A esquerda Peter Pan e o discurso dionisíaco do fascismo bolsonarista
"Ou a esquerda redescobre a dialética, ou vai no máximo ficar lacrando na internet presa ad eternum na Terra do Nunca da crítica que o capitalismo tolera, como crítica bem-comportada e politicamente correta à “má-educação da direita”, como produto vendável de rebeldia permitida pró Capital. A esquerda Peter Pan namastê é a esquerda que a direita ama"
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Efetivamente a internet é terra de ninguém. Concordo com Umberto Eco quando ele diz que a “internet promoveu o idiota da aldeia” a portador da verdade, citando ainda outra frase muito conhecida, o gênio reacionário Nelson Rodrigues previa que os idiotas ainda iriam dominar o mundo, não porque não fossem idiotas, mas porque são muitos. Este prolegômeno, meio desabafo, meio nariz de cera, é para ilustrar minha revolta quando vejo coisas na internet como grupos feministas de esquerda discutindo “sororidade” com Sara Winter. Tem uma parte da esquerda Peter Pan que simplesmente não quer crescer e tem uma projeção narcisista sobre o mundo, como se fossem eternos professores do maternal, que com palavras doces e carinho vão “converter” todo mundo, numa epifania, ao “caminho da razão”.
Só lembrar às companheiras que o nome da figura não é Sara Winter, o nome da nazifascista é Sara Fernanda Giromini, o apelido que ela mesmo se deu é homenagem a uma ativista e espiã nazifascista inglesa. Sim, uma esquerda Peter Pan, que recusa-se a crescer, quer oferecer flores e sororidade a uma militante assumida do nazifascismo. Isto é um ultraje a mulheres que lutaram arriscando sua vida contra o nazifascismo, como Vera Zasulich, Clara Zetkin, Simone de Beauvoir, Pagu, Olga Benário, Krupskaya, e tantas outras, que em lugar de sororidade diriam que com fascistas não se dialoga. O fascismo se destrói, se derrota, se necessário, de armas na mão. Como a famosas frase da atiradora russa Lyudmila M. Pavlichenko, que quando perguntada sobre quantos homens ela havia matado na guerra respondeu, “eu não atiro em homens, atiro em fascistas”.
Uma das grandes tragédias da esquerda brasileira é que, depois da perda, primeiro, do monopólio ideológico do PCB, depois, da hegemonia ideológica do Partidão, não foi oferecida uma crítica sistemática para entender o capitalismo brasileiro e gerar um projeto alternativo de país. A crítica “pós-marxista” oferece o nada como filosofia para interpretar o mundo. O mundo é sempre uma interpretação, uma ideologia, uma figura invertida (como diria Marx) nas nossas cabeças. A necessária crítica à falta de dialética ao marxismo que chega ao Brasil, (vejam Konder, em A derrota da dialética) seguiu-se uma reação na esquerda de aversão à dialética e adesão a discursos pós-modernos. A criança foi jogada fora junto com a água do banho. Mas a tragédia é ainda maior.
Nélson Werneck Sodré fez duas observações muito argutas sobre as dificuldades enfrentadas pelo marxismo no Brasil. Uma é que, quando o marxismo chega ao Brasil, não tínhamos um proletariado de terceira geração, na verdade, poucos eram os proletários de segunda geração. Assim, a crítica operária e proletária era algo em status nascendi. A segunda era o baixíssimo nível filosófico acadêmico no Brasil, que, via de regra, segue modas que, em geral, já saíram de cartaz na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, e que chegam ao Brasil como pálidos ecos do que foram em seus países de origem.
Assim, à perda do monopólio e depois da hegemonia do pensamento da Segunda e da Terceira Internacional, organizado no Brasil pelo PCB, não se seguiu um pensamento metódico catalisador de um Bloco Orgânico capaz de promover um novo projeto de nação. O projeto do PT, vitorioso em 2002, não possui um discurso ideológico unificador, fora da ideia do antagonismo entre um projeto desenvolvimentista autônomo, versus o entreguismo pseudo moralista histórico da direita. Foi o suficiente para garantir a vitória eleitoral e a governabilidade por 3 mandatos, mas insuficiente para formar uma aliança hegemônica de classes capaz de levar à frente às reformas estruturais, que não podem ser feitas sem enfrentamentos de classe. A ideologia de consenso durou o tempo em que foi possível arrancar pequenas concessões da elite, sem mexer na estrutura hierárquica de dominação, enquanto a alta das commodities não ameaçou baixar a taxa de lucro da burguesia dependente nacional. Na primeira crise econômica internacional, não debelada internamente, a elite brasileira golpeou este consenso, para manter sua taxa de lucro, aumentando a mais-valia absoluta, em detrimento de qualquer projeto de crescimento nacional.
