A ascensão do ódio e a negação do sentido
O discurso não morreu. No entanto, é preciso atentar para os novos elementos do jogo. O campo democrático não tem senão o discurso (razoável) como ativo de sua possibilidade de ação. E é exatamente isso que é negado pelo outro lado. A democracia, com seu caráter autoimune, é posta à prova mais uma vez. Que a razoabilidade prevaleça
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A ascensão de uma direita virulenta e fascista no Brasil tem confundido até os estudiosos mais atentos. Longe de uma retórica límpida e de uma narrativa envolvente, vemos agora a negação do sentido e a subversão do senso de justiça. Os livros dão lugar aos memes, o debate dá lugar os gritos, a realidade dá lugar a uma ópera bufa, a razão tornou-se um penduricalho de acadêmicos que propagam a "ideologia de gênero".
Nesse cenário, Foucault e Barthes não fazem mais nem cócegas teóricas. Porque não há análise possível do discurso, não há qualquer preocupação com o sentido. Pelo contrário, há a sua negação. A verdade não pode mais ser enunciada pelo discurso. Ela se relativiza e liquefaz nos pixels de um meme que subverte a língua e a própria razão. Nada resiste à passagem de um meme pela timeline, tudo vira ruína.
Se antes achávamos que a nova ágora era o mundo virtual, que o encontro das deliberações e ponderações sobre diferentes visões de mundo se dava nas redes sociais, vemos agora como também a razão deliberativa foi deixada de lado. Isso equivale a dizer que estamos diante não apenas de uma defasagem do discurso político, mas também diante da possibilidade do seu aniquilamento.
Obviamente, não se trata aqui de enunciar a morte de mais um conceito, como querem os pensadores coveiros, que matam tudo aquilo que não entendem. O aniquilamento do político obedece a ciclos totalitários, a oportunidades históricas de uma narrativa nefasta prevalecer.
Ocorre que estamos falando aqui da impossibilidade da própria narrativa, do interdito do discurso. No campo virtual, os textões que antes propunham um debate, ainda que rasos, deram lugar a memes autorreferentes, sínteses de uma verdade sem origem e sem necessidade de justificação. O meme fala por si mesmo. No mundo real, a troca de ideias diante de visões de mundo divergentes deu lugar à gritaria e à tagarelice dos que são incapazes de dar ouvidos ao outro.
Importa notar que a última década talvez não tenha sido suficiente para gestar o fascismo latente do brasileiro médio (possivelmente decorrente de uma herança colonial e de uma história escravagista), como querem os analistas mais apressados. Os brasileiros não acordaram fascistas, embora um grupo que apregoa esses valores tente se alçar ao poder.
O cidadão que se crê "de bem" encontrou nos últimos anos uma corrente que faz ecoar a sua aflição e a sua incompreensão de um "mundo líquido". Não há espaço para essas pessoas num contexto em que a sexualidade é fluida, em que a família se organiza de diferentes modos, em que a cor da pele não prediz condições financeiras e posicionamento social. Mas ir contra isso é fascismo (!), diriam alguns leitores. Não necessariamente.
O meme que enuncia a verdade sem origem fala a mesma língua dessas pessoas. Nele não há elocubrações sobre multiculturalismo nem sobre a complexidade do mundo. O meme é a simplificação do mundo, sem a qual o próprio mundo se torna insustentável para mim. Eis aí o vetor de sua verdade avassaladora.
O discurso não morreu. No entanto, é preciso atentar para os novos elementos do jogo. O campo democrático não tem senão o discurso (razoável) como ativo de sua possibilidade de ação. E é exatamente isso que é negado pelo outro lado. A democracia, com seu caráter autoimune, é posta à prova mais uma vez. Que a razoabilidade prevaleça.
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