A Emenda Constitucional 95 e o fim da CF de 1988
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A saber, de largada, preciso dizer que não concordo plenamente com esse vocábulo “fim” para a referência da Constituição brasileira de 1988. No primeiro plano, porque se trata de um modelo (ou sentido) de Constituição Dirigente, como ensina a teoria de José Joaquim Gomes Canotilho.
Como analogia didática ao entendimento imediato, a nossa Constituição possui uma natureza tal qual o Cerrado brasileiro: por mais fogo que coloquem na mata, logo que vem a chuva, esse bioma tão potente se regenera, tornando à vida, verde, lindo; sublime como os apaixonados a se vestirem para a quimera amante. Outra comparação oportuna é com um personagem da Marvel (dos X-Men), o Wolverine, isto é, por mais “bala” e “facada” que receba dos vilões, Logan sempre sobrevive, regenerado. Destarte, a Carta Magna brasileira encara os vilões da República e sempre se regenera em si mesma para retornar o quanto possível à sua essência e continuar a produzir sua semântica de justiça; ao menos as promessas.
Não é bem assim
Como este texto começa com a sua meta-crítica (isto é, o inverso é aceitável), avancemos em discordar mais uma vez dos processos de regeneração acima propostos. No primeiro exemplo, os cientistas já dão conta de que o Cerrado não mais sobreviverá ao conjunto de degradação impetrada pelo homem. Isto é, a cada desmatamento no derredor do Bioma para formar pastos e lavouras do agronegócio, o restante do seu ecossistema não suporta toda a carga de “serviços” ecológicos que lhe era imputado pela Natureza. Ademais, as queimadas constantes e a destruição da mata original – segundo pesquisas – também logo condicionarão uma situação irreversível, fazendo do Cerrado um grande “deserto” cercado de braquiárias e pobre de biodiversidade, o que afetará sobremaneira as nascentes dos principais rios que abastecem de água a maior parte da população brasileira.[1] Na segunda comparação, Wolverine nunca retorna da mesma forma. Vai sempre se enfraquecendo, além de carregar sua desesperança com a humanidade e a própria vida, o que lhe condiciona, digamos, um ar de depressão tamanho o desânimo em capturar todas as violências que lhe atingem não apenas o corpo protegido pela mutação (bênção e maldição), todavia, as violências simbólicas que cruzam as existências de todos os humanos – com os quais ele tenta salvar/conviver/interagir. E Wolverine morre[2], certo dia. Em síntese, a Constituição Federal do Brasil, por mais resistente que possa ser (auto-regenerativa), não aguenta mais tanto ataque à Democracia, à Cidadania, aos Direitos Humanos e às Liberdades. Infelizmente (e parece que retorno ao inverso), ela morrerá.
Natureza da Constituição Dirigente (uma síntese)
Sinto-me instado a fazer menção a alguns autores, entretanto, ao recorte melhor sistematizado de uma das categorias da Teoria Constitucional, qual seja, a Constituição Dirigente. Dito isto, faz-se necessário apresentarmos aqui, neste resumo, o escopo que se desdobra deste panorama doutrinário. Em primeiro plano, a Constituição Dirigente é fruto dos estudos de seu proponente, o jurista José Joaquim Gomes Canotilho. O autor português, um dos maiores nomes do constitucionalismo mundial, a partir de dois referentes principais (ares, digamos assim), traçou as linhas para sua Constituição Dirigente. Fator número um, Canotilho fez brotar em sua tese ao doutoramento as diretrizes para a teoria que se menciona. E a ambiência número dois, a Revolução do 25 de abril de 1974, em Portugal, de caráter socialista que, por óbvio, pretendia como resultado um novo arranjo civilizatório o que também se busca nos pressupostos da Carta Magna central do país. Destarte, pode-se seguramente dizer que Canotilho é o autor estrangeiro que mais influenciou os pilares da Constituição do Brasil de 1988. Passamos a sinalizar os elementos da Constituição Dirigente para saber o porquê nosso Diploma Magno tem seu peso fundamental nesta teoria. Senão, vejamos. Canotilho nos ensina que nos acervos constitucionais, digamos, clássicos, há um problema posto que precisa ser revisto, a saber, o papel ativo do Legislador. Veja: ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo resta claro que estão vinculados às leis, à própria constituição. Entretanto, o Poder Legislativo, grosso modo, apenas “confecciona” o texto, contudo, resta deslocado das normas constitucionais, numa espécie de “Olimpo Normatizante” (palavras nossas) que os tornam livres nas concepções-fins do Estado, isto é, não atuam na agenda (ou no programa) da ação estatal. Portanto, a constituição se vê necessária de produzir elementos dirigentes (diretrizes normativo-programáticas) que, ao mesmo tempo, mobilizem o Poder Executivo (na implementação), também os demais poderes, seja no controle, seja na revisão, suplementação, organização das estruturas e pactos do Estado com a população. Daí, Canotilho chama isso de “mediação legislativa” para a agenda nacional. Entretanto, o que se busca realmente é, i) a aplicabilidade; ii) a efetividade; iii) o controle da ordem constitucional. Há que se retirar do texto normativo central de um determinado Estado seu caráter abstrato, ou meramente formal para lhe dá substância, para transformar a realidade econômica, social e cultural (na perspectiva do autor).[3] Neste diapasão, a Constituição Dirigente tem bases centrais na reivindicação do chamado Estado Social (Welfare State), como nos ensinam Paulo e Alexandrino (2017). Todavia, por mais paradoxal que seja, não foca os indivíduos (por suas necessidades básicas), mas os órgãos, a dirigí-los uma atuação. Para estes autores a proposta teórica em tela, em síntese, pretende conduzir a evolução política do Estado, a agenda dos órgãos governamentais, suas metas, suas propostas. Tem, por conseguinte, normas programáticas. Entretanto, lembram que seu texto é caracteristicamente extenso, configurando-se numa constituição de condição analítica. Já para Uadi Bulos (2014) não se vê quaisquer programas, todavia, aqueles que estão em conformidade com a sociedade. Trata-se de uma lei material para agendar esta mesma comunidade. Pensa-se no “justo comum”, portanto, para uma “política justa”. Em Lenza (2014), é reiterada a Constituição Dirigente como “Constituição Social”, portanto, afiguram-se nos Direitos Fundamentais de 2º Geração, consagrando a igualdade substancial. Destarte, inspiram estas normas um horizonte de “esperança” à ação programática Estatal. Consignam aquilo que pode ser denominado de Estado do Bem Comum. Na síntese que trazemos em Mendes e Branco (2017), a Constituição Dirigente pode também ser denominada de Constituição Programática. Referenciam objetivos para as dimensões, social, cultural e econômica, face que não se restringem aos estatutos, às estruturas de poder, todavia, aos programas. Feito o resumo dos principais apontamentos acerca da teoria da Constituição Dirigente, resta possível avocar os traços deste modelo na CF-1988 do Brasil, face que a maior parte das características que elencamos são objetos da estrutura normativo-jurídico-política da nossa Carta. Faríamos aqui apenas um apontamento para problematizar a crítica (de futuro ou de agora): se uma Constituição Dirigente brota das nascentes do socialismo, como nos ensina Néviton Guedes (2012), e nosso Diploma máximo opera na lógica do modelo liberal de sociedade, isto seria uma atualização da própria teoria de Canotilho, levando-se em conta o mundo “real”, as estruturas fáticas dos Estados, ou uma contradição do exercício legislativo frente ao escopo teórico que se fez ensaiar na Constituinte de nosso País? Ademais, o próprio Canotilho enxerga as evoluções das sociedades (e dos Estados, hoje cada vez mais expandidos nos blocos multinacionais). E mesmo as dificuldades reais de integral realização da Constituição Dirigente no plano das disputas sociais e hegemônicas. No entanto, à exemplo do que o autor observou no Brasil, a Constituição Programática promulgada neste território, conseguiu em grande medida realizar parte de suas promessas, fomentando a alteração de códigos, estabelecendo a ordem de novos pactos sociais e projetos de potência efetiva (como citamos, o SUS, as políticas de ações afirmativas a promover a equidade emergente, as diretrizes de proteção ao Meio Ambiente etc.). Isto posto, entregamos este resumo para o (bom) debate necessário à nossa civilização.[4]
