A erosão da Pax Americana
O mundo mudou, ocorreram significativos câmbios geoeconômicos e geopolíticos e surgiram novos atores de relevo no cenário internacional
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Eppur si muove, diria Galileu. A Terra se move, dá voltas. A ordem mundial também.
Neste início de século, em particular, há uma notável aceleração do tempo histórico. Estão em andamento profundas e céleres mudanças geoeconômicas e geopolíticas.
Recentemente, tivemos demonstrações cabais dessas mudanças.
Uma delas foi o acordo de pacificação entre a Arábia Saudita e o Irã, intermediado pela China.
Até pouco tempo, o Oriente Médio era considerado uma área de influência praticamente exclusiva dos EUA, e um acordo desse tipo teria sido impossível de se alcançar sem Washington.
Não mais.
Tudo foi feito sem qualquer intervenção dos EUA e de seus aliados europeus, que se surpreenderam com o sucesso chinês.
A recente reunião de alto nível entre China e Rússia, que aprofundou a relação estratégica entre Beijing e Moscou, é outra demonstração de que a ordem mundial, antes hegemonizada pelos EUA, não é mais a mesma.
Embora a cúpula entre Putin e Xi Jinping não tenha anunciado um concreto projeto de paz para o conflito com Ucrânia, até mesmo porque isso seria impossível sem Kiev e seu tutor, Washington, ela colocou o cesse das hostilidades na mesa de negociações e consolidou uma aliança estratégica que tende a se impor na Eurásia.
Evidentemente, boa parte dessas mudanças se deve à extraordinária expansão comercial e econômica da China em todo o mundo. Uma expansão de comércio e de investimentos que é realizada, frise-se, sem quaisquer tipos de condicionalidades político-ideológicas.
Tomemos o exemplo do Oriente Médio. Hoje em dia, a corrente de comércio entre a China e os países do Conselho de Cooperação do Golfo (Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos) já é superior às correntes de comércio entre essa organização e os EUA e a União Europeia somadas.
No que tange ao Irã, peça-chave do grande Oriente Médio, a China concordou, em 2021, em investir US$ 400 bilhões naquele país nos próximos 25 anos, em troca do suministro de petróleo iraniano. Ademais, essa parceria Irã/China permitirá a construção de corredores de transporte e comércio eurasianos, reduzindo a dependência da China e demais países, como Rússia e Turquia, do estreito de Malaca, onde os EUA tem forte presença militar, e do Canal de Suez.
Já a corrente de comércio da China com a África chegou a US$ 282 bilhões, em 2022. Em contraste, a corrente de comércio entre os EUA e o continente africano mal chega hoje a US$ 40 bilhões. Além disso, a China está investindo na África 2,5 vezes mais que todo o Ocidente combinado. Em breve, a China vai substituir a União Europeia como o principal parceiro comercial da África. Os antigos colonizadores perderão seu posto histórico.
Em relação à América Latina, região historicamente submetida à influência da Europa e dos EUA, os números também impressionam. Em 2000, a corrente de comércio da China com nossa região era de apenas US$ 12 bilhões. Em 2021, tal fluxo de comércio já tinha ascendido a mais de US$ 430 bilhões.
No caso específico do Brasil, a corrente de comércio com a China aumentou de US$ 2,3 bilhões, em 2000, para US$ 150,2 bilhões, em 2022. Nesse último ano, a China foi responsável por praticamente metade do nosso superávit comercial. A China já é o principal parceiro comercial do Brasil e de toda a América do Sul. Só não é o maior parceiro comercial de toda a América Latina por causa do México, país que tem um grande volume de trocas comerciais com os EUA (US$ 779,3 bilhões, em 2022).
Contudo, esse grande volume de trocas comerciais entre esses dois países é enganoso. Na realidade, a maior parte desse comercio é de trocas entre os próprios EUA. Os bens são fabricados nos EUA, entram no México, são embalados ou montados, e regressam aos EUA. Em média, o México agrega apenas 28% de valor ao que exporta.
No caso de regiões mais próximas da China, como o Sudeste Asiático, o crescimento da influência chinesa é ainda mais avassalador. Em 2000, o comércio da China com a ASEAN, bloco que reúne os países do Sudeste Asiático, era de somente US$ 29 bilhões. Já em 2020, essa corrente de comércio tinha aumentado para US$ 670 bilhões, o dobro da corrente de comércio entre esse bloco e os EUA.
