A crise da hegemonia norte-americana
"O episódio do Afeganistão é mais um exemplo de como, depois de envolver seus aliados europeus na aventura da invasão do país, projetou sobre os EUA o desgaste do fracasso, enfraquecendo ainda mais a hegemonia política norte-americana", escreve o sociólogo Emir Sader
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A discussão é sobre a natureza e profundidade do declínio da hegemonia norte-americana. Foi-se o tempo do “mito da decadência dos Estados Unidos”, livro de Henri Nau, de grande sucesso há não tão muito tempo: 1992.
O raciocínio se apoiava na liderança econômica norte-americana no mundo, afirmação inconteste para o autor, que mal escondia a continuidade do “destino manifesto” do país. No entanto, os EUA já haviam aderido ao modelo neoliberal, a que tratavam de arrastar toda a economia mundial, com consequências desastrosas do ponto de vista do ritmo baixo de crescimento e de geração de empregos. A economia mundial já havia ingressado a seu novo ciclo longo recessivo.
No entanto, um outro movimento já estava em andamento no mundo: o crescimento a ritmos recordes da economia chinesa. No início os Estados Unidos não acreditavam que a China fosse um competidor econômico para eles. Não somente estavam prisioneiros do seu dogma de que apenas as economias de livre mercado tem dinamismo econômico, como acreditavam que o crescimento chinês se devia a que vinham de um atraso enorme.
Não podiam imaginar que em poucas décadas a China se transformaria na segunda economia do mundo, estando prestes, ainda nesta década, a se tornar a primeira.
Mas, sobretudo, a crise e o declínio norte-americano não era somente econômico. Os Estados Unidos sempre basearam sua superioridade mundial na sua força militar. Foi assim desde o fim da segunda guerra, quando tiveram a experiência – que ficou como exemplar para eles – da derrota do Japão. Não poderia haver país mais distante como cultura e como trajetória histórica. No entanto, com duas bombas atômicas os EUA derrotaram o Japão e fizeram dele um fiel aliado estratégico.
Com todas as diferenças que essa experiência tinha em relação às posteriores – Vietnã, Iraque, Afeganistão, entre outros -, os EUA, com sua reconhecida incapacidade de analisar cada experiência no seu contexto histórico, incorporou definitivamente a estratégia de impor as superioridade militar como forma de resolver conflitos.
A derrota no Vietnã – um país de economia agrícola, teoricamente fácil presa dos EUA – foi simbólica. Era uma derrota militar contra uma estratégia de guerra popular, a vitória de um povo organizado, uma derrota política, que evidenciava as debilidades da estratégia norte-americana. Mas eles seguiram em frente, seja por considerar que aquela derrota se devia à situação comprometida que haviam herdado das derrotas japonesa e francesa, seja por não analisar em profundidade como 700 mil soldados e a implantação de minas em grande parte do território vietnamita, podiam ser derrotados.
A crise de 2008 foi uma virada na economia internacional, que apontava para o esgotamento definitivo do modelo neoliberal. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos reproduziam a estratégia de impor sua superioridade militar como via de tratar de solucionar as crises em que estava envolvido. Foi assim no Iraque, na Síria, na Líbia e no Afeganistão.
Assim, à crise econômica foi se somando a crise militar, a incapacidade norte-americana de resolver as crises por meio da sua força militar. Essa debilidade se projetou inevitavelmente sobre sua força política, assentada sobre a força militar, que também foi afetada. O fracasso do Afeganistão é mais um exemplo de como, depois de envolver seus aliados europeus na aventura da invasão do país, projetou sobre eles o desgaste do fracasso, enfraquecendo ainda mais a hegemonia política norte-americana, mesmo com seus tradicionais aliados europeus. Pesquisas demonstram como os seus aliados, se submetidos à alternativa de fidelidade aos EUA ou à China, prefeririam esta.
A China não somente foi fortalecendo sua economia e as relações comerciais por todo o mundo – indo da Ásia à América Latina, até chegar à Europa -, como seus investimentos em todas essas regiões foram consolidando sua presença econômica. A ponto que a indústria automobilística alemã gerou uma dependência direta com a indústria chinesa, estabelecendo dependências e imbricações estreitas entre elas.
Tecnologicamente, a China começa a disputar a vanguarda com os Estados Unidos em áreas chaves para o futuro econômico do mundo, a começar por todas as áreas da inteligência artificial e da automação.
A força norte-americana no mundo sobrevive no estilo de vida norte-americano, no que chamam de “modo de vida norte-americano”(a “american way of life”). Um estilo de vida que já vinha sendo exportado nos anos 1950 e 1960, com a presença das grandes corporações multinacionais norte-americanas no mundo, com seus produtos como símbolo mesmo do progresso econômico e do bem estar social – dos eletrodomésticos aos automóveis. A posse dessas mercadorias passou a ser o sonho da classe média e de setores cada vez mais amplos da sociedade.
A sofisticação tecnológica foi diversificando cada vez mais o arco de produtos de consumo que acompanhavam o modo de vida norte-americano, exportado para a Europa, para a América Latina e até mesmo para a Ásia. Se universalizava o estilo de vida norte-americano. O marketing se encarregava de disseminar a associação desses produtos ao sucesso na vida e ao bem estar social.
Na própria China os supermercados reproduzem suas versões ocidentais – embora maiores e mais bonitos - , exibindo as mesmas mercadorias produzidas lá pelas mesmas multinacionais norte-americanas. Se fecha assim o circuito da globalização do estilo de vida norte-americano.
A tentação da rejeição global do acesso ao consumo na Revolução Cultural e na Kampuchea foi derrotada. Só restou a alternativa da sociedade de consumo.
Mesmo nos governos progressistas latino-americanos não se gestou uma forma distinta de sociabilidade. A reivindicação era a inclusão de todos na esfera de consumo, da qual estavam excluídas. Acesso a bens sofisticados, frequentar restaurantes, viajar – em que as compras eram parte essencial – significavam o acesso ao consumo.
Não havia a formulação de um tipo de sociabilidade alternativa, que incluísse o acesso a bens indispensáveis, mas sem a centralidade no consumo, nas marcas, nas modas de produtos, na frenética busca de estar em dia com os últimos produtos lançados e promovidos pelo marketing. Um desafio pendente: a formulação de um tipo de sociabilidade alternativa.
Só assim se terá aproveitado a crise da hegemonia norte-americana para derrotar essa hegemonia também no plano ideológico, cultural, das formas de vida. Assim essa hegemonia estará enfraquecida definitivamente.
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