Emenda Constitucional nº 95
Ensina-nos José Geraldo de Sousa Junior e Antonio Escrivão Filho (2019) que os Direitos Humanos são indivisíveis, interdependentes e integrais. No plano do resumo, significa dizer que a vida das pessoas (sujeitos) está na dimensão desta existência material se a elas são assegurados os direitos, todos, a fim da realização da liberdade e da cidadania. Se, de um lado, são indivisíveis, do outro, interdependentes. Trata-se de não se aperceber qualquer direito isolado do outro, todavia, o conjunto deles na ação concreta do locus social. Quanto à integralidade, isto é, para a realização efetiva, a hipocrisia do sistema acha brecha para selecionar quem tem ou não acesso aos direitos. Escrivão Filho e Sousa Junior (2019) nos afirmam que “de fato, é comum a negativa de direitos por parte do Estado assumir formas diversas, variando desde a questão financeira – usualmente invocada contra a reivindicação dos Dhesc [Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais] – (…) até o fundamento moral e religioso – reiteradamente invocados contra a luta por direitos de reconhecimentos (…)” das pessoas minorizadas. E isso tem qual relação com a EC nº 95? Ora, no governo do pós-Golpe de 2016, Michel Temer, com apoio de Jair Bolsonaro e toda a bancada do Centrão no Congresso Nacional aprovaram este dispositivo constitucional que CONGELOU OS INVESTIMENTOS EM SAÚDE, EDUCAÇÃO, SEGURIDADE SOCIAL e demais Dhesc às populações. Isto é, aquilo que estes liberais entreguistas subordinados ao Mercado Internacional alegavam é que se o Brasil não tivesse crescido o seu PIB em cada ano, todas as chamadas “despesas primárias” (como o SUS, o FUNDEB, o INSS etc.) sofreriam os cortes a cada exercício orçamentário – por ao menos 20 anos de congelamento/condicionamento.[5] Resultado disso: na pior crise sanitária da história da humanidade (o coronavírus) o Brasil não teve “oxigênio” suficiente para salvar mais (todas as) vidas no Sistema Único de Saúde. No retorno à crise crônica alimentar (fome mesmo!), as pessoas estão brigando na fila de açougues e frigoríficos (e mesmo em caminhões de coleta do lixo) para pegar ossos, restos de animais abatidos a fim de cozerem sopas a seus filhos para que não morram desnutridas. Tudo isso é culpa da Emenda Constitucional 95 (e outros ataques vis à CF-88). Todavia, é fator brotante da hipocrisia e crueldade de nossos congressistas (claro, não todos, apenas a maioria que pode mudar a Constituição) e do Governo Bolsonaro que emergiu das cinzas do limbo em chamas perpetrado pelos ataques à nossa democracia (ruptura constitucional da ordem do direito). Tais fatores criaram a ambiência para o pior modelo econômico (ultra-liberal) que poderia surgir no pior tempo do Brasil.[6]
O inverso reverso na esperança da Promessa Constitucional
Em síntese, não é possível “a olhos nus” prevê se a Constituição Dirigente do Brasil sobreviverá a este modelo predatório que vincula o Legislativo, no entanto, para decepá-la e não para ajustá-la às necessidades de mais direitos na deriva (decurso do tempo e evolução) da sociedade; não sabemos se de fato esta Carta Cidadã de 88 resistirá. Poderá morrer estando viva, humilhada, dilacerada. (Nunca esqueçamos: milhões morreram banalmente por falta de vacina contra a COVID-19, ou pela fome, ou por falta de outras oportunidades etc.; outros estão vivendo dos ossos que roem, literalmente; mais da metade da população teve seus direitos saqueados, a exemplo: trabalho, renda, educação e até mesmo aposentadoria, a partir de mudanças no programa constitucional e legal.) Retomando José Geraldo de Sousa Junior, este sempre nos alerta para um olhar atento às chamadas “promessas constitucionais”, isto é, há um consolidado denso, programático, institucional, democrático forte que nos “presenteou” o constituinte originário de 1988. E ao invés de “tacarmos pedra” em nossa Lei Maior, devemos cuidar dela, reivindicar suas promessas, compreendendo cada meta, objetivo, ou propósito cidadão ali contido. Ademais, nossa resistência passa por uma defesa intransigente do Diploma Magno de 1988. Após quase 500 anos (entre os tempos formais e escamoteados) de