A cultura da futilidade

Em 'A Civilização do Espetáculo', o peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, disseca a frivolidade e propensão ao entretenimento fácil dos tempos atuais; crítica ainda o jornalismo de escândalos e a crítica de arte embusteira



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Em 1930, no livro A Rebelião das Massas, cuja primeira edição brasileira, publicada pela Martins Fontes, data de 1987, o filósofo espanhol José Ortega Y Gasset explicou o que chamou de “espírito do tempo”, dominado pelo “homem médio”, inculto e arrogante.  Aos incautos, o nome da obra sugere uma revolução marxista ou fundamentalista islâmica, numa recorrência aos tempos atuais. Para Ortega Y Gasset, a rebelião das massas definia a característica do momento em que ele viveu: a de que “a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte”.

O pensador espanhol se reportava a uma época em que se nivelava todas as manifestações da vida cultural, ou como a definiu numa metáfora bovina e estomacal, “a época do senhorzinho satisfeito”, com a ressalva: “Não que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade e a vulgaridade como um direito”.

Pouco mais de oito décadas depois, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010 e autor de romances seminais como Conversa na Catedral e A festa do bode, demonstra que o terrificante raio x social de Ortega Y Gasset não somente se cumpriu como até se ampliou numa escala globalizada. É o que demonstra seu novo livro A civilização do espetáculo (Rio de Janeiro: Objetiva, 2013).  Nesses ensaios, que dialogam com Ortega Y Gasset, o romancista peruano parte de uma pedra de toque – a de que “a cultura, no sentido tradicionalmente dado a esse vocábulo está prestes a desaparecer” – em virtude da banalização das artes e da literatura, do triunfo do jornalismo sensacionalista e da frivolidade da política. Para ele, esses são “sintomas de um mal maior que afeta a sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo nossa atual propensão a nos divertirmos”.

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Fenômeno esse que substitui cultura por informações de prazo de validade quase efêmero; profundidade intelectual por vôos rasantes de espíritos obcecados pelo fácil entretenimento; acuidade de pensamento por rápida digestão de coisas tolas e ofertas para fácil esquecimento. Assim Vargas Llosa explica A civilização do espetáculo, livro que leva o subtítulo uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura:

O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. Só um puritanismo fanático poderia reprovar os membros de uma sociedade que quisessem dar descontração, relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas em rotinas deprimentes e às vezes imbecilizantes. Mas transformar em valor supremo essa propensão natural a se divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo.

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Essa cultura ditada pela obliterante cultura das massas, como um perverso divisor de águas (paradas e estagnadas por não levarão a rio nenhum) faz tábua rasa de todo conhecimento anterior, de toda tradição em que a arte se alimenta, se renova e impõe o seu talento individual, como queria o poeta norte-americano (depois cidadão inglês) T.S Eliot.  Vargas Llosa estabelece a separação abissal entre as duas culturas:

A diferença essencial entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, ao passo que os produtos deste são fabricados para serem consumidos e desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann e ainda Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver a seus autores, continuar atraindo e fascinando leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os filmes de Hollywood, assim como os shows de Shakira, não pretendem durar mais do que o tempo da apresentação, desaparecendo para dar espaço a outros produtos igualmente bem-sucedidos e efêmeros. Cultura é diversão, e o que não é divertido não é cultura.  

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No trecho acima, trocaria a brevidade dos biscoitos e da pipoca pela duração quase instantânea das bolas de sabão; Shakira por Ivete Sangalo ou Daniela Mercury (para ficar na Bahia, terra que conheço melhor). Vargas Llosa analisa as consequências desse tipo de manifestação cultural, que ele chama de “cultura-mundo”:

[...] em vez de promover o indivíduo, imbeciliza-o, privando-o de lucidez e livre-arbítrio, fazendo-o reagir à “cultura” dominante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Plavov à campainha que anuncia a comida.

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Tudo isso, na opinião do autor de Tia Júlia e o escrevinhador, provocaria “o empobrecimento das idéias como força motriz da vida cultural”, já que a civilização do espetáculo é dominada “pela frivolidade, pela superficialidade, pela ignorância, pela bisbilhotice e pelo mau gosto”. Considerando com ácida ironia que, hoje em dia somos todos cultos, Vargas Llosa sublinha:

Desse modo foram desaparecendo de nosso vocabulário, afugentados pelo medo de se incorrer no politicamente incorreto, os limites que mantinham a separação entre cultura e incultura, pessoas cultas e incultas. Hoje, ninguém é inculto, ou melhor, somos todos cultos.

