A democracia é relativa, mas...

"É justamente no seu conteúdo que as democracias modernas falharam, principalmente na América Latina, incluindo o Brasil", considera Fornazieri

Presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva
Presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)


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A democracia é relativa, mas ditaduras são ditaduras. Dizer que o conceito de democracia é relativo não autoriza relativizar o caráter autoritário de determinados regimes, a exemplo do regime da Venezuela, da Nicarágua e da Rússia. Desta forma, a afirmação de Lula de que o conceito de democracia é relativo pode ser ajuizado da seguinte forma: o presidente acertou no conceito, mas errou na oportunidade e na referência à realidade factual, no caso, o regime da Venezuela.

Em política, assim como em qualquer área do conhecimento, é desaconselhável referir-se a qualquer realidade conceitual como absoluta. Tome-se o conceito de política: para os gregos, o termo polites significava uma qualidade do ser humano, a sua natureza. O homem é um zoon politikón, dirá Aristóteles. Essa noção de política ficou para trás e hoje quando se fala em “político” a referência é aos profissionais da política, a aqueles que exercem uma atividade específica e não mais a uma qualidade do ser humano. 

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O mesmo ocorre com o conceito de ciência. O atual conceito só se firmou no século XIX e não tem o mesmo significado que tinha no mundo antigo, medieval e do início da era moderna. O conceito de ciência continuará mudando de significação em vários aspectos.

Se até o conceito de ciência é relativo, o que dirá a noção de democracia. A democracia surgiu no mundo antigo, particularmente em Atenas, como democracia de assembleia e passou por várias mudanças na história para se constituir como democracia representativa no mundo moderno. Mesmo as democracias modernas têm várias diferenças entre si. Por exemplo, presidencialismo e parlamentarismo são formas variantes de democracia. 

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Mas se existem formas variáveis de democracia, não significa que não haja critérios ou princípios fundamentais para definir o que sejam democracias. Esses princípios são interdependentes: eleições periódicas, voto universal secreto, eleições livres e competitivas entre os partidos, garantia do exercício do mandato dos eleitos, autonomia entre os poderes o que fundamenta o caráter republicano da democracia. Quer dizer: um regime que faz muitas eleições e que não são livres e competitivas entre os diversos atores políticos não agrega a condição suficiente para se dizer que é democracia. 

Lula afirmou que na Venezuela existem mais eleições do que no Brasil. Este não é um critério suficiente para definir uma democracia. Uma ditadura pode promover frequentes eleições não livres como fazem os regimes de Maduro, de Daniel Ortega e de Putin. O Brasil não seria democracia, se Bolsonaro interferisse no TSE e no sistema de votação. Durante o regime militar ocorreram eleições no Brasil sem que isto caracterizasse o regime como democracia.

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Mas a democracia precisa ser qualificada quanto ao seu conteúdo. Alexis Tocqueville, em seu clássico escrito no século XIX – A Democracia na América – argumentou que o principal valor da democracia é a igualdade que, claro, está numa relação de interdependência com a liberdade. Para ele, a igualdade não era apenas perante a lei, mas também uma igualdade no sentido da equidade, no sentido de um senso reduzido de desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. A rigor, todo pensamento político clássico sustenta este argumento como definidor de democracia.

É justamente no seu conteúdo que as democracias modernas falharam, principalmente na América Latina, incluindo o Brasil. Há uma alargada desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. Desta forma, se ocorreram avanços nas democracias latino-americanas do ponto de vista dos princípios formais, com a superação das ditaduras, pouco se avançou do ponto de vista do conteúdo da democracia. 

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Parece que o comando da diplomacia brasileira e Lula não compreenderam que a política internacional não se define apenas por uma ou duas clivagens – a geopolítica e os interesses comerciais. Existem várias clivagens: a clivagem ambiental, clivagem riqueza/pobreza, clivagens políticas etc. Uma das importantes clivagens políticas é a clivagem entre democracias e ditaduras. É esta clivagem que Lula e o comando do Itamaraty negligenciam.

Essa clivagem tem imensa repercussão na política interna em muitos países. No Brasil ela tem um recorrente impacto. O afastamento de Dilma por um golpe parlamentar, a prisão de Lula, as recorrentes ameaças de Bolsonaro, inclusive em relação às eleições, e a tentativa de golpe de 8 de janeiro, são evidências incontestáveis do impacto das articulações antidemocráticas no Brasil. 

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Trump, Putin, Bolsonaro, Maduro, Ortega, entre outros ditadores, comungam os mesmos valores não só em relação à organização do regime político, mas também na forma violenta de tratar adversários/inimigos e em relação à negação de direitos a vários grupos sociais específicos. Esses valores e práticas são ditatoriais e fascistas.  Antigos chavistas e sandinistas acusam Maduro e Ortega de terem traído a revolução. São hoje regimes corruptos que se sustentam pela violência militar.

Negligenciar essa clivagem está criando uma série de embaraços à política externa do governo Lula, o que leva também à negligência do discurso da defesa da democracia no plano da política interna e no plano da política internacional. Isto é um grande paradoxo, pois Lula já forneceu robustas provas práticas de seu compromisso com a democracia. No entanto, o descuido para com a questão democrática permite que ele seja acusado de apoiar ditaduras, inclusive pelo bolsonarismo. Uma das falhas dos governos do PT consiste no pouco empenho na afirmação da cultura e de valores democráticos.

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Por fim, cabe dizer duas coisas. A primeira é que a luta pelo socialismo, como crescente processo de conquista de igualdade, nos vários sentidos do termo, implica no alargamento das conquistas democráticas enquanto conquista de liberdades e de direitos e enquanto processo de crescente superação das desigualdades. Nesse sentido, os socialistas devem lutar tanto pela garantia das liberdades e da democracia no sentido de seus fundamentos formais, quanto pelo seu conteúdo, o que significa a redução das desigualdades.

A segunda coisa a ser dita é que a democracia não é e nunca será uma forma acabada. Ela sempre depende das lutas pela sua garantia e pela sua ampliação. Em política nunca há nada de definitivamente garantido. As conquistas sempre dependem das lutas dos povos, das lutas dos grupos sociais carentes de direitos. Como já disse alguém, a democracia se comporta como as ondas do mar. As ondas democráticas surgem com força, mas com frequência se quebram contra os rochedos autocráticos. Este espetáculo é triste e reconfortante ao mesmo tempo. Desse paradoxo precisamos extrair a lição de que devemos reativar as ondas quando elas se quebram e que nunca devemos deixar de lutar pela democracia.

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