A base normativa do direito de matar
A “fala do poder”, no Brasil atual, vai além da busca do controle social pelos mecanismos do Estado. É um projeto de uso da violência miliciana sem limites
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Por Tarso Genro, no portal A Terra É Redonda
“O culpado foi a vítima, que deveria ter feito aniversário com outro tema, que não fosse o PT. Foi obviamente uma provocação. Estava pedindo bala e depois leva uns tiros e não sabe por quê”. Estas palavras, de uma fala atribuída ao chefe da Casa Civil Ciro Nogueira e divulgadas por Christian Lynch, com as “aspas” que significam indicar uma mera transcrição, ainda não ficaram totalmente confirmadas quanto a sua autoria, nos exatos termos em que foram publicadas.
Logo depois, todavia, viu-se que a confirmação se tornou desnecessária: as palavras e atitudes do Presidente da República, ao relacionar-se com a família da vítima – sem nenhuma empatia ou manifestação de respeito a sua dor – confirmaram que a “linha” do suposto discurso de Ciro Nogueira é a mesma linha da barbárie e de necrofilia política que caracterizam o atual mandatário da nação. Os sucessivos momentos políticos de “exceção” que nos trouxeram até a tragédia que nos cerca, foram construídos por doses homeopáticas nas “trajetórias pelas quais o estado de exceção e as relações de inimizade” – instauradas na política – tornaram “a base normativa do direito de matar”, como argui Achille Mbembe, no livro Necropolítica.
O controle e a instauração da morte, como momento definidor de um projeto político, tem sucessivas etapas de implementação, lembra o mesmo autor, pois “pressupõem a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em grupos e subgrupos e o estabelecimento de uma cesura, (separação) biológica entre uns e outros”. É a primeira etapa de criação de uma cultura política dirigida, em que a ideologia dos grupos de poder, então dominantes, segregam uma parte da sociedade, sobre a qual depositam a noção ficcional do inimigo.
Sobre este, sem “margem de erro”, os grupos dominantes podem dedicar-se a matar ou estimular a que sejam eliminados os grupos adversos, famílias, comunidades inteiras, cuja segregação facilita a extinção da vida: o corpo inerte assassinado não gera culpa nos grupos que mataram ou ajudaram a naturalizar a morte, nem arrependimentos quanto ao sacrifício dos que foram considerados descartáveis pelo poder. Ao contrário, gera mais necessidade de exposição do ódio para vencer uma uma competição de fidelidade ao “chefe” entre as mentes transtornadas pela violência e excitadas pelo sangue. A promessa do poder sem limites é a que dispõe de corpos para saciar suas compulsões assassinas.
Trata-se – no caso do assassinato do militante petista Marcelo Arruda – para apontar se o homicídio teve “razões fundadas no ódio político”, de verificar se ele foi produto de um alinhamento ideológico do assassino com o chefe político responsável pelas piores práticas de Governo da nossa curta história republicana depois de 1988, ou se o evento criminoso foi apenas um desvio de natureza eleitoral, como mero alinhamento de adeptos de Jair Bolsonaro a uma direita defensora de uma “democracia relativa”. Pela primeira possibilidade pode-se concluir que a “fala do poder” atual, no Brasil atual, vai além da busca do controle social pelos mecanismos tradicionais do Poder de Estado, mas é um projeto de uso da violência miliciana sem limites, testada por regimes fascistas e nazistas.
São regimes que chancelam a morte, não como acidente de percurso na dominação dos corpos “rebeldes”, mas como fundamento básico de um método necrófilo de fazer política, tornando-se ação permanente do Estado. Nesta situação as contradições admitidas pelo poder já não mais distinguem a barbárie e civilização, socialismo e capitalismo, democracia ou ditadura, democracia formal e democracia dos direitos fundamentais, pois todas as suas diferenças são suprimidas pelo discurso legitimador da morte como essência da unidade nacional.
