A construção da cidadania é um projeto político de soberania
Ainda sobre a ideia soberana dos Estados, o sistema financeiro internacional, que abrevio por “banca”, divulga a falsa ideia de globalização, influenciando até respeitáveis pensadores contemporâneos. Foram estigmatizados os nacionalismos em nome da liberdade, da “grande sociedade de mercado” e até, cinicamente, dos “totalitarismos”, desde que não sejam da banca
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O que diferencia um cidadão de um consumidor, de um eleitor, de um contribuinte? Um ser humano é sempre um cidadão?
Estas questões ganham cada vez maior relevância quando se observam decisões legislativas, judiciárias, de todos órgãos executores de serviços públicos em total dissonância com o senso comum, discrepantes dos valores majoritários da sociedade.
Na série de palestras, que o linguista e pensador estadunidense Noam Chomsky gravou e estão sendo divulgadas em redes sociais, é tratada a consciente aversão à democracia, pelos detentores do poder, desde a aprovação da constituição dos Estados Unidos da América (EUA) até os nosso dias.
Na verdade qualquer disciplina normativa, em qualquer lugar, irá preservar o poder de mudanças. Isto é uma cláusula pétrea. Pode-se conceder alguns direitos, pode-se reduzir as desigualdades, pode-se até, com eficácia, eliminar a escravidão, mas ninguém admite que o povo participe do poder, nenhum poder político o aceita.
A cidadania é a dimensão política do humano.
Para isso existe toda campanha de desinformação, da didática colonial, das fraudes e engodos, do próprio sistema educacional, reprisado a cada dia pela mídia oligopolista, que invade o cérebro de todos nacionais e os obriga crer na eficácia do modelo “parlamentar democrático“(!).
Antes de detalhar o projeto de construção da cidadania, alerto que é um projeto revolucionário, que nenhum partido político teve coragem, mesmo sabendo que não lutaria por ele, de colocar em seu programa partidário ou na plataforma de sua campanha eleitoral.
A IDEIA DE CIDADANIA
Mefistófeles dizia a Doutor Fausto que quanto mais faltam ideias mais necessárias são as palavras. Mas vemos que a figura medieval, magistralmente trabalhada na obra prima de Goethe, esqueceu que as palavras podiam também encontrar compreensões diversas, ao longo de seu uso. Tal ocorre com democracia, liberdade, povo e cidadania.
Em Aristóteles (380 a.C.), cidadania era o poder de homem, de antepassados conhecidos, rico e forte, que vivia do trabalho das mulheres e dos escravos, e tinha tempo para discutir com seus pares a vida da cidade.
Confúcio (550 a.C.) afirmava que o homem é definido como um ser capaz de melhorar, de aperfeiçoar-se indefinidamente. E isso era fonte de prazer.
Em que condições é possível garantir ao homem sua efetiva liberdade, sua realização como ser racional, sua capacidade de guiar-se com o povo, com os demais?
Estas questões indicam a unicidade da cidadania. Em conhecida e respeitada obra: “Cidadania, Classe social e Status” (Zahar, RJ, 1967), o sociólogo britânico Thomas H. Marshall divide cidadania pelos “direitos conquistados”: os civis – a liberdade em face do Estado, no século XVIII –, os políticos – a participação na formação e decisão do Estado, no século XIX, com o voto – e os sociais – que chegam com as reivindicações do século XX, principalmente após a vitória comunista em 1918. Mas peca pela ausência da compreensão sistêmica. A soma de direitos conquistados não forma o todo do direito cidadão.
Alguém duvidaria que a extensão de direitos sociais, concedida pelo Governo Médici aos trabalhadores rurais, significou um reconhecimento daqueles direitos? No entanto poderíamos tratar tal decisão como aperfeiçoamento contínuo da cidadania?
