A curva da insensatez

O poder, ao mesmo tempo que exerce um esmagador (e até erótico) atrativo, se mostra pesado. Põe por água abaixo expectativas e intenções. No caso de Jair Bolsonaro, o espetáculo de vê-lo se exceder, aos palavrões, contra magistrados da mais alta corte evoca cenas de Carpentier



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No genial romance O recurso de método, o escritor Alejo Carpentier concebe a história de um país, onde um dirigente fascinado pela cultura europeia acorda em seu apartamento parisiense, olha o Arco do Triunfo pela janela e se sente feliz. Sempre que pode, entrega a administração pública para algum assessor e retorna ao refúgio francês no qual goza de prestígio entre intelectuais e liberais. Não espanta. Gosta do convívio com eles, liberais na política e gente adiantada, progressista, de mente aberta. Infelizmente, quando menos espera, recebe chamados urgentes de crise e tem de regressar à sua terra para acalmar rebeliões e conter levantes. O liberal que deixa Paris chega em sua capital de chicote na mão, pronto para proclamar sua autoridade e “pacificar” as contestações.

Guardadas as devidas proporções, há paralelos com o que se passa no Brasil dos nossos dias. Em vez de Paris, deveremos pensar nos Estados Unidos, talvez em Nova York ou Washington D.C., quem sabe no Capitólio. O dirigente metido a francês possui clara fragmentação de personalidade, dividido entre o avanço e o atraso, a boa convivência e a tirania. Não parece exagero pensar em temperamento esquizofrênico. Pois igualmente aqui, no Hemisfério Sul, o Presidente avança em devaneios totalitários, de características paranoicas, sem se dar conta de que, em suas funções, tem de dividir autoridade com os outros poderes: o Judiciário e o Congresso. As confusões no plano constitucional o levam, com uma frequência assustadora, a desrespeitar as outras autoridades e se isolar no bunkerde seus apoiadores - os selvagens de motocicleta a quem convoca para se fazer de superior. Com eles, oferece livre curso às fantasias de superioridade de sua mente atormentada.

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Há diferenças, evidentemente, entre o nosso e o ditador de Alejo Carpentier. Ainda não nos encontramos de armas em punho, em guerra declarada entre situacionistas e contestadores. Sob o aspecto da insensatez, no entanto, damos a impressão de nos equiparar e até ultrapassar o caráter grotesco do personagem que desembarca de chibata em sua capital, disposto a se perpetuar... em Paris. Não é novo, na História, o fenômeno de lideranças que, por força de tensões, terminam sofrendo de um curto circuito nos terminais nervosos. Por causa disso, lidam mal com as ambições pessoais e perdem o freio, isolando-se em Palácio, em cercadinhos com acólitos de confiança. A população paga um preço elevado por semelhantes desvarios. Pisa num chão escorregadio, sem saber para onde se encaminha diante dos exemplos de insensatez que se acumulam à passagem dos dias. 

O poder, ao mesmo tempo que exerce um esmagador (e até erótico) atrativo, se mostra pesado. Põe por água abaixo expectativas e intenções. No caso de Jair Bolsonaro, o espetáculo de vê-lo se exceder, aos palavrões, contra magistrados da mais alta corte evoca cenas de Carpentier. As desculpas de natureza psíquica, ligadas a seu estado mental, não diminuem a gravidade da questão. Criam perguntas sobre nossa capacidade de alcançar as próximas eleições com a certeza de realizá-las. A loucura, com efeito, como demonstrou Machado de Assis, pode ser contagiante. Que se cuidem os nossos militares, juristas e cidadãos responsáveis. Se a tendência se confirmar, não haverá espaço suficiente nos nossos manicômios.

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