A desigualdade e a rebelião das multidões
Colunista Aldo Fornazieri avalia que "sem projeto, sem estratégias, sem líderes e sem organizações políticas sólidas", grandes manifestações "tendem a ser derrotadas ou a conquistar vitórias efêmeras, reivindicações parciais". As multidões, critica ele, "são recorrentemente afogadas pela crueldade das elites e pelas misancenes dos partidos e dos políticos"
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O conceito de “multidão” de Antônio Negri e Michael Hardt ajuda, em parte, compreender a nova onda de protestos que ocorre em vários países. É uma nova onda porque, desde 2008, a partir da crise financeira, ocorreram várias ondas que atingiram os Estados Unidos, vários países da Europa, se configuram na Primavera Árabe e passaram pelo Brasil. A nova onda agora atinge países ou cidades como o Chile, Equador, França, Líbano, Londres, Barcelona. Bagdá, Argel, Hong Kong etc.
Se o conceito de multidão não explica as razões das rebeliões, ao menos ajuda explicar a forma e a composição das mesmas. Negri e Hardt dizem que “o povo é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares”. As manifestações que ocorrem em várias partes parecem ter essa composição multitudinária. Os autores talvez tenham exagerado no seu otimismo quanto ao poder transformador que atribuíram às multidões.
Os gatilhos detonadores das rebeliões são diferentes, mas o pano de fundo é o mesmo: crescimento das desigualdades, mal estar social, perda de direitos, precarização dos serviços públicos de saúde, educação e transportes, precarização do trabalho e perda de poder aquisitivo dos salários. Se as doenças da alma, as doenças psicológicas, se multiplicam nos ambientes de trabalho, a perspectiva de um mundo cada vez mais sombrio, com ameaças às várias formas de vida, assusta os jovens.
As ditaduras do passado e os programas neoliberais mais recentes solidificaram estruturas que agravam e aprofundam as desigualdades. As revoluções tecnológicas também se tonaram máquinas de concentração de riqueza. Com isso, a democracia perde a sua alma, o seu valor principal: a igualdade. A igualdade era o valor primordial da democracia, disseram os filósofos políticos do passado. A igualdade era o valor característico da democracia disse Tocqueville. Hoje, as democracias ocidentais são formas sem conteúdo, estruturas sem substância, estruturas de Estado e de governo sem povo.
Se é verdade que as multidões se mobilizam, protestam e são o fermento da mudança, o fato é que sem projeto, sem estratégias, sem líderes e sem organizações políticas sólidas, elas tendem a ser derrotadas ou a conquistar vitórias efêmeras, reivindicações parciais, como mostraram as histórias recentes das grandes manifestações. É precisamente aqui que existe um enorme impasse: se, por um lado, as multidões mostram a potência da mobilização, por outro, os partidos e os líderes políticos mostram a impotência e a incapacidade de liderar, de conduzir processos inovadores de mudanças, de dirigir reformas ou de revoluções. Há uma indisfarçável crise de lideranças e de perda de relevância dos partidos.
A rigor, os partidos de esquerda e centro-esquerda hoje são partidos da ordem, fazem parte do statu quo, são a cereja do bolo e a face humanizada do capitalismo predatório que impõe uma desigualdade brutal, crescente, às sociedades. Este conformismo das esquerdas ao sistema único vem diluindo e enfraquecendo os partidos socialdemocratas tradicionais da Europa e abre espaço para o crescimento da extrema-direita ou para outros tipos de populismo.
Na América Latina, os governos recentes de centro-esquerda e de esquerda não foram capazes de promover reformas profundas que atacassem as causas das desigualdades históricas. Para usar um termo de André Singer, esses governos promoveram apenas um reformismo fraco. Articularam programas sociais compensatórios que ajudaram a reduzir as desigualdades temporariamente, principalmente no momento em que o boom das commodities foi decisivo para melhor a renda, o emprego e superar os altos níveis de pobreza em vários países da região. Passado o período da bonança, os problemas históricos voltaram e se juntaram com denúncias de corrupção que atingiram boa parte dos governos da América Latina, tanto de esquerda quanto de centro-direita.
Os 20 anos de governos de centro-esquerda da Concertación no Chile, somados aos quatro anos do último mandato de Michelle Bachelet, não promoveram um reformismo forte que fosse capaz de remover as instituições que causam a desigualdade e as iniquidades. O mesmo ocorreu com os governos do PT no Brasil, com o kichnerismo na Argentina, com Rafael Correa no Equador e com o chavismo na Venezuela. Este último promoveu uma grande diáspora do povo venezuelano. Uruguai e Bolívia foram os países onde os governos de esquerda foram bem sucedidos. Evo Morales merece destaque, pois assumiu o governo com altos padrões de pobreza e desigualdade e hoje a Bolívia é mais igual e mais desenvolvida.
Na América Latina, nem a centro-direita e nem as esquerdas foram capazes de enfrentar o principal problema: um desenvolvimento calcado na produção e exportação de commodities - produtos de baixo valor agregado – e com processos de desindustrialização. Esses processos vêm se aprofundando, estagnando e retroagindo o seu desenvolvimento da região. No Brasil, a desindustrialização vem se intensificando desde a década de 1980.
Baixos salários, precarização do trabalho, ondas de desemprego são algumas consequências comuns em vários países. A marcha da desindustrialização é acompanhada por sistemas educacionais em crise, pela desqualificação da mão de obra e pela alta evasão nos ensino médio e universitário. Em contrapartida, em outras partes do mundo a quarta revolução tecnológica se alastra, os investimentos em ciência e tecnologia se incrementam, os sistemas de educação são reformados e inovados. Somente a China está investindo 300 bilhões de dólares para transformar a suas universidades nas melhores do mundo.
Com elites políticas e econômicas criminosas, com privilégios públicos inaceitáveis, os países da América Latina perderam a mão para o futuro. Desigualdade, desemprego, pobreza, violência, alta criminalidade, tráfico de drogas, populações inteiras sem direitos e sem assistência, a vida degradada nas periferias das cidades são marcas que vão se acentuando nestas terras desalentadas e desesperançadas.
Dados divulgados na semana passada sobre a desigualdade no Brasil mostram que a metade da população vive com 413 reais por mês. Este é o Brasil real enquanto os políticos se distraem com as brigas no PSL, com os desatinos do governo. Já o Brasil real está esquecido pelos políticos, abandonado pelos governos, ignorado pelos deputados. É o Brasil que não tem representação nos parlamentos, o Brasil que não tem voz, que não tem vez, que não tem saúde, que não tem direitos.
Mesmo que ocorram rebeliões, as multidões não podem e nem devem ter esperanças, pois estas são recorrentemente afogadas pela crueldade das elites e pelas misancenes dos partidos e dos políticos, interessados apenas nos seus cálculos eleitorais, nos seus cargos, nos seus fundos e nos seus privilégios. Passada a fúria das rebeliões a vida e a realidade voltam à sua trágica normalidade e esta parece não ter fim.
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