A calçada
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Naquelas noites quentes do sertão baiano do final dos anos 70, nos juntávamos todos na calçada da casa dos meus pais, em torno da minha mãe. Ela forrava a calçada com esteiras e nelas nos sentávamos e nos deitávamos. Muitas vezes, eu ficava com a cabeça no colo dela, ouvindo suas histórias de reis, de príncipes e princesas, das quais emanavam até os perfumes das cenas. Eu ia a mundos que só a imaginação, filha dos pensamentos leves, consegue nos levar.
Alguns outros meninos, filhos dos vizinhos, vinham escutar aquelas histórias também. Quando mamãe não podia, por força do trabalho, atender nossos pedidos, arrumávamos brincadeiras de que todos pudessem participar. Uma das preferidas era a rouba a bandeira. Colocávamos dois pedaços de pau, um em cada extremidade da rua, em cima de um montículo de terra, que íamos removendo aos poucos até o mastro cair. Ao cair a bandeira era hora de pegá-la e correr a toda velocidade, antes de ser espancado pelo time contrário. Era uma festa! Outra brincadeira chamávamos de garrafão. Fazíamos um quadrado bem grande com duas entradas, em lados opostos. Cada grupo tinha que alcançar a outra entrada e tocá-la. Dentro, se podia ficar com os dois pés. Fora, com um pé só. Se alguém fosse pego infringindo essa regra, a porrada era grande. E éramos felizes assim.
*
Era um Rei que tinha uma linda filha. Por inveja de sua beleza, transformaram-na em uma gaivota, uma bela gaivota, naturalmente. Um dia um mago, que a encontrara no corredor do palácio, colocou um pequeno alfinete em sua cabeça, enfeitiçando-a. Ele parecia querer acariciá-la, mas o intuito era o de transformá-la em algo que pudesse ser abatido por qualquer pessoa.
Descoberto, o feiticeiro foi preso e levado à masmorra. E lá está até hoje.
Avisado do acontecido, o rei saiu à procura de sua filha pelo palácio. Não a encontrando, ordenou que se a fizesse buscar por todo o reino. E nada de êxito. Alguns dos garotos avistaram a gaivota e saíram em sua perseguição. Eles não sabiam que era a bela princesa que voava pelos jardins do palácio e se escondia de todos entre as árvores.
Passaram-se muitos dias e o rei, já desgostoso da vida, mandou que fosse publicado em todas as aldeias um cartaz oferecendo uma recompensa para quem soubesse do paradeiro de sua filha. Numa tarde de chuva, um jovem lavrador que ia passando pela taberna de sua aldeia, viu aquele cartaz com o desenho do rosto da princesa. Ele o arrancou e foi direto para casa. Chegou esbaforido e falou para sua mãe: “Vou procurar esta jovem”. Nem atentou para a recompensa, só queria encontrar aquela jovem tão bela. Sua mãe riu, fez pouco caso. O jovem era desleixado, tinha a barba sempre por fazer, descuidava das roupas que vestia, muito menos se importava com riquezas. Não teria a menor condição de a encontrar, dizia-lhe a mãe. E, se por acaso isso viesse a acontecer, algo em que ela definitivamente não acreditava, como ele conseguiria reverter o feitiço?
De vários lugares vieram príncipes empenhados em encontrar aquela gaivota e tentar reverter o mau feitiço. A cada dia, chegavam ricos e mercadores em busca da gaivota. Uns traziam gaiolas, outros traziam alçapões, outros espalhavam alimentos pelos cantos do reino, mas nada de a bela gaivota aparecer.
Ao longe, a princesa, no corpo de gaivota, via cada movimento que era feito por tantos ricos. Mas nem um deles lhe chamava a atenção. Ela tinha medo de que, depois de revertido o feitiço, fosse aprisionada e não pudesse mais voar e viver livre, como no palácio de seu pai. A liberdade era, para esta princesa, como o oxigênio que a fazia viver. Aprisioná-la seria como decretar a sua morte.
Um garboso rei viu de longe aquele pássaro branco na árvore perto do lago. Ele se aproximou devagarinho e falou com a gaivota:
– Eu não estou aqui para machucá-la. Vim porque seu pai prometeu que quem conseguisse reverter o feitiço a teria como esposa. E, de tão formosa que é, eu me aventurei pelas terras áridas do deserto em busca de seu lindo rosto.
