A falsa dor do pai diante do corpo da esposa morta
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O menino se perguntava diante da cena que o pai representava no enterro da mãe: aquele pranto aos berros era verdadeiro ou de mentira? E mesmo aí, nas duas hipóteses, ainda assim o pai estava condenado. Na imitação da dor, porque óbvio era o seu crime duplo: matou e fingia chorar, o cínico. Mas se fosse verdade o sentimento, o menino órfão de mãe se levantava: eu não quero a tua verdade. Porque o corpo, o corpo, ele se dizia, porque jamais usava para a mãe a palavra “cadáver”, eu não quero a tua verdade, ele falava, porque o corpo da minha mãe já me deu a luz. E no entanto, nós que o narramos, se para ele temos entendimento, devemos ir além da sua indignação.
A fala alta do pai no enterro evitava a palavra amor. Nem tanto por vergonha, acanhamento, pois no enterro o pai era, estava para o escândalo, mais escandaloso ou avesso a conveniências, ali, naquela hora que em outras. Ainda que amor fosse palavra fêmea, pelo que lhe parecia, e por ser fêmea, como o pai acreditava, fosse afetada de afeminação, porque homens não amavam, porque homens eram feitos para a brutalização, ele, como pessoa inteligente que era, teria achado semelhanças para nomear o sentimento, assim como bem sabia derivar para ponto diverso a sua dor. Poderia então chamar a esposa morta de “minha querida”, tão próximo para a cena falada no caixão; poderia trazer essa gradação para um reino mais baixo de amada, dizer “eu gosto, gostava muito de você”, ou dignificá-la para o tratamento católico de “minha santa esposa”, ou o modo mais próprio, à sua maneira de possuidor, “minha Maria”. Tantas fórmulas e formas de expressão de sentimento, que o seu gênio teria descoberto ali mesmo, no calor do improviso, que ele tão bem realizava. Mas não, em nenhum momento o pai usou a palavra amor nem algo que se lhe assemelhasse para a pessoa de Maria. Se ele fosse apenas ator, como o filho o acreditava, seria fácil empregar imposturas de frases para o corpo da mulher debaixo de flores. Mas nada houve que o ligasse à mulher por amor. Evitou a palavra de modo sistemático, até inconsciente, posta que estava em repelente natural. Ele parecia ver uma última vitória da bravura da mulher, onde se esboçava um sorriso incriminador:
- Tudo, menos essa falsidade. Respeita-me! – o filho a viu responder ao pai viúvo.
Pois o corpo de Maria com vida da alma lhe falava, estabelecia com ele um diálogo que não era mudo, apesar de inaudível ao público do espetáculo. Nesse diálogo vinham os dias em que o pai não estava em casa porque estaria trabalhando. E o pai bem sabia ser mentira, pois a morta insinuava o que ele não queria lembrar. No breve e torturante discurso da mãe ao remorso do pai, aquele rosto suave para o filho se contraía duro:
- O teu choro engana os bestas. As tuas lágrimas, por mais que chores, não lavam o teu sujo.
- Eu não tive culpa, Maria. Eu não sou culpado, você não quis ir para a maternidade - o pai gritava para todos ouvirem no enterro.
- Por que mentes? Eu já estava sacrificada. O que eu fizesse era inútil. Morria na maternidade ou morria em casa.
- Maria, eu sempre quis o seu bem.
- Mentira! Tu querias o teu bem. Por que me arrancaste de casa? Eu queria ter a minha última hora com o meu filho. Por quê? Porque a tua vontade era a única e exclusiva. Eu não tive direito nem à minha última hora.
- Tanto que eu lhe disse, cuide-se, Maria, cuide-se...
- Não, a tua fala era de que gostavas de mulher carnuda. Depois viravas a cara para o outro lado na cama.
- ... Deus é testemunha.
E ao ouvir esse “Deus é testemunha”, no rosto de Maria se desenhava o sinal de um sorriso. Vendo esse traço nos lábios, o pai espalmava as mãos em vertical sobre os olhos, apertando as pálpebras. Bom seria que a sua consciência não pensasse. Havia, claro, dois gêneros de Deus. Um para o pai, outro para a mãe. Para ele, Deus era másculo, viril absoluto e compreensivo para os homens machos, pois sabia que para eles o sexo era uma ordem, uma razão para encarnar o pênis em todo o ser. Para ele, o que não fosse do sexo, ou não fosse o próprio, ao sexo estaria relacionado. E sexo era a satisfação do macho. Daí que o Deus do pai compreendia, quando não, quem sabe, até estimulasse os crimes contra a pessoa em razão do sexo, e nessa última razão o crime não existia. Nesse caso, o crime tinha outro nome, circunstâncias, acasos, resistências burras da mulher, pois a honra existia para os honrados. Na consciência do pai, no entanto, a brutalidade do falecimento da sua mulher era inscrita em diferente versão. E era a essa que os dedos curtos, calosos, queriam perfurar, talvez como um Édipo tardio: “eu não queria que você morresse assim, Maria. Nós bem podíamos viver juntos, você com o seu feminino, eu com a minha liberdade”. Doía-lhe, porque algo sempre restava resistente a suas justificações. Era o Deus de Maria. Esse Deus homem ideal para ela, másculo pelo que Nele era abrigo e completude, fêmea pelo que Nele era companheirismo de entendimento da sua dor, esse Deus camarada melhor que o irmão gêmeo, homossexual, porque Ele era valente para fazer a Sua justiça, esse Deus de Maria harmonizava raiva e compreensão. Pois Ele bem notava que os homens minúsculos, os homens parciais, os homens pelo meio, amputados, tinham a miséria de possuir pouco amor para as mulheres gordas como ela.
E por isso o rosto da mãe parecia sorrir diante do espetáculo teatral da dor do marido.
**Do romance “O filho renegado de Deus”
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