A economia e o recado das urnas
O recado das urnas foi claro: descontentamento. As denúncias envolvendo a descaso governamental com a data de validade de milhões de testes do coronavirus e as ameaças de não cumprimento dos repasses necessários à compra das primeiras vacinas já em via de serem aprovadas agravam o quadro de popularidade em queda
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É bem verdade que as eleições municipais guardam características muito particulares e devem ser analisadas com a máxima precaução possível. Nesse processo envolvendo 5.570 cidades, entram em jogo as questões locais, tais como a avaliação da gestão da prefeitura e a maneira por meio das quais as políticas públicas gerais se concretizam no plano local. Além disso, o jogo das alianças políticas e partidárias nacionais nem sempre se transferem de forma mecânica e automática para a composição de chapas para prefeitos e vereadores. Ou seja, a dinâmica eleitoral é complexa e contraditória.
Dessa forma, ainda que sejam feitas tais considerações preliminares, o fenômeno da elevação da impopularidade de Jair Bolsonaro refletiu-se com todas as cores nas disputas em que ele se resolveu se envolver diretamente nesse pleito. O Presidente conseguiu a façanha de ver derrotados quase todos os candidatos a prefeito das capitais com os quais gravou vídeos e para os quais fez campanha ostensiva. Assim foi com Russomano na capital paulista, com Crivella no Rio de Janeiro e com o Capitão Wagner em Fortaleza, por exemplo. Em razão de não ter conseguido constituir seu partido a tempo de concorrer com legenda própria, Bolsonaro viu seus familiares e partidários mais próximos disputarem os cargos pelas mais variadas agremiações pelo Brasil afora.
Se por um lado essa estratégia impede a visualização de uma possível derrota do projeto “Aliança pelo Brasil”, por outro ficou bastante claro que os candidatos apoiados de forma explícita pelo capitão não receberam o apoio imaginado. Nem mesmo a simbólica Wal do Açaí conseguiu se eleger vereadora em Angra dos Reis, depois de todos os escândalos envolvendo rachadinhas, acusações de funcionária fantasma e outras práticas similares, bem como o apoio declarado de Bolsonaro.
Bolsonaro foi o grande derrotado
Uma das muitas explicações para tal desempenho está diretamente associada à queda de popularidade do capitão, a partir da redução pela metade do valor do auxílio emergencial em setembro, pela inflação expressiva identificada nos alimentos, pelo aumento do desemprego e pela elevação da miséria social de forma generalizada. É de se esperar que tal quadro se agrave a cada nova semana, uma vez que os dados da mortalidade do covid-19 voltem a se refletir nos relatórios diários de casos e óbitos. Além disso, a partir do início do ano que vem o governo não deverá manter o auxílio emergencial, caso seja aceita a obsessão criminosa de Paulo Guedes para com o aprofundamento do austericídio.
O recado das urnas foi claro: descontentamento. As denúncias envolvendo a descaso governamental com a data de validade de milhões de testes do coronavirus e as ameaças de não cumprimento dos repasses necessários à compra das primeiras vacinas já em via de serem aprovadas agravam o quadro de popularidade em queda. Bolsonaro permanece em dúvida sobre qual o destino a oferecer ao Superministro da Economia. Por mais que necessite do apoio e sustentação das elites vinculadas ao sistema financeiro, o chefe do governo deve saber muito bem que manter a opção estratégica Paulo Guedes é rumar sem freio em direção ao precipício.
O caldo de cultura para o aprofundamento do desconforto social generalizado está em preparação. Daí para a convulsão social basta uma fagulha. Por mais que a sociedade brasileira tenha apresentado historicamente traços impensáveis de flexibilidade para a demarcação dessa linha imaginária do “basta”, o fato é que os números da crise são dramáticos e a tragédia da realidade social e econômica não para de piorar.