Uma singela matéria da Folha de São Paulo em 24 de abril de 2019, cuja singela manchete foi “Governo oferece 40 bilhões em emendas para deputados que votarem a reforma” e que, no “lead”, informava que “segundo os líderes, valor oferecido por Onyx eleva em 65% manejo do Orçamento por congressistas”, talvez possa servir de exemplo simbólico no futuro, como momento preciso onde não há mais resquício de decência nem de indignação com a perversão da República. Ali é o momento de uma “dobrada de esquina” no rumo constitucional do Estado onde o Governo subordina a moralidade pública, que perde a sua força de coesão social mínima: os parâmetros elementares a partir dos quais deve ser observada a existência, ou não, de um Estado de Direito são eliminados por mais um salto, em direção a um estado de exceção plena, que se torna cada vez mais real como “emergência” (eleitoral), para o governo que saiu da legalidade e da constitucionalidade sem qualquer cautela. Já é um “governo de fato”, pois se tornou definitivamente alheio a qualquer limite ético ou legal, instaurando a sua própria lei pela força dos fatos e sua própria moralidade pela licença para matar, que já atravessa o Estado – de ponta a ponta – e se normaliza na aceitação passiva das instituições de controle.
Qual a diferença ética, política e moral -desarmada e grandiosa – que tem hoje o campo da esquerda e da ampla frente democrática, comparativamente ao governo necrófilo de Jair Bolsonaro? Falo neste artigo apenas em ética, política e moral, porque as diferenças econômicas, sociais e humanas do projeto de restauração republicana das partes estão claras, não só pelas personalidades dos seus líderes mais expressivos e conflitantes, mas também pelo que ambos fizeram de concreto para e pelo país.
Vemos e sabemos o que dizem e fazem Jair Bolsonaro e Ciro Nogueira, neste momento de crise, quando se inspiram em Hitler e Mussolini e tentam arrastar as Forças Armadas para uma condição subsidiária a um poder miliciano paralelo, enquanto Lula e Alckmin se inspiram em Mandela, quando o Presidente Botha num discurso em 31 de janeiro de 1985, no Parlamento Sul Africano, prometeu libertar Mandela e seus companheiros do Conselho Nacional Africano se eles chamassem seus companheiros a depor armas perante o Governo do “apharteid”. Ali Nelson Mandela mandou um recado: “Prisioneiros não podem participar de contratos, apenas homens livres conseguem negociar”.
Em 27 de abril de 1994 Nelson Mandela vota em liberdade para ouvir, dia 2 de maio, o “Sr De Klerk” – como lhe chamava Mandela desde a prisão – fazer um discurso admitindo a derrota do governo racista, num pleito onde o candidato do Congresso Nacional Africano obteve 62,5% dos votos, para assumir a Presidência do país. Mas o que propõe o novo Presidente Nelson Mandela, quando começa a governar, depois de mais de 27 anos de cárcere? A unidade nacional do emparelhamento pela morte, de quem estava do outro lado do rio? Não, são outras as palavras ditas no palanque das autoridades no dia da sua posse: “Que reine a liberdade. Deus abençoe a África(…) e depois da demonstração da Força Aérea “de alta precisão e força militar, mas uma demonstração de fidelidade militar à democracia a um novo governo que havia sido eleito livre e justamente”, Nelson Mandela acrescenta: “Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor da sua pele, de sua origem ou de sua religião. As pessoas têm que aprender a odiar, e se elas podem aprender a odiar, elas podem ensinar a amar, pois o amor ocorre com mais naturalidade no coração humano do que o seu oposto”.
Só nos fascistas e nazistas essa naturalidade não existe, porque historicamente suas políticas sempre desembocam na morte e na impiedade. Por isso é importante a unidade de todos os democratas – da centro-direita às esquerdas – para impor uma desmoralizante derrota eleitoral ao candidato que estimula a morte e quer instaurar a barbárie como política definitiva de Estado.
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