Pode parecer grego o que estou falando acima, e é. É grego porque simplesmente passamos 13 anos não discutindo ideologia e falando de resultados, evitando falar de luta de classes. A história é imperdoável, não é possível fazer as mudanças estruturais que o país necessita sem fazer um discurso minimamente ideológico e transformar o grego em português, numa linguagem que as massas entendam e adiram a estas. Não digam que é impossível pois esta tradução das tarefas políticas de médio e longo prazo já foram traduzidas em lutas e programas, não só em Cuba, mas no Chile de Allende, e o nível médio de discussão política em outros países da América Latina é mais elevado do que o nosso, não porque o povo seja diferente, mas porque a falsa ideia de “um pragmatismo político” (que de pragmático não tem nada) não é hegemônica. Esconder o discurso ideológico para se tornar palatável é uma bomba relógio nos nossos colos. Dá certo durante um prazo de tempo muito curto. A esquerda necessita voltar a falar em ideologia e dizer claramente que tem um projeto popular de emancipação nacional, em lugar de ficar falando apenas de ampliação do consumo.
E o que isto tem que ver com discurso dionisíaco de Bolsonaro? Já vou explicar, enquanto a esquerda tenta neuroticamente esconder seus símbolos e discursos (lembram da ideia patética do marqueteiro de plantão escondendo o vermelho da campanha no segundo turno de Haddad contra Bolsonaro?), tornar mais palatável e “popular” sua propaganda; a direita saiu do armário e se arma ideologicamente. Vivemos uma dupla tragédia no Brasil. Temos uma direita armada belicamente, organizada nas milícias bolsonaristas, que são hegemônicas nas policiais militares e que agora começam a se armar fora delas, e temos uma direita também armada ideologicamente, com discurso assumidamente ideológico. Do outro lado temos uma esquerda desarmada belicamente e sem nenhuma possibilidade de se armar e, pior, desarmada ideologicamente, com um discurso Peter Pan namastê.
O discurso populista de Bolsonaro dialoga com o povo brasileiro, que não vive na Praça Salvador, uma espécie de reduto cool de esquerda, está para o pensamento tautológico e auto-suficiente da esquerda brasileira, assim como Los Gatos na Califórnia está para um confortável reduto gay. É uma esquerda que fala para dentro e disputa entre si a popularidade no PCI (Partido Comunista de Ipanema), numa Fla x Flu eterno, PSOL x PT, a hegemonia na classe média educada e que não gosta de palavrões. Enquanto isto, o bolsonarismo explora a potência de uma fala que dialoga com a linguagem popular (como a esquerda fazia na década de 60 – veja a linha “maldita” do Pasquim). Antes que pensem que isto é uma apologia ao machismo ou a homofobia na linguagem bolsonarista, é uma constatação que a direita criou uma estética que visa a falar diretamente com as massas, mexendo com o imaginário do homem comum.
Enquanto nos digladiamos em processos de auto-censura e punição da linguagem, iludidos por uma pós fenomenologia que defendia que “discurso é poder”, algo que já passou de moda pelo menos há 40 anos na França; os comunicadores bolsonaristas estabelecem uma ligação direta com a população, usando o linguajar dos homens e das mulheres que andam de trem. A gente sequer para ler ou pensar na crítica do “homem civilizado” castrado e controlado pelo capitalismo, feita de Nietzsche a Adorno, passando por Benjamin e Debord. Estamos presos a fórmulas bem comportadas e discutimos entre nós mesmos em intermináveis rodas catárticas de conversa. E não conseguimos mais falar a linguagem popular, porque não entendemos que o ser humano é esta luta permanente entre o dionisíaco e o apolíneo, entre a castração civilizada e a vontade de potência. A esquerda ficou limpinha, cheirosa, apolínea, com uma linguagem muito parecida com a dos escoteiros mirins.
A linguagem da direita fala diretamente ao dionisíaco do trabalhador cansado e explorado. Só vemos selvageria na linguagem de bolsonaro e não entendemos o seu elemento comunicacional direto popular. Por incrível que pareça, a linguagem de Bolsonaro joga na catarse. A nossa na censura.
Até mesmo para responder aos ataques fascistas das redes bolsonaristas nos pedem sensatez. Passamos todo o tempo a ideia do cidadão controlado pela indústria do espetáculo, asseado, arrumado, penteado, carente de aprovação do politicamente correta. A direita nos roubou a estética do inconformismo e consegue passar a estética do outsider, captando os elementos de angústia e revolta dos explorados. E a gente sequer entendeu isto. Assim o bolsonarismo tem captado a atenção de jovens rebeldes que antes viam na esquerda a expressão da sua revolta. O discurso limpinho, cheiroso, asseado, bem comportado, pouco atrai estes jovens. Perdemos a estética do maldito e do outsider e sequer avaliamos como isto é importante, como esta se incorpora na estética de Bolsonaro para se vender como um “revoltado” para as massas populares.
