A competição entre a ICR e o Novo Quad pelo futuro boom de crescimento do Afeganistão
Já começou a corrida para construir e ampliar a destroçada infraestrutura do Afeganistão, e potências rivais apresentam iniciativas concorrentes
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Há pouco mais de uma semana foram retomadas as penosamente lentas negociações de paz entre o governo de Cabul e o Talibã, que então se arrastaram por mais dois dias, observadas por enviados da União Europeia, dos Estados Unidos e da ONU.
Nada aconteceu. Não se conseguiu sequer chegar a um acordo quanto a um cessar-fogo durante o Eid al-Adha. E, pior ainda, não há qualquer programação para o que irá ocorrer quando as negociações forem retomadas em agosto. O líder supremo do Talibã, Haibatullah Akhundzada, divulgou um comunicado: o Talibã "defende enfaticamente uma solução política".
Mas como? As diferenças irreconciliáveis dão as cartas. A realpolitik dita que não há a menor possibilidade de o Talibã vir a adotar a democracia liberal ocidental: o que eles querem é a restauração do emirado islâmico.
O presidente afegão Ashraf Ghani, de sua parte, é visto como pato manco até mesmo nos círculos diplomáticos de Cabul, onde ele é ridicularizado por ser teimoso demais, e por não estar à altura da situação. A única solução possível no curto prazo seria um governo provisório.
No entanto, não há nenhum líder de prestígio nacional – nenhuma figura do tipo Comandante Massoud. Há apenas chefes guerreiros regionais - cujas milícias protegem seus próprios interesses locais, e não os da distante Cabul.
Embora os fatos concretos apontem para uma balcanização, o Talibã, mesmo na ofensiva, sabe que não seria capaz de tomar militarmente o Afeganistão.
E quando os norte-americanos dizem que continuarão a "apoiar as forças armadas do governo afegão" isso significa continuar a bombardear, mas de longe, e agora sob a nova administração Centcom sediada em Qatar.
Rússia, China, Paquistão e os "istãos" da Ásia Central – todos estão se esforçando ao máximo para superar o impasse. Jogos de sombras, como de costume, vêm funcionando a pleno vapor. Tomemos, por exemplo, o importantíssimo encontro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC, os estados da antiga União Soviética) – quase simultâneo à recente Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, em Dushanbe e a subsequente conferência sobre a conectividade entre a Ásia Central e a Ásia do Sul, realizada em Tashkent.
A cúpula da OTSC foi 100% à prova de vazamentos. Mas, em ocasião anterior, eles haviam discutido "as possibilidades de usar o potencial dos estados-membros da OTSC para manter sob controle a altamente volátil fronteira tajique-afegã.
Isso é assunto muito sério. Uma força-tarefa chefiada pelo Coronel-General Anatoly Sidorov, comandante do Estado-Maior do OTSC, ficou encarregada de "medidas conjuntas" de patrulhamento das fronteiras.
Entra em cena então um lance ainda mais intrigante do jogo de sombras – recebido com uma negativa não-negativa tanto por Moscou como por Washington.
O jornal Kommersant revelou que Moscou ofereceu uma certa "hospitalidade" ao Pentágono em suas bases militares no Quirguistão e no Tajiquistão (ambos estados-membros da OCX). O objetivo: ficar conjuntamente de olho no extremamente mutável tabuleiro de xadrez afegão – e evitar que cartéis de tráfico de drogas, islamistas do tipo ISIS-Khorasan e refugiados cruzem a fronteira desses "istãos" da Ásia Central.
O objetivo russo – apesar das negativas não-negativas – é não deixar os americanos se safarem assim tão fácil da "bagunça" (copyright Sergey Lavrov) que aprontaram no Afeganistão e, ao mesmo tempo, impedi-los de estabelecer novamente alguma ramificação do Império das Bases na Ásia Central.
Após 2001, eles criaram bases no Quirguistão e no Uzbequistão, que, entretanto, foram mais tarde abandonadas, em 2004 e 2014. O que está claro é que não há a menor chance de os Estados Unidos voltarem a estabelecer bases militares em territórios dos estados-membros da OCX e da OTSC.
Nasce um novo Quad
No encontro sobre a conectividade entre a Ásia Central e a Ásia do Sul, realizado em Tashkent logo após a reunião da OCX, em Dushanbe, algo de muito intrigante ocorreu: o nascimento de um novo Quad (esqueçam aquele do Indo-Pacífico).
Essa foi a versão do Ministro das Relações Exteriores do Afeganistão: uma "oportunidade histórica de abrir florescentes rotas de comércio internacional, [e] as partes pretendem cooperar para a expansão desse comércio, para a construção de canais de trânsito e para o fortalecimento dos vínculos empresa-a-empresa".
Se isso soa como algo saído diretamente da Iniciativa Cinturão e Rota, bem, aqui vai a confirmação pela Chancelaria paquistanesa:
"Representantes dos Estados Unidos, do Uzbequistão, do Afeganistão e do Paquistão concordaram, em princípio, em criar uma nova plataforma diplomática quadrilateral focada no aumento da conectividade regional. As partes veem a paz e a estabilidade de longo prazo no Afeganistão como sendo de importância crítica para essa conectividade regional e concordam que paz e conectividade regional se reforçam mutuamente".
Os Estados Unidos fazendo Cinturão e Rota bem ali, na praia da China? Um tweet do Departamento de Estado o confirmou. Podem chamar isso de um caso geopolítico de "se não consegue vencê-los, junte-se a eles".