escravização do povo negro e dos indígenas; de décadas de Estado de Exceção; e em todos estes tempos, os diplomas constitucionais nunca primaram por conceder programas tão congruentes para a emancipação e para a cidadania dos sujeitos. Ao contrário, as normas magnas se consignaram às elites, forjando na História uma espécie de casta podre que age como parasita a sugar a vida e a dignidade das pessoas. Somente agora, na aurora do Brasil (ou também seu crepúsculo, a julgar), na penúltima década do século XX, o País conquista elementos concretos no seu principal pilar de direito. Na síntese, a CF-1988 é a última coluna de proteção das estruturas democrático-cidadãs do Brasil. Ou isso, ou de fato será o fim, no entanto, não apenas da Constituição, e sim de todos e todas nós...[7]
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[1] Saiba mais sobre o Cerrado e sua (não)regeneração eterna nessa importante reportagem da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) em: https://agencia.fapesp.br/uma-vez-degradado-o-cerrado-nao-se-regenera-naturalmente/27156/.
[2] Wolverine, um dos heróis em quadrinhos mais conhecidos da história, e que teve sua versão adaptada para o cinema, morre no filme “Logan” (2017). Embora a Marvel tenha projetos de retorno do personagem às telinhas, o certo para este texto é que a reflexão nos propõe um limite para tanta pancada, dor, tortura, esquartejamento. Foi assim com o Logan/Wolverine; é assim com a CF-88.
[3] Com a palavra, o próprio Joaquim Canotilho sobre sua teoria: TV Justiça no Youtube. Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=b7S8CB1V0Os.
[4] Este tópico faz parte de um resumo (com adaptações) feito por este autor e validado pelos colegas, Charles Nunes de Oliveira; David Eduardo Amaral Rocha; Renata Keli Marinho Duarte; e Wesley Oliveira Barbosa para apresentação de um trabalho sobre Constituição Dirigente realizado na disciplina “Teoria da Constituição”, ministrada pelo professor João Vitor Martins Lemes, no curso de Direito na Universidade Federal do Tocantins, em 2021. Achei oportuno aproveitar a síntese para quem tiver a curiosidade em conhecer um panorama mais geral sobre o postulado da “Constituição Dirigente”.
[5] Conheça aqui o texto da Emenda Constitucional nº 95:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
Mas se desejar saber suas consequências numa análise de mérito, leia esta reportagem no Brasil de Fato:
https://www.brasildefato.com.br/2018/10/03/emenda-95-o-enfraquecimento-do-pacto-social
[6] É relevante lembrar que Paulo Guedes, ministro da Economia, é “filho” da Escola de Chicago, onde a formação tem seu núcleo no manifesto ao Estado Mínimo. Isto é, o quanto de recursos puder se tirar do povo, espoliando os pobres, para dar dinheiro aos bancos (os juros da dívida pública), melhor para o Guedes e sua filosofia egoísta; melhor para Bolsonaro e sua estirpe vulgar; melhor para as elites gananciosas deste País.
[7] Sugiro a leitura fundamental de ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, que embasa parte deste – quase – ensaio.
São ainda referências bibliográficas que lhe abonam: BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional – Tomo I: Teoria da Constituição. Salvador: Juspodivm, 2014; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013; FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPodivm, 2017; GUEDES, Néviton. Professor Canotilho e sua Constituição Dirigente. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2012-nov-12/constituicao-poder-professor-canotilho-constituicao-dirigente>. Acesso em 10 nov. 2021; LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014; MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017; PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 16 ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
Por derradeiro, este texto, óbvio, buscará o alcance de mais leitores para juntos lutarmos pela nossa Constituição Federal; defendê-la. Entretanto, é também uma proposta de discussão em aula na turma de “Direito Ambiental para a Educação Ambiental” que leciono como professor temporário na Universidade Estadual de Goiás (UEG).
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