É óbvio que não é só isto temos outras questões a resolver. A esquerda foi picada por uma mistura oligofrênica entre um pragmatismo de quinta, que nada tem de pragmático, um cretinismo parlamentar eleitoreiro, que não organiza minimamente o povo (enquanto a direita tem células em cada bairro disfarçadas de igrejas neopentecostais da terceira onda) e discursos “anti-autoritários” pós modernos, que são ecos muito modorrentos de filosofias que saíram de modas na Europa, estamos paralisados ideologicamente. O “horizontalismo” estilo Peter Pan, a falta de organicidade, leitura e formação, a falta de quadros de vanguarda com o mínimo de leitura do mundo, a falta de investimento em criação de quadros orgânicos de esquerda, capazes de fazer uma leitura melhor da realidade, nos jogou no oportunismo, no arrivismo e no aventureirismo.
O discurso extremista de uma esquerda minoritária, que ainda está na Segunda Revolução Industrial fordista, que quer reorganizar o “partido bolchevique no Brasil” e tomar o palácio de inverno, não é consolo ou salvação. O discurso histérico do “vamos para as ruas” todo o tempo, sem leitura de correlação de forças, tática ou estratégia, nem chega a ser uma alternativa à burocratização e ao cretinismo parlamentar.
Enquanto a Europa passou pelo desencantamento do mundo, com a crítica ao progresso (Benjamin, Adorno, Sartre), o Brasil apenas importou estes discurso. Sem fazer os embates reais, inclusive entre o chamado marxismo ortodoxo e os vieses revolucionários de esquerda marxista, sem a aventura surrealista na arte, sem uma disputa de pensamento entre alternativas marxistas e os embates destas contra as tendências não marxistas, o Brasil copia ecos teóricos dos países dominantes no sistema e transforma o lugar de fala, necessário, numa recusa a juntar todas as forças na luta de classes contra o capital.
É óbvio que a luta identitária veio para ficar. Não estou entre os marxistas “anti-identitários”. Acredito mesmo que anti-identitários e identitários anti luta de classes padeçam de uma mesma doença dialética. Estes, porque veem as árvores, mas não conseguem identificar a floresta. Não dá para fazer luta anti machista, anti racista consequente que não seja, ao fim e ao cabo, uma luta anticapitalista. O capitalismo é a estrutura nodal que mantém o colonialismo, o machismo, o racismo, a homofobia. Já os marxistas anti identitários não conseguem entendem a importância estratégica de juntar todas estas lutas, numa luta anticapitalista, e querem montar uma orquestra, sem juntar os instrumentistas. Todavia, não há luta revolucionária sem ideologia revolucionária.
A recusa sistemática, com a desculpa de autoritarismo contra qualquer sistema ideológico, de uma análise global do sistema capitalista – que só pode ser feita através de um método dialético, que análise a conjunção de todos os elementos do sistema, estruturais e superestruturais – é a recusa a fazer a luta anticapitalista. É o que Guy Debord chama de protesto permitido pela indústria cultural, é o protesto amestrado, destinado a tornar-se produto vendável do sistema, que no máximo, tautologicamente, irá lacrar (esquerda organizada para lutar no BBB da Globo, por exemplo) e circular na internet. Este protesto amestrado não vai ameaçar nunca as estruturas de dominação. O mal dialético como elemento destrutivo da análise, o negativo como força permanente de dissolução, o dionisíaco (vontade de potência), como elemento não amestrado pela civilização castradora (que quer transformar o ser humano num parafuso), a crítica corrosiva e antissistêmica, a denúncia da inconciliabilidade dos interesses de classe, de incontrolabilidade e da ameaça de destruição que o capitalismo hoje faz do planeta e à humanidade; todos estes fatores não cabem nos ritos horizontais, sem organização centralizada da esquerda Peter Pan namastê. É necessário uma dialética sistemática global de esclarecimento, a única capaz de arrastar conjuntamente todos os oprimidos para lutar organizadamente pela derrubada do capital.
Ou a esquerda redescobre a dialética, ou vai no máximo ficar lacrando na internet presa ad eternum na Terra do Nunca da crítica que o capitalismo tolera, como crítica bem-comportada e politicamente correta à “má-educação da direita”, como produto vendável de rebeldia permitida pró Capital. A esquerda Peter Pan namastê é a esquerda que a direita ama.
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