A colcha de retalhos do Novo Ensino Médio
Mal concebido, o NEM nasceu de um golpe contra a democracia e a implantação desastrosa por Bolsonaro colocou uma pá de cal em qualquer ideia de aproveitamento
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Existem, no século XX, três grandes modelos de educação: os que se baseiam num princípio utilitarista, em que a importância dos conhecimentos é medida a partir do quanto podem gerar de valor econômico, social ou cultural, num caso de cálculo custo-benefício. Neste modelo, saberes técnicos, ou que dão acesso a técnicas de transformação da matéria são sempre valorados de forma maior. Esse sistema utilitarista foi implantado, por exemplo, nos EUA após a segunda guerra com a criação da National Science Foundation, em 1950. Neste modelo, a educação é toda voltada para a geração de valor, em grande parte econômico. Diríamos, no Brasil, voltada “para o mercado”, ou “para fazer enriquecer os outros”.
O segundo grande modelo responde à lógica cultural-nacionalista. O objetivo é a criação de sistemas de educação autocentrados, que fortaleçam símbolos, valores e sentidos ligados normalmente à ideia de “nação”. O exemplo mais característico desse modelo é a reforma Gentile, feita na Itália fascista, a partir de 1922 e 1923. Neste modelo, a educação prima pela formação “do cidadão” que deverá ser o melhor possível para “engrandecer a pátria”. A ciência, neste processo, é toda centrada para atender aos “interesses da nação” e normalmente usa recursos públicos para atender aos “projetos estratégicos” do país.
Há sistemas híbridos, que conjugam partes de ambas as racionalidades. Nos países do sul global, o exemplo da educação do Estado Novo e do regime militar nos mostram isso. Menos o sentido de geração de valor (utilitarista) e mais nacionalista, mas pode-se observar traços das duas lógicas para a criação de “ornitorrincos”, com seis períodos semanais de matemática (como um desespero para o uso do tempo com disciplinas “duras” e geração de valor) e, ao mesmo tempo, implementando OSPB (Organização Social e Política do Brasil) ou Educação Moral e Cívica (gastando o tempo dos alunos como se não houvesse amanhã).
No final do século XX (e início do XXI) surgem sistemas de educação com modelo crítico (muitas vezes ditos pós-modernos, embora o termo precise de melhor apuro), voltados para a formação dos sujeitos a partir de referenciais individualizantes. Todo o modelo de avaliação modifica-se, teorias das “inteligências” e a divisão em “competências e habilidades” procuram singularizar o olhar do educador sobre o educando. Nesse modelo, a ciência serve para modificar diretamente a vida nos territórios em que é praticada. O chamado “impacto social” de qualquer pesquisa científica precisa ser demonstrado. Todo o sentido de educar obedece a um complexo conjunto de interesses críticos que buscam “emancipação” dos círculos de construção de hierarquias políticas e econômicas e, ao mesmo tempo, formação de consciência nos sujeitos sociais.
Estes três modelos partem de premissas sociais diferentes e querem atingir objetivos diferentes. Em algum sentido e por pouco tempo, eles podem operar juntos. Notadamente quando se propõem os “objetivos nacionais”. Há ali o interesse do “desenvolvimento”, e isso acaba irmanando os dois primeiros paradigmas em alguma medida. Contudo, enquanto o paradigma utilitarista procura buscar a formação para geração do maior valor possível, no menor tempo e com o menor investimento, o paradigma nacionalista estabelece como limite desse processo o “interesse nacional”. No Brasil, por exemplo, não há política de governo para desenvolver tecnologias de ponta ou pesquisa nas áreas sociológicas, históricas e políticas, mas há sempre verba para pesquisas sobre agricultura, pecuária e etc. O objetivo, claro é “formar” pessoas para cumprirem o “destino do Brasil” que, por anos, foi dito ser o “celeiro do mundo”.
Hoje, se entende o pior dos modelos, exatamente o nacionalista. Usa quantidades grandes de tempo e recursos para a fetichização de conceitos, símbolos e valores que – sabe-se – geram guerras e distanciamentos no tecido social. Replicam ordens sociais conservadoras e padrões hierárquicos duros.
Hoje se entende também que o modelo utilitarista acaba por obedecer, em última instância, a uma lógica geopolítica, já que as elites dos países do norte não querem a formação de novas Coréias do Sul ou China’s para concorrerem de igual para igual com os senhores do mundo pelos mercados e pela demanda mundial.
O Novo Ensino Médio é, por isso tudo, um ornitorrinco desengonçado que serve para muito pouco aos jovens e à sociedade brasileira. Concebida pelo paradigma utilitarista, dentro do golpe neoliberal de Temer, houve a romantização da ideia de “liberdade” de escolha junto com a exaltação da ideia de “educação para o mercado”. Toda a lógica deste modelo se centra nesta perspectiva. Ocorre que, respondendo à pressão geopolítica, essa lógica se limita a formar gente para o “mercado” subdesenvolvido do sul global. Não se trata de uma educação para formar sociedades que concorram na geração de valor com as potências do século XXI (como poderia pensar o liberal ingênuo que lê os documentos do Novo Ensino Médio). Trata-se de um modelo limitante que se propõe a extrair o maior valor possível, através da formação de mão de obra barata, em sociedades entendidas como de “segunda classe”.
Se mal concebido, o Novo Ensino Médio nasce de um golpe contra a democracia, sua implantação desastrosa pelo regime fascista de Jair Bolsonaro coloca uma pá de cal em qualquer ideia de aproveitamento. Esse NEM não se presta a um país que busca desenvolver suas potencialidades e concorrer no cenário internacional do século XXI. Esse NEM também não serve para criar (ou recriar) laços de coesão de uma nação com algum objetivo político “nacional”.
Se imaginamos que a ideia de uma educação crítica no Brasil se perdeu em algum lugar entre o momento em que Eduardo Cunha disse “que Deus tenha piedade desse país”, e que Jair Bolsonaro falou “Acabou, porra”, vemos que o Novo Ensino Médio não tem função nenhuma. Concebido de forma equivocada e implementado de forma desastrosa. Que não nos tornemos sócios nesta sequência de erros.
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