A possibilidade de mudança enfrenta alguns obstáculos de natureza política e outros ligados à própria ordem institucional. Os primeiros residem no apoio ainda oferecido a Paulo Guedes e sua preocupação monotônica com o resultado fiscal. Segundo o comandante da economia, nada pode ser feito em termos em termos de alternativas de políticas públicas em razão da impossibilidade, de acordo com seu ponto de vista obtuso e retrógrado, de se promover aumento das despesas governamentais. Para tanto, ele se vale de indicadores como aumento do déficit público e da sacrossanta relação “dívida pública/PIB”. Qualquer elevação no gasto estatal é considerada como heresia e precisaria ser combatida de todas as formas.
Revogar a EC 95 e flexibilizar teto de gastos
Ocorre que não basta mudar o ministro e sua dedicação religiosa ao credo neoliberal. Bolsonaro herdou da duplinha dinâmica Temer & Meirelles a fantasmagórica EC 95, que impede a elevação dos gastos orçamentários não-financeiros por 2 longas décadas. Guedes, mui espertamente, sempre se refere a ela e alerta o chefe para o risco de cometimento de crime de responsabilidade caso o chamado “Novo Regime Fiscal” não seja obedecido. Isso em razão de ter sido introduzida na Constituição essa insanidade fiscaloide, que nada mais faz senão impedir que o Estado brasileiro tome sua iniciativa de apontar caminhos de solução para a crise recessiva em que nos encontramos. O modelo pune com impeachment a adoção de medidas contracíclicas para estimular a retomada do crescimento da economia.
Mudar a orientação da política econômica e revogar o dispositivo constitucional da EC 95 são os primeiros passos necessários para que seja dado o início de superação desse quadro de passividade completa. Não existe alternativa que ignore a exigência imediata de elevação das despesas públicas. Até mesmo economistas do próprio campo conservador e integrantes do “establishment” finalmente deram o braço a torcer e agora reconhecem que a emergência da crise justifica apelar para medidas como aumentar a emissão de moeda e elevar o próprio ritmo do endividamento público.
Auxílio Emergencial a R$ 600
Enfim, o fato é que o Estado brasileiro precisa gerar recursos para fazer face à pandemia e à retomada das atividades econômicas de forma geral. Estamos em um quadro de depressão e os alertas para riscos de aprofundamento e generalização do processo inflacionário não se justificam. As elevações de preços são pontuais e poderiam ser resolvidas, por exemplo, se o liberalismo irresponsável de Guedes não houvesse destruído a política de estoque reguladores de alimentos. O governo precisa ter meios de retomar o auxílio emergencial nos valores anteriores de R$ 600. Para isso, o Presidente da Câmara dos Deputados já deveria ter colocado em votação a MP nº1.000, que trata justamente do assunto. A tarefa dos partidos de oposição deve ser a extensão do prazo para o ano que vem e a recuperação do valor anterior.
É bem possível que haja assessores buzinando no ouvido do candidato à própria reeleição que a contabilidade dos quase 180 mil mortes na pandemia seriam coisas do passado. Assim, de acordo com essa leitura tecnocrata e financista, Bolsonaro precisaria apenas olhar para o futuro, em busca de uma agenda propositiva para o próximo biênio. Ocorre que não há como ele chegar em outubro de 2022 sem que consiga apresentar algo de positivo como justificativa de uma eventual recandidatura.
A trama da sucessão nas direções das duas casas do legislativo podem nos apresentar algumas novidades nessa linha. A decisão do STF tirou Alcolumbre e Maia da disputa. Está aberta a temporada de caça aos fisiologismo. No entanto, Guedes e Bolsonaro sabem muito bem que a composição dessa nova maioria parlamentar vai cobrar seu preço. E os deputados e senadores não vão oferecer apoio a um governo que pretenda manter a política de tiro no próprio pé em termos de políticas públicas. Afinal, os parlamentares também têm as suas próprias pretensões eleitorais.
Aguardemos, pois. Ou bem Paulo Guedes muda ou Bolsonaro muda Paulo Guedes.
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