O pós-doutor em ciência política, Antônio Sérgio Rocha, professor da UNIFESP, em correspondência com este articulista, manifestou seu entendimento que a Constituição de 1988, da qual é profundo conhecedor, em confronto com outras, “consagra um rol de direitos tão extensos e arejados”, “se queremos uma plataforma de combate pela cidadania, nós já a temos” e “nela há tudo que necessitamos para uma vida civilizada e para um capitalismo social e nacional”.
Longe de mim contestar tão capacitada análise. O destroçamento, a devastação que sucessivas emendas transformaram quase totalmente a Constituição, com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal (STF), bem atesta a assertiva do professor Sergio Rocha. Hoje esta Constituição é um amontoado de interesses paroquiais, mesquinhos e estrangeiros.
Falta, também, um projeto viável sob o aspecto administrativo, econômico e técnico capaz de implementar a cidadania. A condicionante política será necessariamente entregue à decisão popular.
Para Marshall, a cidadania é nacional por definição. Parece-me óbvio, tanto mais que a cidadania se rege por normas, produzidas por entendimentos oriundos de culturas circunscritas geograficamente.
Tanto Marshall quanto Reinhard Bendix (Construção Nacional e Cidadania, EDUSP, 1966) tomam a Inglaterra como referência para suas análises de cidadania. Concluem que houve interesse das elites inglesas, por questão pragmática, de construir alguns consensos, uma espécie de “cidadania regulada” (expressão de Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e Justiça, Campus, RJ, 1977) onde não se inclui a universalidade de direitos cidadãos. Isto ocorre a partir do ideal de Estado-Nação, do lugar seguro onde vivem e também viverão seus descendentes; não lhes passa pela cabeça se retirarem do país, com seus bens e famílias, para os colocar em outro lugar.
Este, no entanto, não é o desejo da elite brasileira, sempre ideologicamente colonizada, que até sonha com esta fuga, como se observa atualmente nas emigrações para os EUA ou para Portugal.
Ainda sobre a ideia soberana dos Estados, o sistema financeiro internacional, que abrevio por “banca”, divulga a falsa ideia de globalização, influenciando até respeitáveis pensadores contemporâneos. Foram estigmatizados os nacionalismos em nome da liberdade, da “grande sociedade de mercado” e até, cinicamente, dos “totalitarismos”, desde que não sejam da banca.
A desistência da elite pelo Brasil torna mais urgente e indispensável a construção da cidadania ou regrediremos a territórios de governos locais, assalariados de empresas estrangeiras, para explorar as riquezas nacionais, como ocorre com a Líbia, com o Iraque, com o Afeganistão.
CONCEITO DE CIDADANIA E CONDICIONANTES
Para orientar o projeto, tomo, parcialmente, o conceito “paridade participativa”, como apresentado pela filósofa estadunidense Nancy Fraser (Reconhecimento sem ética?, in Teoria Crítica no Século XXI, organizado por Jessé Souza e Patrícia Mattos, Annablume, SP, 2007). “Paridade significa a condição de ser um par, de estar no mesmo nível que os outros, de estar em pé de igualdade”.
Retiro, no entanto, e Fraser também se questiona, a participação. Esta será desejada e muito provavelmente alcançada pelo consciente cidadão. Mas não é uma imposição do projeto.
Se temos condições objetivas para construir a cidadania para os que dela não participam, precisamos, nesta primeira fase, mostrar à minoria privilegiada, como concluiu a elite inglesa, que todos nos beneficiaremos num país cidadão. Viver numa nação onde todos os habitantes participam, não pela letra morta de legislações não acatadas, efetivamente das definições políticas é viver num mundo mais seguro, pois justo e inclusivo.
Quando lemos, ouvimos, tomamos conhecimento de críticas às cotas raciais e para pobres, ao programa bolsa família e à assistência do SUS, só podemos concluir que esta pessoa deseja viver na insegurança das ruas, com a proteção discutível de seguranças e carros blindados.
Também, nesta era de imposições externas de políticas e procedimentos, que somente interessam ao capital financeiro internacional, é renunciar o mais forte componente de defesa nacional: povo consciente de sua nacionalidade e participante voluntário da proteção do País.
