A falsidade do discurso fiscalista

Apesar do discurso falacioso de Guedes a favor de cortes e mais cortes nos orçamentos das áreas sociais, o fato é que as despesas com juros da dívida cresceram

Ministro da Economia, Paulo Guedes. 25/10/2021
Ministro da Economia, Paulo Guedes. 25/10/2021 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)


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O início do ano já nos oferece um pouco das orientações de como deverá ser levada a agenda política até as eleições marcadas para o mês de outubro. Bolsonaro reafirma, pela enésima vez, sua mais absoluta falta de empatia com a dor e o sofrimento do outro. Ao privilegiar a postagem de imagens de suas férias no litoral de Santa Catarina, o Presidente da República passou o recado mais autêntico de seu estado de espírito: está pouco se lixando para a desgraça alheia, desde que ele e seu entorno familiar estejam desfrutando da tranquilidade e do conforto viabilizados com recursos públicos. Afinal, sempre tem sido assim, desde que se elegeu deputado federal pela primeira vez, em 1990.  A tragédia que se abateu sobre o território e a população da Bahia não mereceu sequer uma palavra de conforto ou um gesto de solidariedade por parte do chefe de Estado.

Ora, em ano eleitoral, tal postura poderia ser considerada como um grave equívoco, mesmo que se leve em consideração apenas a perversidade dos cálculos de perda de apoio ou de recuperação da popularidade. Mas vindo de um defensor confesso da pena de morte e da tortura, não deveria ser nenhuma surpresa a maneira como ele lidou com o evento. Ignorou solenemente a crise e apenas buscou terceirizar a responsabilização para o governador da Bahia, Rui Costa, seu adversário político. Enviou um par de ministros sobrevoarem a região de forma burocrática e, para não perder a mania, mentiu mais uma vez a respeito de verbas emergenciais que não foram enviadas no volume necessário. E, para terminar, ele ainda esnobou de forma criminosa e irresponsável a oferta de ajuda humanitária que havia sido anunciada pelo Presidente da Argentina. Afinal, em sua lógica mesquinha de avaliação, Fernandez seria apenas mais um lulista inveterado.

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Mas logo na primeira segunda-feira do novo ano, rapidamente Bolsonaro muda de cenário e de personagem. Sai da soberba e da arrogância para a condição de vítima e sofredor. Abandona o jet ski e a praia para desembarcar no leito do hospital. Traz para o foco das imagens a lembrança da facada de 2018, durante a campanha que o elegeu. É o momento de assumir algum grau de fraqueza, com o intuito de recuperar aquele clima da disputa com Haddad, quando Sérgio Moro já havia realizado o serviço sujo de condenar Lula e impedir o então preferido nas pesquisas de concorrer ao cargo novamente. A toada agora vai na linha do “coitadinho do Bolsonaro: está sofrendo e precisa de nossas orações para se recuperar mais uma vez”. Se é bem verdade que um pouco menos de quatro anos nos separam daquele momento, o fato é que não se deve menosprezar a sua capacidade de superar obstáculos e afirmar sua narrativa mentirosa na disputa da opinião pública.

 

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Bolsonaro ignora o Brasil.

É preciso aguardar um pouco para avaliarmos o balanço de tal estratégia, uma vez que a ele não pode mais ser dado o benefício da falta de experiência. As pesquisas de popularidade parecem confirmar que não há mais tanto espaço para complacência por parte de nossa população para com um governo que praticou genocídio nos momentos mais agudos da pandemia, que permitiu o retorno da inflação, que não melhorou em nada a situação do desemprego e que, além do mais, está comprovadamente envolvido em atos de corrupção.

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A falsidade no discurso é uma constante em seu governo. Algo semelhante tem ocorrido no âmbito da política econômica. Apesar de Paulo Guedes ter contado, desde antes ainda do início do governo, com um amplo beneplácito da maior parte de nossas elites, o fato é que seu desempenho à frente do superministério da economia não conseguiu convencer o país de suas supostas competências. Aliás, muito pelo contrário. A frustração e a decepção parecem ser a regra agora. Afinal, sua gestão tem sido marcada por um misto de promessas não cumpridas e resultados desastrosos nos quesitos que mais importam para o Brasil conseguir superar a crise em que está afundado desde 2016.

O banqueiro no comando da economia não cessa de repetir ad nauseam que o importante é privatizar e liberalizar, além de levar à frente o maior programa de destruição do Estado e de desmonte de suas políticas públicas. E nesse quesito é forçoso reconhecer que Bolsonaro nada mais faz do que praticar, como chefe de governo, aquilo que as classes dominantes sempre fizeram com o povo deste país: desdém, exploração e opressão. Não por acaso voltamos a ocupar os postos de maior concentração de renda e desigualdade no mundo, com o retorno do Brasil ao mapa da fome da ONU e a generalização da condição de miséria em nossa sociedade. Quando Guedes assume o sincericídio de sua indignação com a possibilidade de as empregadas domésticas viajarem para Miami, por exemplo, ele também verbaliza a postura e o pensamento das elites ainda agarradas à triste e vergonhosa herança escravocrata.

