegóricos.

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Não tergiversar nem fazer coro com os que insistem em acobertar o passado. No sambódromo, o ritmo da bateria haverá de ressuscitar todas as crianças assassinadas pelos monoglotas do discurso bélico: Ketellen, Ágatha, Kauê, Kauã, Kauan e Jenifer.

A comissão de frente ostentará imensa faixa com o verbo AMAR, para que todos os foliões desaprendam a conjugar o verbo armar, pois um simples erre é capaz de desencadear, como pandemia, sementes amargas de rancor, raiva e ruindade.

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Vamos celebrar, neste Carnaval, a união de espíritos, a tolerância de convicções, o diálogo das religiões, e exaltar o direito à diferença, execrando os que insistem em desenterrar torturadores e nazistas para convidá-los à dança macabra da necrofilia ao som de tiros.

Venha um Carnaval que celebre o Brasil e os brasileiros, essa gente sofrida que, o ano todo, percorre a espinhosa passarela da vida sonegada de direitos, condenada à pobretarização, à educação sucateada, à saúde enferma, ao saneamento restrito e ao emprego loteria.

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Desfilem todos ébrios de utopia e entranhados da convicção de que fantasias podem se fazer realidade, e a imaginação, poder. E ousem romper o cordão que teima em contê-los imolados na sacrílega noção de
que o sofrimento merece ser naturalizado.

A vida nos foi dada para desfilar soberba na cadência da letra efe – bastam-nos, como brasileiros, fé, futebol, feijão, farinha e o fogo inapagável dos direitos de cidadania. O suficiente para nos assegurar festa e fartura.

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