A face confusa da política latino-americana

"Caracteriza a política na América Latina uma crise dos tradicionais, abrindo espaço para o crescimento de grupos que não integravam o poder", diz Fornazieri

(Foto: Reuters)


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As vitórias de Gabriel Boric no Chile e de Gustavo Petro na Colômbia suscitaram a tese de que há uma nova onda de esquerda na América Latina, à semelhança do que ocorreu no início dos anos 2000. Aquela onda havia iniciado em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela, acrescida com o PT e Lula no Brasil, os governos da Frente Ampla no Uruguai, Michelle Bachelet no Chile, os Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia, Lugo no Paraguai, Rafael Correa no Equador. 

Essa onda do início do século XXI sucedeu governos da matriz neoliberal da decada de 1990, que implementaram agendas econômicas que geraram arrocho salarial e pobreza. A evolução daquela onda progressista teve desfechos diferentes por alguns motivos comuns e outros diversos. Alguns governos foram sucedidos democraticamente por presidentes de centro e centro-direita, como no Uruguai e Argentina e no Chile. No Brasil e no Paraguai tivemos golpes jurídico-parlamentares e na Bolítiva ocorreu  uma tentativa de golpe que foi revertida.

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A nova onda progressista se configura com a vitória de Lopez Obrador no México, Alberto Fernandez na Argentina, Pedro Castillo no Peru, Boric no Chile, Petro na Colômbia e, provavelmente, Lula no Brasil. Mas essa onda progressista vem acompanhada também por uma onda de extrema-direita. Começou com Bolsonaro em 2018. Ele poderá disputar o segundo turno neste ano. Continuou com Guillermo Lasso no Equador, com a passagem para o segundo turno de José Antonio Kast no Chile e Roldofo Hernández na Colômbia. No Peru tem-se Keiko Fujimori e a direita governa El Salvador e a Guatemala. 

O que se pode notar é que há algumas zonas de intersecção comuns entre líderes de esquerda e de extrema-direita. Por exemplo, em termos de valores machistas, homofóbicos, anti-direito ao aborto, meio ambiente, entre outros, não há diferenças substanciais entre Bolsonaro, Pedro Castillo, Daniel Ortega, Nícolás Maduro, López Obrador, Donald Trump, Vladimir Putin, entre outros. De modo geral, esses líderes todos apoiam Putin na guerra na Ucrânia. Não se pode dizer também que Alberto Fernandez e López Obrador sejam propriamente de esquerda. 

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Muitos analistas sugerem que Boric e Petro representam uma nova esquerda. Esta indicação, a rigor, só o tempo poderá resolvê-la. Mas, de fato, eles acentuam pontos de suas agendas que expressam mais a ideia de uma esquerda renovada: o compromisso com meio ambiente, a incorporação das mulheres, dos indígenas, negros e de outras minorias de forma efetiva nas suas composições governamentais e nos seus programas de governo. Note-se também que eles foram eleitos por frentes de esquerda e que Boric e a vice-presidente eleita da Colômbia, Francia Márquez, só se tornaram candidatos graças a processos democráticos de escolhas por prévias. Esses líderes são críticos do regime de Maduro e condenam a guerra na Ucrânia. 

Para muitos analistas, o PT fica numa espécie de meio de caminho entre uma esquerda mais antiga e essa nova esquerda representada por Boric e Petro. A incorporação dos pontos de agenda ambiental, negros, mulheres, jovens, entre outros grupos específicos, se situaria entre o meramente formal e o efetivo. O tom da fisionomia do PT seria ainda fundamentalmente branco e masculino. Isto teria ocorrido, paradoxalmente, mesmo no governo Dilma. Existiram avanços, todo reconhecem, mas menos significativos do que poderia ter sido. 

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Excetuando os governos autoritários de esquerda na América Latina, o que há de comum nas experiências democráticas da esquerda são os avanços sociais através de políticas distributivas. Mas, na sua maior parte, essas políticas têm um caráter compensatório. Os governos de esquerda fizeram poucas reformas estruturais profundas, que marcassem uma mudança substantiva nas chaves da desigualdade, da violência, da pobreza e da garantia perdurável de direitos dos grupos de maiores carecimentos. Quer dizer: as esquerdas melhoraram a situação social de seus países, mas não mudaram efetivamente a realidade.

Outro aspecto comum dos governos de esquerda consiste no déficit de força parlamentar. Este fator limita a agenda de reformas e de mudanças, quando não arrasta os governos para crises e golpes, como foi o caso do governo Dilma. Mas há um problema mais grave: as organizações, partidos e frentes de esquerda que sustentam esses governos têm baixa organização popular e social. Nos momentos críticos, a tendência é a derrota, pois não são capazes de mobilizar o povo organizado para deter a ofensiva das elites e das forças conservadoras. Um dos raros exemplos de êxito nesse quesito é a Bolívia. A mobilização popular que partiu das organizações sociais e políticas impôs uma derrota aos golpistas. Já os regimes autoritários de esquerda se sustentam muito mais nas forças armadas do que no povo organizado. 

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O que caracteriza a política na América Latina é uma crise dos sistemas políticos e partidários tradicionais, abrindo o espaço para o crescimento de grupos e líderes políticos que não integravam o poder. Esses espaços se abrem tanto a grupos novos de esquerda, quanto à extrema-direita. Não há hegemonias consolidadas nem à esquerda, nem ao centro e nem à direita. E é improvável que se constituam hegemonias estáveis. Os governos de qualquer orientação são incapazes de atender satisfatoriamente, em prazos mais longos, as imensas demandas represadas das sociedades latino-americanas. Desta forma, a motivação maior dos eleitores da região é votar contra o governo de plantão, seja ele de que ideologia for. 

As democracias latino-americanas são instáveis, inacabadas e de baixa qualidade. Assim, as tarefas dos governantes democráticos são múltiplas: estabilizar as democracias, aperfeiçoá-las e qualifica-las em termos de conteúdos sociais, econômicos, de garantia de direitos, de justiça e de liberdade. A multiplicidade das tarefas democráticas constitui uma agenda comum de todos os países da região. Esta agenda, junto com a agenda ambiental, deveria ser o ponto de partida para uma nova investida na integração regional.

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Maiores êxitos e avanços desses novos governos progressistas que estão se constituindo na América Latina depende da capacidade que os mesmos terão que apresentar na coordenação das múltiplas demandas represadas dos diversos grupos sociais. Demandas que se traduzem em necessidades urgentes (pobreza, emprego, moradia, alimentação) e de garantias de direitos (mulheres, negros, indígenas, minorias). Os governos precisam imprimir um sentido universalizante, nacional, a essas necessidades e demandas por direitos. 

Esses governos precisam desenvolver capacidades de saldar as enormes dívidas sociais do passado combinando-as com a criatividade de desenvolver a economia orientada para o futuro, incorporando com força a busca de uma civilização ecológica conectada com a revolução tecnologia e digital, com a sustentabilidade e com a energia de baixo carbono. Esses governos precisam ser capazes de formular programas que confiram um sentido comum aos amplos setores sociais deserdados e pobres, aos trabalhadores e às amplas classes médias, que também vivem em condições de carecimentos. 

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