A gaivota ouviu distante as palavras do príncipe e teve a certeza de que ele não era a pessoa certa para mudar o que lhe acontecera, pois o feitiço só se reverteria se um verdadeiro amor a encontrasse. Não era a riqueza, não eram os presentes, não era um belo príncipe, não era algo assim que mudaria sua situação. Ela sabia que, além de tudo o que lhe pudesse proporcionar, o escolhido deveria ter o mais sublime sentimento de amor em seu peito. E naqueles moços ela ainda não o encontrara. Por isso, permaneceria distante de todos. Vivendo isolada, por medo de ser aprisionada.
Na tarde de um domingo, José apareceu no palácio. Era aquele humilde servo do rei. Estava cansado da viagem que fizera. Foi direto para a mesa onde fora servida a comida. Se fartou de tudo o que pôde, até não mais aguentar. Estava satisfeito. E pensava dali não mais sair. Tinha comida farta, até que a princesa pudesse ser encontrada. Passados três dias sem que do palácio se ausentasse, o rei, informado da situação, foi ao seu encontro. Lá chegando, viu alguém mal vestido, com uma maçã na mão direita, sentado em um banco na cabeceira daquela mesa grande.
- De onde vem, príncipe? Que reino deixou para trás para vir em busca de salvar a minha amada filha? Que riquezas tem para oferecer-lhe, caso a consiga encontrar e trazê-la de volta para casa?
José suspendeu a mordida que estava dando na maçã. Ficou de joelhos e respondeu ao rei.
- Bondoso rei, eu não tenho nenhum reinado. Terras só quem tem é Vossa Alteza, e eu, junto com minha mãe, cultivamos feijão. Todo fim de safra, lá passa o cobrador de impostos e nós pagamos o que lhe devemos. Eu sou um plebeu, que após ver o cartaz em minha aldeia, resolvi vir também procurar pela princesa.
O rei não gostou daquela situação e mandou que sua guarda o retirasse do palácio. José foi colocado para fora, enquanto se ouvia risos e gargalhadas dentro do salão. Já fora, ele olhou para o rei que acompanhara aquela cena e disse:
- Meu rei, no cartaz não dizia que eu teria que ser príncipe, ter terras ou riquezas. E quando vi uma princesa tão linda, tive a certeza de que meu lugar era aqui para procurá-la. Do seu reino não quero nada. De suas riquezas, não me apossarei de um grão de ouro. Mas tenha a certeza, meu rei, se a sua filha eu encontrar, a trarei de volta para o senhor.
Com aquelas palavras, o rei sentiu vergonha. Olhou para o chão e se virou de costas para José. Entrando no salão, viu os ricos nobres e muito luxo. Pensou que havia visto naquele homem algo que dentro do palácio não existia.
José olhou para o palácio em que antes entrara e de onde agora era expulso. Buscou um abrigo para aquela noite e decidiu que pela manhã partiria em busca da gaivota.
Ao acordar, bebeu um copo de água do pote da estalagem. Encontrou alguns garotos que brincavam na rua.
- Vocês sabem onde posso encontrar a princesa em forma de gaivota?
- Claro que sabemos. Respondeu o maiorzinho.
- Podem me indicar onde a encontro? Quero falar com ela, hoje.
Os garotos saíram com ele e o levaram até os fundos do palácio. Era lá que a gaivota todos os dias recebia comida para se alimentar.
- Espere que ela aparece já! Disse o menino.
Eles ficaram ali por mais de uma hora. E, de repente, como em passe de mágica, a linda gaivota sentou-se na grande árvore do jardim. Uma criada colocou uma grande bandeja com frutas para ela. Antes mesmo de a princesa voar em seu corpo de pássaro, José foi até a bandeja e pegou uma maçã para comer. Ele estava desde a tarde do dia anterior sem se alimentar. A gaivota voou e tentou acertá-lo na cabeça. Ela buscava defender seu alimento.
José sorriu e perguntou:
- Princesa, não dá para dividirmos a comida? Desde ontem que nada como e estou com um vazio em meu estômago.
A gaivota, sentada no galho da árvore, ficou olhando aquele jovem comer. Ele já ia pegando uma laranja quando recebeu uma bicada na cabeça. Ficou ali sentado. Olhava para ela, ela olhava para ele.