Não há, neste complexo jogo de poder, ação desvinculada de propósito, salvo na ingenuidade do pensamento colonizado. Transcrevo um período, que demonstra o interesse na desconstrução do nacionalismo, do sociólogo e historiador francês Guy Hermet:
“após a Segunda Guerra Mundial, o sentido da doutrinação política das massas se inverteu. Isaiah Berlin e Elie Kedourie se contentaram em apresentar o nacionalismo como força potencialmente perigosa. Karl Popper, Friedrich Hayeck e Jacob L. Talmon o condenaram sem apelação possível, em nome da sociedade aberta, da luta contra o totalitarismo.” “Georg Simmel observa que o individualismo extremo da sociedade moderna não mais tolera os valores herdados, percebidos como puramente formais”. (Nacionalismo e Cidadania na Europa Atual, in Justiça e Cidadania, Estudos Históricos, FGV, RJ, vol.9 nº 18, 1996).
A ardilosidade das elites financeiras, com séculos de dominação, buscou nas academias e na comunicação de massa não só os argumentos desvendados por Hermet, mas a construção de questões relevantes, sem dúvida alguma para plena cidadania, mas que desviam do objetivo libertador do projeto. São as questões ecológicas e as que denominamos de reconhecimento (gênero, etnia, valores espirituais etc).
Em instigante estudo sobre a “prioridade das liberdades”, o político liberal canadense François Blais escreveu: “as regras de prioridade se justificam pelos contextos onde estão reunidas certas condições culturais e sócio-econômicas” (De la priorité des libertés de base, Actes du Colloque DIKÈ, Université du Québec à Montréal (UQAM), 16 et 17 mai 1994, tradução livre).
Devemos perseguir a cidadania plena. No detalhamento dos programas ficará óbvio que não descuidamos das questões do reconhecimento nem ecológicas; mas urge criar a base material mais consistente para enfrentarmos os dilemas políticos e eleitorais mais prementes. Vivemos hoje uma ditadura do capital financeiro, com domínio de todos os poderes, profundamente limitantes de uma reação adequada, por vias democráticas.
A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
É um projeto único, cuja separação é meramente operacional, e deve ser implementado simultaneamente em todas as fases, apenas se recomenda uma coordenação geral por questões administrativas, no sentido amplo do controle, da divulgação e da responsabilidade.
O Projeto de divide em três esferas: a existência; a consciência e a vocalização.
EXISTÊNCIA
Talvez o mais simples de ser percebido e mesmo executado, se excluirmos os mesquinhos interesses políticos. Trata de dar vida digna à pessoa humana.
Fazem parte da esfera da existência: a renda mínima, a habitação em condições saudáveis (aqui já entra a questão ecológica, no saneamento), a assistência à saúde (preventiva e corretiva) e a mobilidade urbana.
Os escândalos de corrupção não midiatizados, as sonegações fiscais, os perdões a apropriações ilícitas de valores devidos ao Estado, e toda falta de pagamentos aos poderes públicos, como se verificou nos procedimentos decorrentes da onda de moralismo unidirecional que cobriu o Brasil, já responderiam pelo orçamento necessário para implementar estes programas.
No entanto, do mesmo modo que a banca obteve a prioridade de recebimentos fiscais com a criação do “superavit primário”, propomos a criação do gasto compulsório, nos orçamentos públicos, para a construção da cidadania.
O “gasto compulsório” incluiria o valor para renda mínima (Bolsa Família), para os projetos de saneamento público – fornecimento de água potável e construção de fossas e esgotos sanitários, assim como tratamento dos resíduos, dos lixos – para as edificações habitacionais, para efetiva universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) e para gratuidade do transporte urbano.
Em princípio todos os programas seriam mais econômicos e melhor administrados se fossem de execução direta do Estado. Mas admitamos, de início, que parte deles seja executado por empresas privadas, escolhidas por concorrência verdadeiramente pública.