Segundo cálculos do Lowy Institute, no ano 2000, os EUA eram, de longe, o líder comercial global. Naquele ano, 80% das nações comerciavam mais com os EUA do que com a China. Em 2018, porém, a situação já tinha se invertido. Os EUA eram o principal parceiro comercial em somente 30% dos países. A China já tinha ultrapassado os EUA em 128 dos cerca de 190 países do mundo.
Entretanto, essa ascensão meteórica da China conta com um aliado: os EUA.
A China se tornou uma potência de influência mundial não apenas por causa do seu apetite por commodities e outros insumos, mas também porque pratica uma política externa bastante habilidosa e pragmática. Como assinalamos, a China comercia e investe no mundo sem condicionalidades político-ideológicas, ou mesmo condicionalidades macroeconômicas.
Para a China, a cor do gato continua a ser indiferente.
Ademais, a China não tem pretensões de hegemonia hard e não impõe modelos. Ao contrário dos EUA e da Europa, não aponta dedos e não dá lições de moral, de macroeconomia ou de democracia a ninguém. Investe muito também em cooperação, como ficou evidente na pandemia. Parece sinceramente comprometida com o multilateralismo e com uma ordem mundial multipolar e pacífica.
Já a política externa dos EUA, sai republicano, entra democrata, entra republicano, sai democrata, continua uma política externa essencialmente unilateralista, militarista e confrontacionista.
Enquanto a China oferece comércio, investimentos e cooperação, os EUA, com frequência, impõem isolamento diplomático, sanções econômicas e comerciais e, por vezes, intervenções militares.
Claro que os EUA também comerciam, investem e cooperam, mas são bem mais seletivos, política e ideologicamente. Os gatos norte-americanos têm cores preferenciais.
Outro fator que parece estar estimulando a expansão da China no mundo é o crescente protecionismo dos EUA. Com efeito, ao contrário da China, que se expande pelo planeta, os EUA estão se voltando para dentro.
Trump já havia implantado o America First e abandonado a Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP). Agora, Biden aposta suas fichas estratégicas na internalização das cadeias de valor. Como disse ele no seu último State of The Union, as grandes cadeias de produção e valor vão voltar a ter sua base nos EUA.
A isto que se chama reshoring, ou regresso da produção ao seu território, os EUA também agregam a aposta no nearshoring, ou produção nas vizinhanças. Não obstante, essa segunda estratégia tende a beneficiar poucos países. Até agora, somente o México está lucrando alguma coisa com isso.
No campo da cooperação, os EUA também não parecem dispostos a ceder muita coisa. No caso da cooperação com o Brasil em meio ambiente, mediante participação no Fundo Amazônia, foram prometidos, até agora, apenas US$ 50 milhões, uma ninharia. Ainda assim, há congressistas norte-americanos que querem impor sanções ao Brasil, em razão da passagem de navios iranianos por aqui.
Essa combinação de crescente nacionalismo e protecionismo econômico com unilateralismo político e diplomático obviamente abre espaço para que a China e outros países, como a Rússia, projetem seus interesses com mais força no mundo.
Os EUA ainda são a maior potência econômica e militar do planeta, mas já não reinam incontestes e absolutos, como na década de 1990 e no início deste século.
A Pax Americana vem sendo erodida com celeridade.
O atual conflito na Ucrânia, que antepõe EUA e OTAN à Rússia, tende a reforçar essa tendência, pois é um contencioso que está prejudicando fortemente os aliados europeus de Washington, ao mesmo tempo em que reforça a aliança entre Beijing e Moscou.
O mundo mudou, ocorreram significativos câmbios geoeconômicos e geopolíticos e surgiram novos atores de relevo no cenário internacional. Mas isso não explica tudo.
Em boa parte, a erosão da Pax Americana é causada pelos próprios EUA e sua política externa belicosa e unilateralista, bem como por seu recente protecionismo econômico.
John F, Kennedy disse que “a política doméstica pode nos derrotar; já a política externa pode nos matar”.
E está.
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