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Despesas financeiras explodem sem limite.

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Mas o detalhe é que as próprias estatísticas oficiais do governo escancaram a hipocrisia e a mentira a respeito do suposto compromisso férreo do Ministério da Economia com a tal da austeridade fiscal. O arrocho nas contas públicas existe, é claro! Assim tem sido desde a Emenda Constitucional n º 95, promulgada em dezembro de 2016. Aquele presente de grego oferecido pela dupla Temer & Meirelles determinou o congelamento das despesas orçamentárias por longos 20 anos, ao criar o chamado Novo Regime Fiscal. Assim, o teto de gastos tem sido comprimido a cada novo exercício, em especial com as rubricas de saúde, previdência social, educação, assistência social e outras não-financeiras.

Um aspecto quase nunca mencionado nos veículos da grande imprensa refere-se ao uso do conceito de superávit primário para implementar a estratégia de austeridade. Isso significa que todo o esforço de arrocho fiscal passa a ser realizado apenas sobre as contas ditas “primárias”, ou seja, liberando as despesas financeiras de serem submetidas ao mesmo controle e redução. Com isso, os gastos do governo federal com o pagamento de juros da dívida pública, por exemplo, estão liberados e não passam pelo crivo do teto introduzido na Constituição.

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O mais recente Relatório sobre Estatísticas Fiscais do Banco Central traz essas informações de forma clara e transparente. Apesar do discurso falacioso de Guedes a favor de cortes e mais cortes nos orçamentos das áreas sociais do governo, o fato é que as despesas com juros da dívida cresceram bastante na comparação entre 2021 e 2020. Uma loucura! Ainda não estão disponíveis as tabelas incluindo os dados relativos ao mês de dezembro. No entanto, o volume total gasto apenas entre janeiro e novembro de 2021 superou a marca de R$ 394 bilhões com esse quesito. Ou seja, um número maior do que o realizado durante todo o exercício de 2020, que havia alcançado R$ 312 bi. Na comparação dos primeiros onze meses entre os dois exercícios, percebe-se uma elevação de quase 37%. A tabela abaixo ilustra bem essa evolução:

grafico

 O principal fator a pesar sobre esse aumento pode ser explicado pelas sucessivas decisões da equipe econômica de promover a subida exponencial da taxa oficial de juros. Lembremos que o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu em sete reuniões consecutivas elevar a Selic de forma irresponsável, que saiu de 2% em março de 2021 para os atuais 9,25% decididos no encontro mais recente realizado em dezembro passado. Ora, considerando o estoque atual de R$ 5,5 trilhões relativos ao total do endividamento do governo federal, tal escalada para o alto da taxa pelo Copom provoca impacto imediato sobre as despesas financeiras.

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Jet ski e juros: a cara da desigualdade. 

A falsidade no discurso fiscalista reproduz a maneira patrimonialista e privatista com que as elites tratam a administração pública brasileira. Quando se trata de oferecer serviços públicos e outros mecanismos de transferência de recursos dirigidos à maioria da população, a primeira reação é de negação. Afinal, a crise seria profunda e não haveria dinheiro para tanto. O blabláblá da responsabilidade fiscalista segue ameaçando com a catástrofe caso as despesas não sejam reduzidas. No entanto, sempre e quando se trata de beneficiar o 0,1% do topo de nossa pirâmide da desigualdade, aí a coisa é diferente. Os recursos aparecem magicamente para cumprir de forma religiosa o “contrato” dos gastos financeiros e ninguém fica corado de vergonha ao assumir as centenas de bilhões de recursos que saem pelo ralo do Tesouro Nacional por meio da conhecida e costumeira prática da sonegação e da existência de isenções tributárias injustificáveis.

 

Mais de trinta anos depois da inovação promovida por Fernando Collor, Bolsonaro recupera a imagem simbólica do jet ski como um objeto de desejo do Presidente da República. Mas pouca gente se deu conta de que, para além de sua imperdoável utilização em meio à tragédia dos alagamentos e inundações na Bahia, ele estava fazendo propaganda de uma norma que ele próprio havia encomendado à sua equipe dias antes. O governo publicou a Portaria Secex nº 160 assegurando isenção tributária para esse e outros produtos – nada essenciais, diga-se de passagem –  de navegação náutica, como veleiros e embarcações de turismo. Ou seja, desde 03 de janeiro já está em vigor a possibilidade de importação, sem nenhuma incidência de impostos, até mesmo de jet skis usados e outros trambolhos que foram produzidos com geração de emprego no exterior e apenas se transformarão em ferro velho em nosso território.

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