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[...] Agora, somos todos cultos de alguma maneira, embora nunca tenhamos lido um livro, nem visto uma exposição de pintura, assistido a um concerto, adquirido algumas noções básicas dos conhecimentos humanísticos, científicos tecnológicas do mundo em que vivemos.

LÚMPEN JORNALISMO

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Uma das atividades que mais influíram na civilização do espetáculo é, para Vargas Llosa, o jornalismo, sobretudo o sensacionalista, por substituir informação, conteúdo, análise de fundo, por escândalo, bisbilhotice, violação da privacidade, e até – nos piores exemplos – por difamações, calúnias e notícias infundadas. Como o fez, por exemplo o diário londrino News of the World, “obrigado a fechar, apesar de sua imensa popularidade, por ter sido descoberto que ele cometera o crime de grampear telefones de milhares de pessoas, entre as quais membros da Casa Real e uma menina seqüestrada, para alimentar o sensacionalismo escandaloso que era o segredo do seu sucesso”.

Esse tipo de jornalismo como os programas de mundo-cão que repórteres arvorados de policiais e juízes invadem, sem mandato, os barracos dos pobres, mas não passam da portaria das mansões dos milionários, serve apenas “para alimentar as paixões baixas dos comuns dos mortais”. Uma imagem concebida por Mario Vargas Llosa – numa referência à recente crise da “Bolha Imobiliária” dos Estados Unidos, com reflexos globais - para resumir a civilização do espetáculo serve como uma luva para ilustrar esse lúmpen jornalismo:

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Vamos reter por um momento essa imagem na memória: uma multidão de fotógrafos, de paparazzi, espreitando as alturas, com as câmaras prontas, para captar o primeiro suicida que encarne de maneira gráfica, dramática e espetacular a hecatombe financeira que fez evaporar bilhões de dólares e mergulhou na ruína grandes empresas e cidadãos. Não creio que haja imagem que resuma melhor a civilização de que fazemos parte.

Sequer a crítica literária – sobretudo aquela que acha mais importante a teoria do que a fonte cristalina e pura da obra original - escapa da lupa aguçada de Vargas Llosa:

No campo da cultura chegaram a produzir uma curiosa inversão de valores: a teoria, ou seja, a interpretação chegou a substituir a obra de arte, a tornar-se sua razão de ser. O crítico importava mais do que o artista, era o verdadeiro criador. A teoria justificava a obra de arte, esta existia para ser interpretada pelo crítico, era algo assim como uma hipótese da teoria.  

Tal procedimento da crítica abria caminhos para embustes e engodos, como assistimos, hoje, nas artes plásticas, terreno fértil para bobagens travestidas em obra de arte ou até mesmo paroxismos escatológicos, como o colombiano Fernando Pertuz, citado no livro, que defecou diante do público, numa galeria de arte e passou a ingerir as próprias fezes. Intervenção radical a demonstrar que o homem veio do pó e acabará na merda, como poderia sugerir alguns desses críticos ou comentaristas rasos de jornal?

Nos Estados Unidos, John Cage, apontado como guru da modernidade musical “compôs”, em 1953, uma “obra” intitulada 4’33”, com uma invejável performance: um pianista sentava-se diante de um piano, mas não tocava nenhuma tecla durante quatro minutos e trinta e três segundos. Ouviam-se apenas os rumores do público embasbacado com música inigualável. Superior a uma cantata de Bach; a um concerto de Mozart, a uma sinfonia de Beethoven? Certamente, para alguns críticos embusteiros e irresponsáveis.

Para Vargas Llosa atitudes como estas e outras eram deliberadamente perpetradas e manipuladas por críticos, editores, galeristas e produtores para fazer “um público de pacóvios levar gato por lebre, por razões financeiras e às vezes por puro exibicionismo”.  Na civilização do espetáculo, a frivolidade é a marca maior; frivolidade “que consiste em ter uma tabela de valores invertidas ou desequilibrada, em que a forma importa mais do que o conteúdo, e a aparência, mais que a essência, em que o gesto e o descaramento – a representação – ocupam o lugar de sentimentos e ideias”.

Nessa civilização de futilidades e do triunfo ilusório da aparência pontifica o vazio existencial dos versos exumatórios de T.S Eliot:

       Nós somos os homens ocos

       Os homens empalhados

       Uns nos outros amparados.

       O elmo cheio de nada. Aí de nós!

Elieser Cesar é jornalista e escritor

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