Bem, essa, provavelmente, é a única questão com a qual praticamente todos os atores do tabuleiro de xadrez afegão concordam: um Afeganistão estável turbinando o fluxo de carga através de um nó vital da integração eurasiana.
O porta-voz do Talibã, Suhail Shaheen, vem sendo muito consistente: o Talibã vê a China como "amiga" do Afeganistão e está ansioso para que os investimentos de Pequim nos trabalhos de reconstrução comecem "o quanto antes".
A questão é o que Washington pretende alcançar com esse novo Quad - que, até o presente momento, existe apenas no papel. É simples: jogar uma chave de fenda nas engrenagens da OCX, liderada pela Rússia-China, e o principal fórum para a organização de uma possível solução para o drama afegão.
Nesse sentido, a competição entre Estados Unidos e Rússia-China no teatro afegão se encaixa perfeitamente no esquema Build Back Better World, ou B3W (o Reconstruir Melhor Mundial) que tem como objetivo – pelo menos em tese – oferecer um plano de infraestrutura como alternativa à Iniciativa Cinturão e Rota e tentar vendê-lo a países que vão desde o Caribe e África até a Ásia-Pacífico.
O que não está em questão é que um Afeganistão estável é essencial para estabelecer uma conectividade plena por via ferroviária, ligando a Ásia Central rica em recursos naturais aos portos paquistaneses de Karachi e Gwadar, e a partir dali, aos mercados globais.
Para o Paquistão, o que acontecerá a seguir é, certificadamente, uma situação geoeconômica com ganhos para todas as partes - seja pelo Corredor Econômico China-Paquistão, que é um dos carros-chefe do Projeto Cinturão e Rota, seja pelo novo e incipiente Quad.
A China irá financiar a altamente estratégica rodovia Peshawar-Kabul. Peshawar já está conectada ao CECP. O término da construção da rodovia irá simbolicamente selar o Afeganistão como parte do Corredor Econômico.
E então há o deliciosamente batizado Pakafuz, o acordo trilateral assinado em fevereiro entre o Paquistão, o Afeganistão e o Uzbequistão, visando à construção de uma ferrovia – uma conexão fundamentalmente estratégica entre a Ásia Central e do Sul.
A total conectividade entre a Ásia Central e o Sul da Ásia, por acaso, também é um dos principais pontos da plataforma da estratégia russa, a Parceria da Grande Eurásia, que interage de múltiplas maneiras com a Cinturão e Rota.
Lavrov passou um bom tempo na cúpula da Ásia Central e do Sul, em Tashkent, explicando a integração da Parceria da Grande Eurásia e da Cinturão e Rota com a OCX e a União Econômica da Eurásia.
Lavrov se referiu também à proposta uzbeque de "alinhar a Ferrovia Trans-siberiana e o corredor Europa-China Ocidental com novos projetos regionais". Tudo se interconecta, de qualquer ângulo que se observe.
Assistindo ao fluxo geoeconômico
O novo Quad, de fato, chegou com atraso em termos da acelerada transmutação geopolítica do Grande Interior Eurasiano, o Heartland. O processo vem sendo liderado pela China e pela Rússia que, em conjunto, vêm gerindo as questões da Ásia Central.
Já em inícios de junho, uma importantíssima declaração conjunta China-Paquistão-Afeganistão ressaltou o quanto Cabul irá lucrar com o comércio via porto de Gwadar, do CECP.
E, então, há o Gasodutistão.
Em 16 de julho, Islamabad e Moscou assinaram um mega-acordo sobre um gasoduto de 1.100 quilômetros e custo de 3 bilhões de dólares americanos, indo de Port Qasim, em Karachi até Lahore, a ser comcluído até fins de 2023.
O gasoduto transportará gás natural liquefeito importado de Catar até o terminal de GNL de Karachi. Esse é o Projeto Gasoduto Pakstream - localmente conhecido como o projeto Gás Norte-Sul.
A interminável guerra do Gasodutistão entre o IPI (Índia-Paquistão-Irã) e o TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia) - que há anos venho acompanhando em detalhes – parece ter terminado com um ganhador de terceira via.
Tanto quanto o governo de Cabul, o Talibã parece estar dando muita atenção à geoeconomia e ao fato de o Afeganistão estar no cerne de um inevitável surto de crescimento econômico.
Talvez ambos os lados devessem estar dando muita atenção também a Zoon Ahmed Khan, uma brilhante paquistanesa que trabalha como pesquisadora no Instituto da Estratégia da Iniciativa Cinturão e Rota, na Universidade de Tsinghua.
Zoon Ahmed Khan observa que "uma contribuição importante que a China traz por meio da ICR é enfatizar o fato de que países em desenvolvimento, como o Paquistão, têm que encontrar seu próprio caminho de desenvolvimento, em vez de seguir o modelo ocidental de governança".
Ela acrescenta: A melhor coisa que o Paquistão pode aprender com o modelo chinês é como criar seu próprio modelo. A China não deseja impor seu trajeto e sua experiência a outros países, o que é muito importante".
Ela afirma categoricamente que a Iniciativa Cinturão e Rota "vem beneficiando uma região muito mais vasta que o Paquistão. Com a iniciativa, o que a China tenta fazer é apresentar aos países parceiros sua experiência e as coisas que ela pode oferecer".
Tudo o que foi dito acima, decididamente, se aplica também ao Afeganistão - e à sua tortuosa mas, em última análise, inevitável inserção no atual processo de integração eurasiana.
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