Sendo de competência dos três níveis de administração do Estado (União, Estados e Municípios), além das vinculações compulsórias, a coordenação geral faria chegar às unidades responsáveis os valores orçados.
Com esta esfera teríamos o habitante sem dono, sem dever a ninguém a sua existência, com a liberdade física necessária à cidadania. Seria, finalmente, o fim da escravidão.
CONSCIÊNCIA
Tendo por base a educação para liberdade, estruturada de acordo com as especificidades regionais, voltadas para emancipação, para a consciência de si e dos outros, esta esfera avança para as questões culturais, dos reconhecimentos.
A ideologia totalitária da “escola sem partido” é, na verdade, do partido único. Um só Deus, um só povo, um só saber. Também a educação adestradora, que se limita a formar mão de obra para o capital, não é a formadora de cidadania.
Ao denominar CONSCIÊNCIA entendemos que esta área da construção da cidadania ministrará saberes e os valorizará, explicitará gêneros e etnias e os respeitará, entenderá a necessidade cultural, afetiva e transcendente em cada ser humano e os colocará livres para agir e reconhecer idêntico direito aos outros.
Programas educacionais, culturais, de valorização nacional e de costumes regionais, são exemplos abrigados pelo orçamento da Consciência, que terá execução em todos os níveis federativos.
Fica evidente a necessidade permanente da discussão sobre a pedagogia e seus instrumentos para nos livrarmos dos cinco séculos de dominação por ideologias colonizadoras e vira-latismo. Nesta esfera libertaríamos os brasileiros da escravidão intelectual, do pensamento colonizado.
VOCALIZAÇÃO
Esta esfera, que seria quase automática, tornou-se extremamente difícil pela destruição, a partir do Governo Figueiredo, da informática brasileira. Gosto sempre de repetir que o Brasil fabricou com tecnologia própria, material nacional, mão de obra brasileira, em empresa pública e privada, os minicomputadores. A continuidade deste projeto nacional seria a construção dos computadores pessoais e, daí, se chegaria facilmente aos tablets e celulares.
Tudo isso foi sendo desativado e destruído já no Governo Figueiredo, no de José Sarney e seus sucessores, sem exceção.
Vocalização exige hardware e software nacionais. Está intimamente vinculado ao projeto Soberania Nacional, sem o qual as Forças Armadas são meras forças repressoras de manifestações populares ou agentes policiais dos interesses do capital.
Mas podemos ter alguns avanços, reduzindo a expressão monopolista da comunicação de massa. Minha proposta, nada original, é que tenhamos – com definição precisa dos limites de cada um – três níveis, também com os orçamentos compulsórios para dois deles, de comunicação de massa.
O nível da comunicação estatal, quer nos níveis federativos quer nos poderes da República. Assim a TV e/ou rádio e/ou jornal e/ou revista do Município de Petrópolis, do Estado do Acre, da Justiça Federal, da Assembleia do Estado do Piauí. Primordialmente estes veículos transmitirão notícias de interesse da população atingida e programas culturais regionais.
O nível da comunicação pública, pelas redes públicas, com idênticos veículos da comunicação estatal, conforme foi constituída a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Os alcances e as sedes seriam definidos pelas demandas e condições de atendimento. As televisões e rádios comunitários estariam qualificados neste nível.
Como menor alcance, o nível da comunicação comercial. Sendo aplicadas as restrições que limitem o domínio, ainda que local, da comunicação de massa.
Com o tempo, o desenvolvimento da informática brasileira permitiria o diálogo dos cidadãos entre si e com os órgãos públicos e privados. Por agora, a vocalização poderia ser usada nos Conselhos e nas Ouvidorias e Controladorias, com mais facilidade de acesso e rapidez de respostas.
Ainda devo voltar a este Projeto de Construção da Cidadania e agradeço, desde já, toda crítica, sugestão e correções de meus diletos leitores.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado
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