- Princesa, não me leve a mal, mas como eu poderia ajudá-la? Me diga como, que o farei de bom grado. Não quero nada do seu reino. Vim aqui porque queria vê-la. Vi o cartaz, nunca havia visto tão lindo rosto. Nada espero do rei, nem de sua riqueza. Só quero ter o prazer de um dia poder dizer que a vi.
Como a gaivota não respondeu, José levantou-se e se afastou, para que ela pudesse comer.
De longe, ele a olhava. Quando ela terminou, voou para algum lugar distante. E ele retornou para perto do palácio.
No dia seguinte, ele não precisou mais da ajuda das crianças. Acordou e foi direto ao local onde era colocado o alimento. Ficou olhando de longe. Viu quando foi deixado. Foi até lá e sentou-se perto. Ficou olhando para a comida. Não pegou nada desta vez. A gaivota, que chegara pouco antes, observava aquela cena. Não entendia a razão de ele não ter pegado nada pra si. Ele já ia embora, mas sentiu um vento em seu ombro esquerdo: a gaivota se sentara nele. Passou a cabeça no rosto de José. Ele sorriu, pegou-a e se sentou ao lado da bandeja. Cortou frutas e a alimentou no bico. Já farta, a gaivota recusou. Era a vez dele. Mas José não quis comer. Ela, com seu bico, empurrava o alimento para ele. José recusava.
- Princesa, hoje, quando sentei aqui, lembrei-me de minha mãe, que está em casa sem comida para saciar a fome. Não é justo que eu possa me fartar enquanto ela sente fome. Não é justo que poucas pessoas possam ter muito para se alimentar enquanto milhões passam fome em seu reino. Eu vim aqui para encontrar tão bela flor, mas encontrei tamanha contradição. Voltarei para o meu canto. É lá que eu devo ficar.
Naquele instante, uma lágrima rolou do olho da gaivota. Ela roçou a cabeça novamente no rosto de José, que sentiu algo o incomodar. Ele a pegou, colocou-a no chão, passou a mão com cuidado na cabeça dela para sentir o que o espetara. Com os dedos, procurou algo e encontrou o pequenino alfinete, que a incomodava tanto. José o retirou e viu surgir à sua frente uma linda mulher, como nunca vira. A mais bela entre as belas. Mais linda do que a imagem que ele tinha visto no cartaz. Os dois ficaram de pé. Ela o abraçou com carinho e lhe agradeceu. Beijou-o na face. Foi quando a serva, que vinha buscar a bandeja, viu-a e gritou:
- A princesa está viva, ela voltou!
Correram todos ao seu encontro. O rei a abraçou. Levou-a para dentro do palácio e mandou que fosse feita uma grande festa para comemorar o seu retorno. José ficara fora do palácio. No tumulto, fora barrado. Como todos os plebeus, ficou de fora da festa que o rei ordenara fosse dada.
Já dentro do palácio, o rei perguntou a ela:
- Quem destes conseguiu reverter o feitiço, minha filha? Ela olhou para todos os lados e não viu aquele que a ajudara.
- Nenhum deles, meu pai!
O rei ficou confuso. Se todos os príncipes estavam ali, quem então seria o felizardo que teria a honra de se casar com sua filha e assim juntarem os reinos?
- Meu pai, o príncipe que retirou o feitiço de mim, que me trouxe de volta para casa novamente para conviver com todos vocês, não tem nenhuma riqueza, não mora em palácios. Na verdade, meu rei, ele tem fome, fome de comida, fome de liberdade, tem amor no coração, como nunca eu havia visto antes numa pessoa. O príncipe a quem o senhor irá conceder a minha mão responde pelo nome de José e é morador de uma vila em nosso reino.
O rei quase desfaleceu, mas se apoiou na cadeira do trono e ficou calado, sem saber o que dizer. Passado aquele instante de surpresa, disse:
- Que tragam o homem que terá a mão da minha filha!
Procuraram por todo o palácio e pela vila em volta. E nada de encontrar José. Ele havia ido embora, assim como chegara: livre como uma gaivota.
A princesa chorou, pois não conseguiu rever o príncipe em quem ela encontrara a mais linda forma de amor no coração. Prometeu a si mesma que um dia o iria encontrar. Mesmo que levasse todo o tempo do mundo, o seu amor ela iria encontrar.
E era assim que minha mãe terminava a história, todas as vezes em que a contava para aquele bando de crianças sentadas na calçada da minha casa na Rua Duque de Caxias, em Paulo Afonso, lá na doce Bahia.
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